Rock of Ages: “Jukebox Musical” e Narrativas de duplo-foco

Cissa Martins
Musicais: Utopias no Audiovisual
10 min readAug 7, 2016

Resumo: Esse artigo busca analisar o musical Rock of Ages (Adam Shankman, 2012) a partir da apropriação de músicas já existentes (clássicos do rock) e a construção da narrativa do filme ao redor dessas músicas, com ênfase na abordagem da narrativa duplo-foco dos números “Sister Christian/Just Like Paradise/Nothin’ but a Good Time” e “Jukebox Hero/I Love Rock ’n’ Roll”.

Rock of Ages, um filme musical de 2012 baseado em uma produção teatral homônima (D’arienzo, 2006), integra uma categoria de musicais popularmente conhecida como “jukebox musical”: quando ocorre a apropriação de músicas já conhecidas e a construção da narrativa é feita a partir das letras destas músicas. Essa prática já era bastante popular nos antigos clássicos da MGM, e ainda está presente nos tempos atuais:

[As] compilações musicais são ainda muito populares, com uma história relativamente sem importância como desculpa para reviver uma série de músicas de um compositor específico ou grupos de pop/rock. Mamma Mia, por exemplo, usa músicas do Abba e tem narrativa construída ao redor das músicas de Catherine Johnson (TAYLOR, 2012).

Em Rock of Ages, as músicas revisitadas são grandes clássicos do rock: sucessos de bandas como Journey, Guns N’ Roses e Scorpions, citando alguns. Essa estratégia de fazer uso de músicas já populares é uma tentativa de conseguir aumentar uma audiência e, ao mesmo tempo, dar a eles uma sensação de pertencimento e nostalgia — músicas que boa parte do público do filme muito provavelmente já conhecia, que despertam a memória afetiva para uma determinada lembrança ou momento.

Nos créditos iniciais do filme podemos ouvir um desses clássicos, a música “Paradise City” apresentando Stacee Jaxx (Tom Cruise) e a sua banda Arsenal. A letra da canção fala “Me leve para a cidade do paraíso/ Onde a grama é mais verde”. Logo em seguida, temos dois seguimentos musicais que podem ser interpretados de diversas maneiras, e precisamos analisá-los com bastante atenção e calma.

O primeiro deles é um longo mash-up:Sister Christian”/ “Just Like Paradise”/ “Nothin’ But a Good Time”. Uma das personagens principais, Sherrie (Julianne Hough), aparece em um ônibus de turismo — logo associamos que ela está indo para um lugar “onde a grama é mais verde”, a partir da letra da música anteriormente apresentada. A capacidade de “prever” o que vai acontecer com os personagens é bastante característica em musicais, e isso é possível graças a dicas que são dadas, elementos que compõem o primeiro ambiente — por exemplo, Sherrie retira da sua bolsa uma fotografia da sua vó com uma mensagem e manuseia em sua mala discos de vinil (um deles, inclusive, da banda Arsenal, apresentada na abertura do filme). “Prevemos” que esse sonho que ela busca é ser cantora — a partir da maleta de discos e o início do número musical. A foto da sua vó representa as consequências desse sonho e tudo o que ela está deixando para trás. Em seguida, Sherrie canta a primeira música do mash-up, “Sister Christian” — “Você está se movendo / Qual é o preço de voar?” Qual é o preço de deixar sua cidade de origem em busca do desconhecido? Na performance, passageiros do ônibus se juntam ao coro e temos a sensação utópica de que tudo vai ficar bem.

A garota ingênua, loira de olhos azuis, de uma cidade do interior de Oklahoma, chega na Califórnia em busca de tornar seus sonhos realidade, com os olhos brilhando ao olhar pela janela a cidade grande e a gravadora Capitol Records. Ao chegar em Los Angeles, Sherrie passa agora para as letras de “Just Like Paradise” — “Isso deve ser como morar no paraíso/ e eu não quero voltar para casa”. Durante o número musical, vemos elementos como perseguição policial, garotos olhando e mandando cantadas e garotas festeiras, contrastando drasticamente com a imagem com que a personagem principal é apresentada.

Até aqui, o espectador pensa que está acompanhando a ‘jornada da heroína’ de Sherrie. A partir desse ponto, com o início de “Nothin’ But a Good Time”, somos apresentados a Drew (Diego Boneta), um novo personagem, que também aparece cantando a música desse primeiro mash-up aqui analisado.

É importante destacarmos o que aparenta ser uma abordagem da narrativa de duplo foco apresentada por Rick Altman no texto “The American Film Musical as Dual-Focus Narrative” — ou, ao menos, fragmentos desse conceito. Para Altman, a narrativa de duplo-foco é característica dos musicais “clássicos” e bastante recorrente em produções mais atuais: há a divisão do foco central em uma dualidade binária; acompanhamos a trajetória de dois personagens, um feminino e um masculino; esses personagens, por sua vez, apresentam uma divergência de valores, problemas que serão resolvidos e culminarão em um “matrimônio”, uma “união” no final do filme. Segundo o autor, para que ocorra a interpretação e o total entendimento dessa narrativa de duplo foco, a sequência dos dois personagens deve ser apresentada paralelamente, com o intuito de comparação.

O paralelismo (e, neste caso, a simultaneidade) das cenas dos personagens Sherrie e Drew nos leva a crer que eles virão a se encontrar e até mesmo ter um relacionamento futuro. Enquanto Sherrie, a garota ingênua, aparece andando pela cidade, não estando ciente dos seus “perigos”, Drew aparece fazendo trabalho braçal, carregando o lixo para fora, fazendo serviço noturno em uma casa de show. Sherrie aparece de vestido e cabelos soltos, enquanto Drew está com os braços de fora, exibindo os músculos. Ao cantar sobre como o trabalho é desgastante, percebemos a presença marcante de uma das categorias apresentadas por Richard Dyer ao falar sobre utopias nos musicais: a energia, onde o trabalho é visto como diversão — apesar de estar cansado e querer ser cantor, Drew fica animado com o trabalho no bar e a música que está rolando no palco.

Chegamos então ao tal ponto mencionado anteriormente, de extrema importância e que necessita de atenção nessa análise: a finalização dessa primeira sequência de músicas não acaba com a aparição de Drew, como sugere Altman na sua teoria de duplo foco (com o foco em apenas dois personagens, um homem e uma mulher). Somos apresentados a dois novos personagens: Lonny Barnett (Russell Brand)e Dennis Dupree (Alec Baldwin), cada um com o seu ‘momento’, uma parte de solo, exatamente como Sherrie e Drew.

Aqui que precisamos de atenção na interpretação. Seria essa uma narrativa de duplo-foco? Veja bem, elementos claros como o paralelismo das cenas característico desse tipo específico de musical entre dois personagens (lembrando — um masculino, e um feminino) pode ser estendido para uma apresentação de quatro personagens principais. Poderíamos interpretar como uma narrativa de duplo-foco apenas entre Sherrie e Drew, mas vamos além: começamos a perceber uma apresentação de duas narrativas de duplo-foco simultaneamente, contidas nesse grande mash-up (Sherrie e Drew / Barnett e Durpree) — e isso só é possível a partir da análise do segundo seguimento, que veremos a seguir.

Sherrie no onibus / chegando em Los Angeles;
Drew trabalhando no bar da casa de shows
Barnett performando com “energia”, solução utópica para problemas enfrentados na narrativa (bar cheio, lixo que tinha que ter sido levado, etc.)
Somos apresentados a Dupree, dono do bar.

No segundo número, podemos começar a entender essa presença de dois seguimentos de narrativa de duplo-foco contidas em uma. Agora, apresentam o mash-up Jukebox Hero/I Love Rock ’n’ Roll”. Essa interpretação é possível a partir de elementos como a semelhança em que a câmera enquadra as duas duplas, bem como a semelhança entre suas ações. (Nota: essa é a mesma característica da narrativa de duplo-foco “tradicional”). Assim, como supomos que Sherrie e Drew viriam a se tornar um possível par romântico, somente a partir desse número começamos a identificar que alguma coisa virá a acontecer entre Durpree e Barnett, por associarmos e compararmos as ações a partir do paralelismo e simultaneidade. Mas essa “previsão” de um possível relacionamento entre dois personagens homens pode não parecer óbvia para muitas pessoas — apesar de o filme se passar em 1987, até hoje muitas pessoas ainda não aceitam relacionamentos entre pessoas de mesmo sexo.

Ambas as duplas se divertem ao som do Rock, cantando e dançando
No final do número musical, as duas duplas aparecem se encarando muito próximo
Após se encararem por alguns instantes, ambas as duplas se afastam

Deixando claro: esse sentido de prever o que vai vir a acontecer com os personagens na narrativa de duplo-foco entre os dois homens aparece bastante confusa, não vou negar. O próprio filme vem confundindo a audiência, e apresentando suas versões, por assim dizer, do certo e errado: enquanto Sherrie e Drew é a versão do duplo-foco tradicional, o “romance bonitinho”, o homem e a mulher; a diferença de valores (apesar de ambos serem cantores, trabalham e possuem experiencias de vida diferentes), Dupree e Barnett são apresentados como o alívio cômico — virando motivo para riso. Por que não o casal hétero é o alívio cômico? Mais uma vez o homossexual é motivo para riso — quantas e quantas produções audiovisuais isso já não aconteceu? E quantas outras milhões de outras vezes isso não aconteceu na vida real? Mais adiante, ao finalmente expressarem seus sentimentos, percebemos as reações exageradas e caricatas, enquanto para Sherrie e Drew foi um processo natural.

Mais adiante no filme, Sherrie e Drew aparecem agora com um outro momento de duplo-foco, agora “sozinhos”. Na performance de “Waiting for a Girl Like You” percebemos nitidamente essa comparação entre as dualidades: nessa performance, notamos os elementos bem característicos, como os dois no espelho, os dois passando produtos de beleza e os dois esperando um ao outro na rua. (Aqui não aparece o duplo-foco “não-tradicional”, Dupree e Barnett).

O grande final de Rock of Ages demostra a junção entre a narrativa de duplo foco “principal” analisada (Drew e Sherrie) com uma performance junto à Stacee Jax e todos os personagens secundários do filme. Como vimos, um aspecto do Jukebox musical: toda a narrativa do filme foi montada para culminar nesse momento, na música “Don’t Stop Believin’”, da banda Journey. Uma garota do interior (Sherrie), a busca pelo sonho e não parar de acreditar (ambos querendo ser cantores), se escondendo na noite / trabalhando duro (emprego no strip club/bar). O número musical também apresenta a relação entre sonho e realidade (performance na casa de show/arena), dialogando com a letra da música e representando a efetivação dessa fantasia em torno de ser uma estrela do rock. Esses e vários outros pontos da música nos fazem ter a sensação de que a letra foi escrita para o filme, que emana espontaneamente das narrativas dos personagens.

Considerações finais

Apesar de os clássicos do Rock terem sido muito bem apresentados nos números musicais, percebemos muitos pontos negativos durante o filme. O primeiro deles é o alívio cômico na narrativa de duplo-foco não tradicional, e a presença de uma comparação entre as duas, no início do filme acaba por reafirmar essa impressão. (Apesar de, no final, os números musicais solucionarem utopicamente, claro, os problemas da narrativa — todos terminam felizes para sempre, sem dívidas, com a casa de show em funcionamento e assim sucessivamente.) Os andrógenos também são apresentados como alívio cômico — características como ditas “femininas” não podem estar presentes em homens.

Outro ponto negativo no filme e o mais gritante é a falta de presença de personagens negros e de outras etnias. Mary J. Blige, uma cantora internacional e popularmente conhecida por sua voz poderosa, faz uma pequena participação, que deveria ser melhor elaborada — ela aparece rapidamente como uma “mentora” para Sherrie — é dona de um clube de strip, o “Venus Club” onde Sherrie encontra um emprego em momentos de dificuldade. Novamente, vemos o grande foco na narrativa no duplo foco “principal” de Sherrie e Drew, tirando o espaço de uma possível elaboração da personagem Justice (Mary J. Blige). É apresentado o que poderia ser considerado uma encenação do “fundo do poço” para ambos: enquanto Sherrie trabalha como stripper, Drew acaba entrando em uma boyband (o que pode ser considerado um pesadelo para alguns fãs de rock, um longo debate sobre gosto e gêneros musicais). O personagem latino que trabalha no bar é outro que também é visto como alívio cômico. É interessante pensar que Diego Boneta, o ator interpreta Drew, é latino. Talvez seria algo a acrescentar na narrativa: um romance entre a garota de Oklahoma e um garoto do México.

Sendo assim, vemos uma abordagem diferente da narrativa de duplo foco aqui, mas também outras características que persistem nos musicais, como o mito do entretenimento dos musicais de bastidores, e certa heteronormatividade e “brancura” do gênero musical, também criticada por diversos autores.

Referências bibliográficas:

TAYLOR, Millie. Musical Theatre, Realism and Entertainment. Farnham, England: Ashgate, 2012.

ALTMAN, Rick. “The American Film Musical as Dual Focus Narrative”. In: COHAN, Steven (ed.). Hollywood Musicals, The Film Reader. London, New York: Routledge, 2002

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 1995.

SEO, Jeong Mi, and JAE, Yeong Lee. “Utilization of Pop Music as Musical Contents: A Case Study of Jukebox Musical”. Advanced Science and Technology Letters, vol. 52, SUComS 2014, pp.184–188.

--

--