Jesus Cristo Superstar: O Evangelho Segundo o Camp

Marcelo Moura
Musicais: Utopias no Audiovisual
10 min readAug 3, 2016

Resumo: Utilizando como referência textos de Susan Sontag e Jack Babuscio a respeito da sensibilidade Camp, este artigo se propõe a analisar o filme musical Jesus Cristo Superstar (Norman Jewison, 1973), identificar na obra elementos dessa estética, e entender como eles auxiliam a criar uma nova leitura de uma história tão contada no Ocidente.

A rock ópera Jesus Cristo Superstar nasceu de um álbum de Andrew Lloyd Weber e Tim Rice, a versão do teatro foi já adaptada de um conjunto de canções e logo depois readaptada para o cinema. Como peça musical, já causou uma grande indignação de grupos cristãos mais conservadores. Na estreia do filme de Norman Jewison, em 1973, foi comum ocorrerem protestos em frente a salas de cinema.

Essa perturbação veio por um tratamento não tradicional da história de Jesus. Uma ruptura que se deu não somente quanto à construção da personagem de Cristo (que em JCS é um homem cheio de dúvidas quanto à sua relação com Deus ), mas também à caracterização das personagens (tanto no filme de 1973 quanto na primeira montagem, os atores vestiam roupas contemporâneas à época, ou capas bastante destoantes das roupas tradicionais dos romanos e hebreus).

Jesus escoltado por soldados

Essa visão não-convencional sobre um tema considerado sagrado (e por isso, inquestionável) trouxe uma revisão para uma história que influencia o Ocidente há mais de dois mil anos, utilizando artifícios inesperados, mas ainda levando a sério tudo aquilo. Esse modo de operação é similar àquele com qual a estética Camp trabalha, segundo autores como Susan Sontag e Jack Babuscio. Para eles, o Camp utiliza a ironia, o humor, a teatralidade e a estilização para construir uma nova relação com o sério.

Pretendemos neste artigo explorar a relação do filme Jesus Cristo Superstar de 1973 com o Camp, buscando identificar momentos em que isso se torna claro e como essa estética permite gerar novas leituras para a tradicional história contada nos evangelhos.

Sobre o Camp

O texto de Susan Sontag, Notas sobre Camp, de 1964, é até hoje uma referência para os estudiosos do assunto. Por tratar o Camp como uma sensibilidade, que para ela não pode ser enquadrada em um modelo de sistema, a autora preferiu escrever cinquenta e oito observações numeradas e intercaladas com citações de Oscar Wilde. Nelas ela expõe de forma ensaística afirmações a respeito do que é o Camp, onde ele é comumente encontrado, como ele opera e a que grupo sociais ele majoritariamente se relaciona.

Sontag aponta a origem do Camp no século XVIII, nos romances góticos, considerados caricatos e artificiais; aponta também exemplos de camp genuinamente bem sucedidos e tentativas de camp mal sucedidas, ressaltando como os autores levaram a sério suas obras:

No Camp ingênuo ou puro, o elemento essencial é a seriedade, uma seriedade que falha. Evidentemente, nem toda seriedade que falha pode ser resgatada como Camp. Somente aquela que possui a mistura adequada de exagerado, de fantástico, de apaixonado e de ingênuo. (SONTAG, 1964)

A autora constantemente cita obras extravagantes que se enquadram a essa sensibilidade e outras que para ela estão longe disso. Apesar da clareza, as notas mais esboçam uma teoria sobre o Camp do que a delineiam. Sontag também aborda a questão da intencionalidade: obras como a de Eisenstein, apesar de extravagantes, não são Camp por serem bem sucedidas. Já os filme de Sternberg com Marlene Dietrich o são, por não serem ambiciosamente medíocres, pois é preciso haver uma busca pelo extraordinário. Dessa forma, é sempre arriscado chegar a um resultado camp, uma vez que seu caminho é quase sempre ingênuo e inocente.

Outra característica ressaltada é a forma como atores relacionados ao gosto camp trabalham, seja ela marcadamente exagerada como em Bette Davis, ou pela repetição de si como em Greta Garbo. Personagens-tipos são exaltados nessa estética, personagens sem evolução. Abre-se espaço também para corpos andróginos (entra aqui o grande uso de vestimentas e maquiagem, como as para artificialmente transformar Greta Garbo na Rainha Cristina) ou hipersexualizados (como o corpo musculoso de Steve Reeves).

Por fim, Sontag fala sobre como a jocosidade camp está ligada à vulgaridade, àquilo que é desprezado pelo bom gosto aristocrático, e nisso a autora aproveita para contrapor o apreciador do Camp à figura do dândi. Há assim um caráter libertador na estética camp, quando ela põe todos os objetos e todas as pessoas no mesmo nível estético.

Já o texto The Cinema of Camp (aka Camp and the Gay Sensibility) de Jack Babuscio, de 1978, caminha em terra mais firme. Primeiramente ele limita seu recorte ao cinema. O autor trata o Camp de forma mais palpável e manipulável, separando quatro características que considera básicas a essa estética. São elas: humor, ironia, teatralidade e aestheticism (estilização). O autor disserta a respeito de cada uma delas e as relaciona com a experiência de ser gay em uma sociedade homofóbica como a ocidental. Mais incisivo que Sontag nesta questão, para o autor o camp é “um conjunto de elementos encontrados em uma pessoa, situação, ou atividade que expressa uma sensibilidade gay ou é criada por ela” (BABUSCIO, 1978, p. 118).

Babuscio encontra ironia na relação de contraste entre um indivíduo ou objeto e seu contexto. Como exemplo, ele cita os corpos andróginos (onde o masculino e o feminino se encontram) dos atores que Sontag também mencionou, mas expande isso para outras dicotomias, como os casais formados por um homem mais jovem e uma mulher mais velha, encontrados em filmes como Crepúsculo dos Deuses. Neste caso específico, o camp é encontrado mais claramente na personagem Norman Desmond, com seus gestos exagerados e marcados, e suas frases de efeito.

Essas características de Desmond são também para Babuscio a estilização do camp. É como ele transforma o ordinário em espetáculo. Aqui o autor faz uma distinção entre o Camp e o Kitsch: o primeiro busca expressar sentimentos considerados inaceitáveis e também traços de personalidade peculiares e expressivos. O segundo se relaciona com o sensacionalismo, o sentimentalismo e a vulgaridade, que aqui se encontra com uma conotação bastante negativa.

Outro fator, a teatralidade, se aproxima com o que Sontag escreve sobre o trabalho dos atores. Babuscio acrescenta uma possível origem disso novamente na vivência de homossexuais de atuar como héteros no cotidiano, para escapar da opressão. A existência de papéis sociais definidos e aos quais todos devem se curvar torna mais sensíveis a percebê-los (e reformulá-los) os indivíduos que mais sofrem por conta deles.

Por fim, como uma estratégia de lidar com as adversidades da sociedade homofóbica, tem-se o humor, que também contribui para gerar uma imagem mais positiva dos homossexuais. Aqui há uma contradição com o Camp de Sontag: para a autora o humor das várias obras é em geral acidental. A teoria de Babuscio sobre o Camp foge dessa imprevisibilidade da sua produção e procura, por meio dessas categorizações, formas de estudá-lo e fazê-lo.

Mas se existem mesmo elementos básicos às obras camp, é possível então encontrar momentos dessa sensibilidade nos trabalhos de qualquer indivíduo, independente de orientação sexual. É possível também estudar a estética e produzir a partir disso. Não é do interesse desse artigo utilizar as vidas pessoais dos criadores de Jesus Cristo Superstar (até porque eles não se resumem ao diretor do Norman Jewison, mas a Andrew Lloyd Weber, Tim Rice e os diretores envolvidos nas montagens da peça, a qual o filme se deve). Assim acreditamos poder encontrar no filme, ao menos, traços de camp.

Além disso, deve-se atentar que os textos já possuem mais de quarenta anos cada um. O cenário camp mudou, a comunidade LGBT possui novas questões e desafios (apesar de que muitos persistem). Também não pretendemos aqui revisar os escritos sobre esse viés.

Jesus Cristo Superstar (Norman Jewison, 1973)

A adaptação para o cinema (de Jewison) começa com a apresentação de uma grande área deserta alaranjada pela areia, com algumas colunas, ao som da canção Overture. Em seguida, chega ao local uma van de onde saem várias pessoas, que logo em seguida começam a se maquiar, a vestir roupas extravagantes ou a adotar um estilo próximo ao do estereótipo do hippie dos anos 1960. Um deles recebe uma roupa branca, e um círculo dançante se forma ao seu redor. Quando a transformação está pronta, descobrimos quem ele se tornou: Jesus Cristo, conforme a representação clássica eurocêntrica: cabelos longos e loiros, vestes brancas. Estão todos prontos então para encenar a história da Paixão.

Temos nesta sequência inicial uma afirmação de que aquilo que assistiremos é uma ficção (mesmo que uma baseada em acontecimentos históricos), de que cada indivíduo está ali para interpretar um papel. A exposição disso é óbvia, mas é nessa obviedade que a sensibilidade Camp opera: evidenciando a artificialidade dos comportamentos, das construções sociais. Essa questão volta ao filme de forma similar durante a última sequência, já depois do fim da Paixão de Cristo: os atores reaparecem com suas roupas contemporâneas e voltam todos à van. Entram por último os dois personagens que, ao lado de Jesus, mais se destacaram: Judas e Maria Madalena. Voltam com expressões de desamparo. Se encenar é algo artificial, não deixa entretanto de gerar efeitos psicológicos sobre o corpo e a mente daqueles que atuam.

Boa parte dos números é guiada por uma atuação naturalista, se desconsiderarmos o fato de que as personagens cantam durante quase todas as suas falas. Porém, as danças e os movimentos enérgicos dos musicais clássicos não são comuns ou pelo menos não uma regra. Durante algumas sequências com os seguidores de Jesus, vemos coreografias mais próximas da tradição musical: em Simon Zealotes, quando Simão pede a Jesus para colocar um pouco de ódio à Roma em seu discurso. Temos um grupo de dançarinos sincronizados, enquanto o próprio Simão dá piruetas e falsetes. Jesus, entretanto, se mantem sempre sóbrio e nenhum passo de dança lhe foi passado.

Saltos e piruetas em “Simon Zealotes”

O outro momento de extravagância coreográfica é o número Superstar, quando Judas reaparece depois de morto, descendo do céu agarrado a uma cruz. Aparecem também grupos de dançarinas com cabelo afro branco e roupas espetaculares, e também vocalistas femininas, toda vestidas de branco, que cantam com Judas. Esta provavelmente é uma música que incomoda grupos conservadores por sua letra irônica:

If you’d come today
You could have reached a whole nation
Israel in 4 BC
Had no mass communication

Tradução
Se você tivesse vindo hoje
Poderia ter alcançado a nação inteira
Israel em 4 a.C.
Não tinha comunicação de massa

Judas em "Superstar"

Há também a sequência de Herodes, que no filme é retratado como um homem gordo, preguiçoso e afeminado. Sua caracterização talvez seja a mais claramente associável à estética camp: toda sua trupe usa perucas, óculos e roupas coloridas, movimentam-se utilizando trejeitos exagerados e dramáticos. A maquiagem também se assemelha à de drag queens da época. A própria canção destoa um pouco das outras, soando mais antiquada, como um musical do começo do século XX.

Herodes e sua trupe

Elementos de camp ainda são encontrados nas vestimentas em geral de todas as personagens: nas capas de Caifás e dos outros sacerdotes (que deixam seus torsos nus), assim como os chapéus que usam; no vestuário hippie de todos os seguidores de Jesus; e, finalmente, no próprio Jesus, que destoa de todos os outros apenas por estar vestido da forma como é retratado em qualquer ilustração barata.

Caifás e os sacerdotes.

Toda essa tipificação ressaltada das personagens ainda contrasta com o fato de que os protagonistas nunca são indivíduos plenamente seguros sobre suas crenças e sobre suas ações. Nem Maria Madalena nem Judas, que não entendem a relação que tem com Jesus (“I don’t know how to love Him”), nem Pilatos, que pergunta a Jesus o que pode fazer para salvá-lo (“Trial Before Pilates”). Nem o próprio Jesus é seguro em relação à seu sacrifício e ao plano dado a ele por Deus (“Gethsemane”). Tudo isso pode facilmente irritar quem está acostumado a dividir essas personagens em bons e maus e colocar um véu de inquestionabilidade sobre isso.

Considerações finais

Como vimos, o filme Jesus Cristo Superstar contém elementos de ironia, teatralidade, estilização e humor (o pacote completo do Camp, segundo Babuscio). Cada um, à sua maneira, retira do pedestal uma história que por muito tempo foi monopólio das religiões cristãs, e permite assim uma revisão mais crítica e humanista sobre ela.

É possível dessa forma construir uma relação mais empática com as personagens, que estão ali desempenhando os papéis dados a eles por Deus, não por vontade própria. Papéis estes que são questionados durante todo o filme. A exposição da artificialidade presente também na história sagrada nos mostra um Jesus que tem seu carisma e sua capacidade de liderança postas em cheque, além de possuir consciência de sua individualidade. Isso talvez seja o que para muitos é o que há de mais profano.

Referências bibliográficas:

BABUSCIO, Jack. The Cinema of Camp (aka Camp and the Gay Sensibility). Acessado em: 3 de jul 2016.

CORNELL, Julian. “Rocky Horror Glam Rock”. In: WEINSTOCK, Jeffrey Andrew. Reading Rocky Horror: The Rocky Horror Picture Show and popular culture. Palgrave MacMillan, 2008.

PAFFENROTH, Kim. “Film Depictions of Judas”. Journal of Religion and Film,
Villanova University, Vol. 5, No. 2, October 2001. Acessado em: 10 jun 2016.

SONTAG, Susan. “Notas sobre Camp” (1964).

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