The Rocky Horror Picture Show: A Trajetória de Janet

Resumo: O objetivo deste artigo é observar a trajetória de Janet (Susan Sarandon) no filme The Rocky Horror Picture Show (Jim Sharman, 1975), uma personagem que é estereótipo da mulher pura e virginal destinada ao casamento que, devido aos acontecimento da trama, passa por um processo de descoberta sexual inusitado. Deste modo, pretendo fazer uma análise cênica refletindo sobre as questões femininas da sociedade de lógica patriarcal em que a mulher exerce uma função de esposa desprovida de desejo sexual.

Janet (Susan Sarandon)

Logo na primeira cena de The Rocky Horror Picture Show já vemos os personagens Janet e Brad em uma igreja celebrando o casamento do casal de amigos Ralph e Betty, Janet obviamente pega o buquê. Neste momento já percebemos como funciona a lógica do casal. Janet exerce a função de mulher desesperada por um pedido de casamento, sua atitude é exagerada, sonhadora e cheias de emoção. Brad exerce a função do homem em dúvida com o pedido, controlado e racional. Ambos parecem ter a certeza que o único destino possível para sua relação heteronormativa é o casamento.

Quando o casal de amigos parte para a lua de mel, a frase escrita no carro chama a atenção“Espere até hoje a noite! Ela teve o dela, agora ele vai ter o dele!”, deste modo mulheres desejam o romantismo do casamento; homens querem sexo. O desejo sexual das mulheres é irrelevante nessa construção; este também é um constructo muito comum do casamento heterossexual tradicional.” (MAYER e ARAUJO, 2013, p. 3085).

Cena1 : The Rocky Horror Picture Show

Esta representação da relação normativa do papel do homem e da mulher é complementada com a conversa entre Brad e Janet sobre o casal de amigos, Brad caracteriza Betty como uma “ótima cozinheira” e fala sobre o Ralph ser promovido, como se o papel da mulher fosse exercer o trabalho de esposa, e do homem trabalhar para colocar comida na mesa. Logo se pensa que esse é o destino de Janet.

O primeiro número do casal, “Damn it, Janet”, começa com Brad fazendo o pedido de noivado, curiosamente em um cemitério o que parece ser uma analogia de que casamento é igual a morte. Janet age de uma forma que pode ser caracterizada como um tanto fútil:

[…]competições acerca do valor do anel de noivado e da importância do fato de Brad ter conhecido seus pais. Seu refrão, Brad, I’m mad, caracteriza Janet como excessivamente emocional, o que está de acordo com o estereótipo da mulher apaixonada (MAYER e ARAUJO, 2013, p. 3086).

Uma observação interessante para este número musical é a demonstração de afeto constante de Janet, o que já representa uma quebra no tabu de que a mulher é desprovida de desejos sexuais. Segundo, Kristina Watkins-Mormino, isso demostra que ela está pronta tanto para o casamento como para o início da vida sexual. Esse é um fator importante para os acontecimentos futuros no Castelo de Frank N´Further:

Janet, como a mulher, deveria querer casamento acima de tudo, e é verdade que ela parece desesperada para ter um pedido de casamento de Brad, avidamente pegando o anel de noivado quando cai no chão. No entanto, suas tentativas iniciais mal-sucedidas de beijar e abraçar Brad revelam que sua sexualidade já está brotando (WATKINS-MORMINO, 2008, p. 161).

Em seguida, Janet e Brad decidem embarcar em uma viagem para encontrar seu antigo professor e amigo Dr. Scott. Em seu trajeto, começa uma tempestade e o carro quebra. Neste momento Brad decide sair sozinho para pedir um telefone em um castelo próximo, este é um momento em que ele se aproveita para tentar exercer seu “papel” de homem protetor. Janet logo age como mulher irracional ciumenta que pede para ir junto, não por que quer ajudar, mas por que segundo ela “a dona do telefone pode ser uma mulher muito bonita”.

The Rocky Horror Picture Show se trata de uma paródia das relações sociais de uma época, mesclando a ideia de herói e heroína encontrados nos filmes de terror e ficção científica. Quando o casal entra no castelo, “[p]or ser uma paródia, o filme se utiliza do exagero para ampliar esses estereótipos, apostando inclusive nas expressões exageradas dos atores, como por exemplo as caras de horror de Janet […]” (MAYER e ARAUJO, 2013, p. 3084). Percebemos esses sinais quando o casal entra no castelo e conhece seus moradores na música “Time Warp”: Janet desmaia muitas vezes de forma bastante exagerada, e Brad a todo tempo tenta acalmá-la de forma “racional”. Deste modo percebemos que a personagem de Janet não passa de um estereótipo de como as personagens femininas são representadas nesses gêneros de filmes,

“[…] o verdadeiro conceito de estereótipo em um nível denota ‘não ter individualidade, como se feito a partir de um molde’. Ironicamente, esta mesma noção de uniformidade constitui um estereótipo na representação das mulheres nos filmes. Pensamos na personagem feminina na tela em termos de estereótipos com um reflexo que não é automático no caso dos personagens masculinos.” (FISCHER, 1976, p. 4).

Neste número somos apresentados também a Magenta e Columbia, duas personagens femininas que são exatamente o oposto do que Janet representa. Magenta é a serviçal maquiavélica que tem uma relação mais do que fraternal com seu irmão Riff Raff: em “Time Warp” ela canta em tão orgástico sobre voyeurismo e como isso à excita, de fato ela é a personagem que tudo observa no castelo. Columbia é uma das amantes de Frank, que também também é apaixonada pelo sobrinho de Dr. Scott, os três formavam um triângulo amoroso até que Frank decide criar Rocky. Tanto Columbia quanto Magenta possuem sexualidade bastante aflorada, elas representam o que Janet virá a se tornar no fim de sua trajetória.

No número “Sweet Transvestite”, Brad e Janet são apresentados ao cientista do planeta Transylvania Dr. Frank´N Further. Em seguida, eles são levados para seu laboratório. Neste momento, sentimos que Janet começa a mudar de atitude, seu jeito assustado dá lugar à excitação. Ela tenta agir da forma que Brad consideraria apropriada, mas ao mesmo tempo acaba agindo de forma espontânea. Em certo momento, ela aplaude o discurso de Frank, Brad olha com desaprovação para ela. Antes da música “I Can Make You a Man”, Frank pergunta o que ela acha de Rocky:

“Janet lança um olhar nervoso para Brad, e responde, ‘Bom, eu não gosto de homens com muitos músculos’ e então olha de volta para Brad procurando aprovação. Mais tarde, quando Frank está cantando e comemorando com orgulho o ideal de físico masculino que Rocky representa, Janet surpreende a todos cantarolando ‘Sou fã de músculos!’ Brad imediatamente acaba com o entusiasmo ao lançar um olhar de choque e desaprovação.” (WATKINS-MORMINO, 2008, p. 164).

Durante o filme, temos a impressão de que tanto Janet quanto Brad são virgens, mas essa palavra nunca é de fato dita. Percebemos que para Brad essa informação passa totalmente desapercebida, como se para o homem isso não fosse uma questão — no entanto, para Janet, a castidade é declarada mais de uma vez. Durante a noite quando o casal é colocado em quartos separados, Frank se disfarça de Brad para visitar Janet. Quando ela o desmascara, primeiramente resiste, então eles entram em um jogo de sedução em que Janet diz “Eu estava me guardando” (“I was saving myself”), mas por fim acaba se rendendo aos seus desejos sexuais. Mais tarde, quando Frank faz o mesmo jogo com Brad, ele em momento nenhum fala que estava se guardando para Janet. Na sociedade heteronormativa, a virgindade do homem raramente é colocada a prova, isso por que não existe um tabu quanto ao sexo antes do casamento para homens. Como Janet é a representação da mulher modelo, isso é salientado, pois o destino de sua personagem fora do castelo é perder a virgindade apenas no casamento.

Na cena seguinte quando Janet fica sozinha, ela começa a sentir-se culpada por sua traição à Brad:

“Fundamentalmente, nada mudou para Janet, cujo remorso deriva de uma sensação de ter transgredido as leis a qual ela sempre foi sujeita — as diretrizes de que ela se casaria com Brad e entregaria sua virgindade a ele, assim como o buquê havia predestinado. Ela não passou de verdade por um estágio de maturidade, ela fervorosamente deseja desfazer o que já estava feito.” (WATKINS-MORMINO, 2008, p. 164).

Até que ela descobre, através de um monitor, que o noivo também a traiu. Janet, então, é tomada por uma sensação de raiva. Quando encontra Rocky machucado, ela começa a sentir desejo por ele, e canta a música que representa o clímax de sua libertação sexual “Touch-A Touch-A Touch-A Touch Me”. No início da música, ela mais uma vez revela sua castidade, quando diz que só havia beijado até agora (“I have only ever kissed before”), provavelmente ela se referia à Brad. No entanto, esse é o momento em que ela de fato admite para si mesma o desejo que em toda sua vida foi ensinada a reprimir, ela finalmente se vê como um criatura sexual: “A verdadeira passagem de Janet para a maturidade sexual ocorre não quando ela entrega a sua virgindade corporal, mas quando ela reconhece e persegue suas próprias fantasias.” (WATKINS-MORMINO, 2008, p. 164–165).

Em uma das cenas finais, quando é apresentada a música “Rose Tint My World”, alguns personagens cantam sobre como a experiência do castelo os modificou, vestidos como Frank. Percebemos que Brad considera toda a experiência no castelo como um sonho, sua sexualidade segue reprimida a todo momento no filme por fugir à experiência heterossexual a qual sempre foi ensinado. Janet, por outro lado, canta que sua experiência no castelo mostrou a verdade sobre quem ela realmente é, pois, como dito anteriormente, ela sempre esteve preparada interiormente para uma experiência sexual, seja como mulher casada ou não. Ela não é mais a mulher pura e recatada do início do filme, Janet foi capaz de experimentar toda a sexualidade que estava dentro dela, sentindo-se livre e mais confiante.

Por fim , quando o Dr. Frank, Rocky e Columbia morrem e Riff Raff e Magenta levam o castelo de volta para Transylvania, ficamos sem saber o destino final de Brad e Janet. Sabemos que

Brad e Janet já não são mais os mesmos, e certamente que o seu próprio casamento não continuará da mesma forma que eles imaginaram no início do filme […] o filme quebra com a expectativa do acontecimento do casamento dos dois personagens como o próximo passo de suas vidas, e quebra com uma expectativa em relação ao próprio filme, na medida que numa narrativa cinematográfica mais tradicional o desfecho seria o casamento ou uma previsão de que eles casariam em um futuro próximo.” (MAYER e ARAUJO, 2013, p. 3089).

Considerações finais

Concluindo, podemos notar uma certa inversão nos papéis de Janet e Brad. Na sociedade patriarcal Janet representa a mulher sexualmente reprimida, e de fato essa é sua situação no início do filme. Seu figurino, seu modo de agir e seu temperamento representa uma paródia do que a mulher ideal, destinada ao casamento, deveria ser. No entanto, sua personagem sofre uma transformação desses padrões, que só foi possível por que seu desejo sexual já se encontrava dentro dela de forma reprimida. No castelo de Dr. Frank, ela passa por uma experiência que ela já se encontrava pronta pra vivenciar, quebrando com o tabu de que a mulher exerce uma função de esposa desprovida de desejo sexual. Porém, esse tabu é quebrado somente dentro do castelo, a resolução final do filme não mostra como essa transformação irá afetar sua personagem no mundo “real”.

Referências bibliográficas:

WATKINS-MORMINO, Kristina. “The Cult and Its Virgin Sacrifice: Rites of Defloration in and at The Rocky Horror Picture Show.” In: WEINSTOCK, Jeffrey Andrew. Reading Rocky Horror: the Rocky Horror Picture Show and Popular Culture. New York: Palgrave Macmillan, 2008. p. 157–172.

MAYER, Claudia Santos e ARAUJO, Tatiana Brandão. “A normatividade e a norma: o queer em The Rocky Horror Picture Show”. In: IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem — I Encontro Internacional de Estudos da Imagem, vol. 1, Londrina, 2013, p. 3080–3091.

Fischer, Lucy. “The Image of Woman as Image: The Optical Politics of ‘Dames’”. Film Quarterly, Vol. 30, No 1, 1976, p. 2–11.

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