Smash: Números musicais originais e sua importância narrativa

Rodrigo Chichierchio
Musicais: Utopias no Audiovisual
9 min readAug 6, 2016

Resumo: Este artigo busca analisar como os números musicais originais “SMASH” resolvem questões narrativas da trama da primeira temporada da série. Será analisado como as músicas da montagem do espetáculo musical na série influenciam os personagens, adicionando novos arcos narrativos ou avançando no desenvolvimento de suas trajetórias.

Os musicais foram concebidos, originalmente, por produtores e pela própria audiência, como formas de “entretenimento” em sua essência. O presente trabalho tem por objetivo avaliar a importância narrativa de números musicais originais da primeira temporada da série “SMASH” (Theresa Rebeck, 2012–2013)estudar como tais números influenciam e evoluem a narrativa da série.

Todavia, toda forma de entretenimento precisa criar não só uma identificação com o seu público-alvo, como também suscitar seu interesse. Desta forma, começou-se a perceber que os números musicais cada vez mais se consolidavam como forma e acabavam por resolver problemas, não só narrativos, mas também conseguiam criar uma utopia que resolvia e mascarava problemas presentes na sociedade capitalista. Richard Dyer, em seu texto “Entertainment & Utopia”, estuda e cataloga diversas formas que os números musicais se valem para que consigam resolver estes problemas.

“O bom desta análise é que ela não apenas mostra como o entretenimento funciona. Não é que ele seja um resquício da história, não é apenas showbusiness, ou não é uma coisa forçada e empurrada em cima de nós. Não é também uma expressão de necessidades vitais — O entretenimento dialoga diretamente com necessidades reais criadas pela sociedade. Portanto, ao mesmo tempo que o entretenimento dialoga e responde a necessidade que são “reais”, ele também define e delimita o que constitui as necessidades de toda a população na nossa sociedade”. (DYER, 2002, p. 23)

Richard Dyer evidencia que, para que o efeito “entretenimento” funcione, é preciso que todos os elementos fluam de maneira natural, não sendo “forçados” por ninguém em sua audiência. A identificação deve ser criada de maneira inconsciente, por meio da resolução de problemas REAIS, criados pela sociedade. Portanto, o entretenimento e, mais especificamente, os musicais, funcionam. Eles dialogam diretamente com necessidades da sociedade que são reais e presentes no cotidiano de todos os indivíduos.

Os musicais são bem-sucedidos em trabalhar 5 problemas principais da sociedade capitalista. Dyer os chama de “categorias utópicas” dos musicais e os divide em: “Energia”, “Abundância”, “Intensidade”, “Transparência” e “Comunidade”. Cada uma dessas categorias utópicas é responsável por resolver um determinado “problema” presente na sociedade capitalista, fazendo com que o mecanismo o entretenimento funcione. A categoria “Energia” é responsável por resolver o problema da “exaustão” decorrente das intensas jornadas de trabalho, do trabalho alienado, da pressão da vida urbana, etc. Quando falamos em “Abundância”, observamos números que tem por objetivo resolver o problema da escassez, da pobreza, da má distribuição de renda, etc. “Intensidade” nos transmite a ideia de excitação, de drama, em contraponto com a monotonia e previsibilidade da rotina capitalista. Já a categoria “Transparência” trata dos problemas de manipulação e frieza nas interações sociais, permitindo que haja espaço para uma comunicação aberta, espontânea e verdadeira entre os indivíduos, ou entre eles mesmos. Por último, a categoria “Comunidade” funciona como uma “histeria coletiva”, para balancear a fragmentação e a solidão tão presentes nas sociedades modernas.

Visto estas categorias utópicas citadas por Richard Dyer, podemos pensar que os números musicais não só servem para resolver problemas da sociedade, mas também, acabam solucionando problemas de um microcosmos. Por vezes, os números musicais acabam se tornando formas de resolução narrativas. Na maioria das vezes, o número musical se apresenta como solução a um determinado problema sofrido pelo personagem que, muitas vezes, resulta em uma evolução narrativa. Por evolução narrativa, entendemos a transformação de um personagem, a resolução de um arco narrativo ou a introdução de outro arco ou elementos narrativos.

Toda esta resolução narrativa acaba sendo percebida como uma redenção, algo que acontece de maneira natural e completamente digerível. Caso o espectador não esteja atento, pode cair na conclusão de que aquele número musical é quase como necessário para que exista a resolução dos problemas narrativos e dos personagens. E é exatamente isso que Jane Feuer define como “mito da espontaneidade”.

“Talvez a primeira qualidade que se associe com uma performance musical seja o fato de que elas surgem espontaneamente, advindos de uma atitude feliz e alegre em relação à vida. […]. Os musicais, então, acabam por construir e reivindicar as suas próprias performance “alegres” na vida e na tela. O mito da espontaneidade funciona para construir então a performance musical que, apesar de ser culturalmente construída, aparenta ser totalmente natural.” (FEUER, 2002, p. 32 -33)

Além do mito da espontaneidade, a autora também inclui em seu estudo o “mito da integração”. De acordo com Jane Feuer, o mito da integração é uma tentativa de fazer com que o espectador também participe das conquistas dos personagens, do musical e da resolução de seus problemas. Muitas vezes, a resolução dos problemas dos personagens se confundem com os do musical e os personagens atingem sucesso, caso o musical também o atinja. De acordo com Feuer:

“ […] o musical auto-reflexivo tenta passar por cima dessa divisão através do mito da integração. Ele faz com que a performance musical passe a impressão de que esta seja capaz de gerar amor e um espírito cooperativo que una as pessoas e que passe por cima de todos os obstáculos. Através da identificação do público com os números construídos coletivamente, o mito da integração procura fazer com que a audiência se sinta parte da construção do musical, junto com os atores”. (FEUER, 2002, p. 36)

SMASH é uma série musical criada por Theresa Rebeck, produzida por Steven Spielberg e exibida pela NBC em 2012 e 2013. A série gira em torno da história de um grupo de produtores e compositores que se juntam para produzir um musical da Broadway sobre Marilyn Monroe. Todavia, a trama gira em torno da briga pelo papel principal de Marilyn Monroe entre duas personagens: Karen Cartwright (Katherine McPhee) e Ivy Lynn (Megan Hilty).

Logo no episódio 1.01 “Pilot”, a sequência de “Let Me Be Your Star” exemplifica bem como um número musical serve para adicionar um novo arco narrativo à história. Neste número, podemos ver como o “mito da espontaneidade” é formado e estruturado, visto que a ideia da performance se mistura com a espontaneidade da rotina. Neste número somos introduzidos primeiramente ao que viria a ser a rivalidade entre Ivy Lynn e Karen Cartwright, na briga pelo papel principal de Marylin Monroe. Além disso, durante o número musical também passamos a conhecer mais profundamente o núcleo de personagens.

The 20th Century Fox Mambo, número presente no episódio 1.02 “The Callback”, Karen Cartwright faz sua performance em frente ao time de produtores, diretores e executivos responsáveis por Bombshell, nome do musical principal da série. Este número é importante pois exemplifica claramente a evolução do personagem de Karen. Inicialmente, sua personalidade ainda lembra muito a garota de interior que vem tentar o sonho do estrelato na cidade grande. Durante o número, regado das categorias utópicas “Intensidade” e “Energia”, Karen começa a ganhar outra dimensão e evolui de “aspirante” a “estrela”. Isso fica evidente quando, no final, todo o cenário se transforma e ela é vista como Marilyn, apontando uma grande satisfação e evolução pessoal decorrente da performance.

Let’s Be Bad, música presente no episódio 1.05 “Let’s Be Bad” avança na narrativa sob a outra ponta da corda, nos levando a entender a personagem de Ivy Lynn como Marilyn. Antes do número começar, a personagem de Ivy encontra diversas dificuldades para se concentrar, devido aos últimos acontecimentos de sua vida, principalmente em relação à sua mãe. Frequentemente criticada, Ivy se vê conturbada quando descobre que sua mãe entraria no espetáculo também. Sabendo disso, fica fácil relacionar o número musical em questão com a personagem Ivy. O número enfoca as diversas críticas sofridas por Marylin durante sua carreira e que como mesmo assim, ela conseguiu sair “vitoriosa” e encantar com sua performance. É interessante notar o desenvolvimento da personagem de Marylin durante o número e como ele se relaciona com a satisfação atingida pela personagem Ivy, na narrativa, ao saber que consegue executar o número “perfeitamente”, mesmo após as críticas.

Em History Is Made At Night, música presente no episódio 1.06 “Chemistry”, Ivy Lynn e Michael Swift fazem sua performance enquanto os responsáveis pelo musical avaliam sua performance. Este poderia ser apenas um número normal porque não adiciona em nada quando olhamos pela ótica do desenvolvimento do musical em si. Todavia, o número é importante para o desenvolvimento dos personagens Michael Swift e Julia Houston. A letra e todo o envolvimento do ensaio ressaltam o “affair” que os personagens de Julia e Michael estavam tendo. A letra da música revela e se relaciona intensamente com o caso dos dois personagens, frequentemente ocultados do marido de Julia durante a série. Além disso, a promessa contida na letra desta música acaba entrando em colisão diretamente com as promessas que Julia esperava desse relacionamento com Michael, onde era visto como uma intensa aventura amorosa.

No episódio 1.11 “The Movie Star”, o número musical Dig Deep é um dos mais importantes da trajetória da série. Em determinado momento, Rebeca Duvall é escalada para ser a nova Marylin Monroe, devido a problemas com a popularidade do musical. Os produtores então, resolvem chamar uma estrela já consolidada e, por isso, a escolhem. Este número é o primeiro teste dela com o novo papel e, por isso, se torna tão importante. A performance serve para evidenciar a incapacidade da atriz contratada de cantar e, portanto, cria pânico entre os produtores que precisam decidir quais serão as próximas providências a serem tomadas. Tal número, portanto, tem grande importância narrativa e afeta diretamente como a narrativa se desenrola depois.

A primeira temporada se encerra com o número Don’t Forget Me, cantado por Karen Cartwright, no episódio 1.15 “Bombshell”. Este é o número que melhor exemplifica a integração do sucesso do musical com o sucesso da personagem. Na trama, depois de muitas idas e vindas, Bombshell finalmente consegue ter a sua estreia, apesar dos diversos problemas. Esta trajetória pode ser facilmente relacionada com a trajetória da personagem Karen. Ela atinge o ápice em sua vida assim como o musical atinge seu ápice e encontra o seu sucesso, na noite de estreia. Feuer relaciona o sucesso do musical com o sucesso na vida pessoal dos personagens e isso é exatamente o que acontece aqui. Profissionamente, ela conseguiu o papel principal do musical para o qual havia se candidatado. Todavia, a única área em que não atinge seu sucesso é no amor, visto que ela havia terminado com seu namorado poucas horas antes da estreia do espetáculo. Ainda assim, este fato pode se relacionar com a própria vida de Marylin Monroe, o que acabaria criando uma semelhança ainda mais forte entre o papel oferecido a ela e sua vida pessoal. As letras da música ressoam muito com o momento, principalmente durante o trecho “I’ve suffered each indignity, but now I rise above it all”.

Conclui-se portanto, que, os números musicais originais da série SMASH estão sempre se relacionando com a evolução e desenvolvimento, tanto da narrativa como dos personagens. Visto que a série conta a história da formação de um musical da Broadway, as músicas originais, presentes no musical, não só dão conta de contar a história de Marylin mas também de tecer uma intensa relação com a narrativa e com a vida dos personagens. Assim, fica fácil perceber que o sucesso do musical muitas vezes é refletido como sucesso na vida dos personagens e o fracasso do musical também reflete como fracasso na vida dos personagens. Assim sendo, os números encontram espaço para resolver problemas com respostas utópicas do próprio capitalismo (fama, dinheiro, sucesso), incluir novos arcos narrativos ou ainda incluir mais elementos em tramas já existentes.

Referências bibliográficas:

DYER, Richard: “ Entertainment and Utopia”. In: COHAN, Steven (ed.). Hollywood Musicals, The Film Reader. London, New York: Routledge, 2002.

FEUER, Jane: “ The Self-reflective Musical and the Myth of Entertainment”. In: COHAN, Steven (ed.). Hollywood Musicals, The Film Reader. London, New York: Routledge, 2002.

Anexos — Citações originais (em inglês)

“Perhaps the primary positive quality associated with musical performance is its spontaneous emergence out of a joyous and responsive attitude toward life. […] Musical entertainment thus takes on a natural relatedness to life processes and to the lives of its audiences. Musical entertainment claims for its own all natural and joyous performances in art and in life. The myth of spontaneity operates (to borrow LéviStrauss’s terminology) to make musical performance, which is actually part of culture, appear to be part of nature.” (FEUER, 2002, p. 32 -33)”

“ […] the self-reflective musical attempts to overcome this division through the myth of integration. It offers a vision of musical performance originating in the folk, generating love and a cooperative spirit which includes everyone in its grasp and which can conquer all obstacles. By promoting audience identification with the collectively produced shows, the myth of integration seeks to give the audience a sense of participation in the creation of the film itself.” (FEUER, 2002, p. 36)

“The advantage of this analysis is that it does offer some explanation of why entertainment works. It is not just left-overs from history, it is not just what show business, or ‘they’, force on the rest of us, it is not simply the expression of eternal needs — it responds to real needs created by society. The weakness of the analysis (and this holds true for Enzensberger too) is in the give-away absences from the left-hand column — no mention of class, race, or patriarchy. That is, while entertainment is responding to needs that are real, at the same time it is also defining and delimiting what constitute the legitimate needs of people in this society.” (DYER, 2002, p. 23)

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