O reposicionamento da mulher em Mulan

Mariana Faria
Musicais: Utopias no Audiovisual
8 min readAug 6, 2016

Resumo: Este artigo busca analisar a trajetória da protagonista de Mulan (Tony Bancroft e Barry Cook, 1998), no sentido de um possível questionamento aos papéis reservados para cada gênero na estrutura binária. Em especial, a análise irá focar na música “I’ll make a man out of you” que aparece em dois momentos distintos do filme.

Mulan é um filme que vem numa época em que a Disney busca fazer de suas princesas personagens mais livres e ativas. Dentro desse contexto, a “princesa” da China tem uma trajetória especialmente inovadora nesse universo, pois trata-se de uma princesa que se torna guerreira desafiando todas as regras impostas e luta por si mesma. O final feliz não é alcançado ao ser salva, mas por ela própria salvar o País.

Diante desse contexto, há algo importante a se pensar sobre essa história: a trajetória que Mulan percorre ao se transvestir resulta numa transposição dos limites impostos sobre os gêneros. Diferente do texto “‘You the man, well, sorta’: Gender binaries and liminality” de Gwendolyn Limbach, minha análise não se focará na discussão que o filme traz ou não sobre a existência de uma binaridade de gêneros — pelo contrário, não vejo na obra um questionamento a cerca disso, mas sim um movimento que critique as barreiras impostas aos gêneros estabelecidos. Considero aqui que o caminho percorrido por Mulan carrega consigo uma mensagem feminista muito potente, mas que, entretanto, não tange o pensamento sobre a organização dos gêneros.

A análise que tento fazer, portanto, assume que o filme se baseia no padrão binário, desse modo, Mulan nunca tenta quebrar com esse pensamento, apenas estabelece uma ruptura com os papéis desempenhados por cada gênero. No livro Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade de Judith Butler, a autora disserta um pouco sobre esse ponto de vista:

Levada a seu limite lógico, a distinção sexo/gênero sugere uma descontinuidade radical entre os corpos sediados e gêneros culturalmente construídos. Supondo por um momento a estabilidade do sexo binário, não decorre daí que a construção de “homens” aplique-se exclusivamente a corpos masculinos, ou que o termo “mulheres” interprete somente corpos femininos (BUTLER, 2003, p. 24).

Seguindo esse pensamento, vejo que é exatamente isso que o filme tenta provar. A construção social do “ser homem” ou “ser mulher” não corresponde à realidade. Ao quebrar as regras extrapolando os limites cabíveis à uma mulher naquele contexto e fazer isso com sucesso, Mulan traz essa discussão à tona e torna indiscutível o fato de que o gênero não deveria determinar sua posição na sociedade.

Apesar de discordar com o ponto de vista proposto por Limbach, seu trabalho faz reflexões muito válidas. Em certo momento, ela diz:

“Ela (Mulan) parece não saber das implicações dessa construção de gênero, entretanto quando Mulan se passa por homem ao usar certas roupas, ela desmonstra que tanto roupas femininas quanto uma armadura são fantasias, que não correspondem diretamente ao gênero da pessoa que a usa.” (LIMBACH, 2013, p. 119)

No filme, para ilustrar a diferença na construção dos gêneros, temos dois números musicais que tem a mesma função na narrativa: mostrar como um(a) homem/mulher é feito(a). Na canção “Honor us all” (“Honrar a todas nós”), Mulan está sendo preparada para ir a uma casamenteira. Só esta situação, já diz muito sobre qual é o lugar esperado da mulher. Sua honra e a de sua família dependem de ela ser uma boa filha e esposa, o casamento não é algo apenas desejado, mas quase compulsório e as jovens mulheres não tem voz nesta situação. No meio disso, a música nos mostra todo o preparo para a cerimônia e as regras que toda mulher deve seguir para ser uma boa noiva. Uma dessas regras, que é repetida constantemente na canção e ao longo do filme, é a de que uma boa mulher deve manter a boca fechada. Quando Mulan tenta impedir seu pai de aceitar a solicitação do exército e tenta convencer Chi Fu de que ele não pode lutar, o correspondente do imperador a reprime e, dirigindo-se diretamente a seu pai, diz que ele deveria ensiná-la a ficar quieta.

Num outro momento, na música “A girl worth fighting for”, os soldados dizem quais são as características que gostam numa mulher. Mulan então diz “Que tal uma garota que tenha cérebro e fala o que pensa?” e todos respondem um uníssono não. Sua voz é desacreditada durante todo o filme. Até após derrotar os Hunos nas montanhas, quando volta para avisar um ataque eminente, ninguém a escuta. Inclusive, Mulan questiona isso e Mushu diz: “Não se lembra? Você é uma garota de novo!”. Quando está vestida com roupas femininas, ninguém ouve seu lado da história e para fazer ser ouvida ela tem que se justificar com ações, fazendo ser vista.

Em contraposição com “Honor us all” temos a música “I’ll make a man out of you” (“Homem ser”). Apesar de também se tratar de uma canção que busca estabelecer as características de um gênero específico, ela faz isso de um modo completamente diferente. De acordo com o que é cantado, “tornar-se um homem” é um processo muito mais ativo, que depende de vontade própria. A música compara qualidades masculinas a fenômenos da natureza e as imagens reforçam a ligação entre masculinidade e força. Na versão em inglês, a música valoriza o masculino ao desqualificar o feminino. Em certo momento, é cantado “Será que me mandaram filhas quando eu pedi por filhos?”. Além de machista, essa frase atinge diretamente a situação de Mulan.

**A legenda desse vídeo contém alguns erros

No meio da música, e também do seu treinamento, Mulan é mandada pra casa por não conseguir acompanhar o ritmo. Nesse momento, Shang Li canta “Como eu poderia fazer de você um homem?”. Limbach tem uma análise interessante sobre isso em que diz que, sob o medo de retornar como uma excluída e trazer desonra para sua família, ela toma controle da ação e mostra que somente ela mesma é capaz de “torná-la um homem”. Ela diz que “Ela [Mulan] tem que fazer a transição entre um objeto passivo sobre o qual cada gênero é escrito e se tornar o sujeito-agente que reivindica um gênero e um papel na sociedade.” (LIMBACH, 2013, p. 121).

O filme avança e, mesmo após ter derrotado o exército huno e ter salvo os soldados que lutavam ao seu lado, Mulan é descreditada quando descobrem que ela é na verdade uma mulher. Quando é deixada para trás, ela tem uma fala muito interessante: “Talvez eu não tenha feito isso pelo meu pai. Talvez eu só queria provar pra mim mesma que eu sou capaz de fazer as coisas certas, pra que quando eu olhe no espelho, eu veja algo que valha a pena.”

Essa fala é muito significativa e dialoga diretamente com uma canção do início do filme, “Reflexion” (“Reflexo”), quando ela questiona o fato de sua aparência não refletir seu interior. Ela revela então que tudo o que fez não foi apenas para salvar o pai, mas também para se encontrar como pessoa. Desde o começo do filme, Mulan mostra não se encaixar nos padrões estabelecidos. Ela não se identifica com os rituais e os lugares que lhe cabem na sociedade. Toda sua jornada acontece por causa de motivos particulares e ela nunca tem a noção de que a questão não está dentro dela, mas sim é algo social. Limbach diz sobre isso:

“Mulan não se transveste para usurpar o poder cultural negado a ela por ela ser mulher, ela também não se transveste por satisfação pessoal ou sexual, a transgressão dela é reinscrita, primeiro, por pena e depois pela jornada para achar seu lugar na sociedade.” (LIMBACH, 2013, p. 122)

Na batalha final, quando os Hunos aparecem na cerimônia e sequestram o imperador, os soldados estão tentando derrubar uma porta e então Mulan desenvolve um plano para entrar no palácio. Nesse contexto, seus amigos soldados não exitam em segui-la, mas isso acontece apenas após ter provado seu valor várias vezes, e a música “I’ll make a man out of you” retorna por um breve momento. Dessa vez, apesar de a letra permanecer a mesma e, portanto, exaltando a masculinidade, a solução encontrada por Mulan requer que os soldados se vistam como mulheres. Esse conflito causa estranheza e uma certa comicidade, em parte pela surpresa, mas em parte por ver os homens naquela situação.

A cena utiliza de várias coisas do universo feminino para causar a vitória final. Para subirem as altas colunas, eles usam lenços. Para distrair os soldados inimigos, eles usam o charme. Em sua luta final, Mulan não tem nada além de um leque para se defender do vilão qua a ataca com uma espada. Limbach em seu texto critica o uso dos aspectos femininos nessa cena. Ela diz que: “Essa cena de troca de roupa é certamente designada para fazer garotas se sentirem bem sobre serem “mulheres” ao evocar um sentido de justiça poética após o que o homem fez por Mulan na sua transgressão.” (LIMBACH, 2013, p. 123)

Eu concordo em partes com sua teoria. Admito sim que essa cena existe para dar um senso de justiça e valorizar a parte feminina. Entretanto, apesar do aspecto por oras cômico, não vejo um deboche no uso desse artifício. Vejo um discurso que busca valorizar a força feminina que é sempre menosprezada. Os objetos usados apenas para ornamentar, viram acessórios de guerra e com isso o filme reforça o fato de que Mulan é uma mulher. Como dito no começo desse artigo, não acredito que em algum momento o filme ou a personagem tenham pretensão em quebrar com esse padrão. Para mim é claro que Mulan sempre se identificou com o gênero feminino no padrão binário. Sua questão era com os limites impostos a ele.

Além disso, há outro elemento importante de ser analisado na sequência: o único soldado que não se transveste é o comandante Shang Li. Como príncipe da história, sua masculinidade não é posta à prova. Ele pode ceder espaço a independência e força de Mulan, mas sem jamais questionar a sua própria.

Após salvar a China, Mulan termina o filme como o esperado para uma princesa da Disney, de volta à casa e com um futuro marido. Não acho que isso desmereça o filme ou retire suas conquistas. Apesar de ser o final esperado, é de certa forma condizente com o que nos foi mostrado da personagem ao longo do filme. Ela não saiu nessa jornada para desafiar a sociedade, nem por um desejo seu de lutar na guerra, mas sim para salvar seu pai, se encontrar e honrar a família. Feito isso, ela se sentia digna de retornar à casa, tendo provado seu valor.

Por fim, ao analisar toda a trajetória percorrida por Mulan, percebo um grande avanço no seu posicionamento. Apesar de fechar o ciclo de volta à sua casa, ela volta tendo crescido em vários aspectos. No começo do filme, seu papel se restringia a seu gênero. Ela não tinha escolhas a fazer sobre seu futuro. Quando retorna, ela volta muito mais consciente de sua força interior. Ela volta tendo conquistado a honra de toda a China e a chance de fazer parte do conselho do imperador. Ela cruzou barreiras que existiam apenas por causa do seu gênero e mostrou que essa não é uma justificativa convincente. Apesar de suas enormes conquistas, o reposicionamento social que Mulan alcança parece ficar restrito a seu caso. Não é mostrado no filme uma mudança nos limites de gênero que ampliem as opções de outras mulheres.

Referências bibliográficas:

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003.

LIMBACH, Gwendolyn. “’‘You the man, well, sorta’: Gender binaries and liminality”. In: CHEU, Johnson. Diversity in Disney films: Critical essays on race, ethnicity, gender, sexuality and disability. North Carolina: McFarland & Company, 2013. p. 115–128.

*Este artigo contém traduções livres.

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