The Rocky Horror Picture Show: Subversão ou Perpetuação?

Max Rumjanek
Musicais: Utopias no Audiovisual
8 min readAug 6, 2016

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Resumo: Este artigo pretende analisar o longa-metragem The Rocky Horror Picture Show (Jim Sharman, 1975), focando na forma em que questões de identidade e papéis de gênero e sexualidade são representadas no filme, apontando instâncias nas quais o filme subverte conceitos normativos referentes a tal pauta, em contraposição a instâncias em que o filme perpetua tais noções convencionadas pela sociedade.

O longa-metragem musical The Rocky Horror Picture Show (Jim Sharman, 1975) adentrou o cânone audiovisual ao tomar o público mundo afora de assalto, não só por conta de sua representação subversiva dos conceitos de gênero e sexualidade, como por seus números musicais vivazes e extravagantes, infundidos da sonoridade do rock ’n’ roll primordial dos anos 50 e por sua trama caótica, de difícil leitura imediata. 41 anos depois, a obra ainda é objeto de estudo, como no caso desse artigo, que se propõe a analisar as pautas e conceitos nele apresentados.

Já na sequência dos créditos iniciais, é invocado o mote da androginia e da nebulosidade dos limiares de gênero que perpassará a obra, com um par de lábios desencarnados femininos, pertencentes à atriz Patricia Quinn, cantando a canção de abertura, dublados por uma voz masculina, de Richard O’Brien, responsável pela concepção do musical. Essa ambivalência se prova recorrente no decorrer do filme, com a introdução de personagens que incorporam plenamente tal indistinção, como é o caso do icônico Dr. Frank N. Furter, figura mais reconhecível do longa, vivido por Tim Curry. Em sua primeira canção, Frank declama: “I’m just a sweet transvestite from Transexual, Transylvania”(“Eu sou apenas uma doce travesti de Transexual, Transilvânia”). Ao longo do filme, Frank se propõe, com a ajuda de seus exóticos assistentes, a desconstruir a estrutura sob a qual a relação de Brad e Janet, o casal de protagonistas, se sustenta, seduzindo-os e expondo-os a um universo carnal que transcende a rotina mundana deles.

Brad (Barry Bostwick) e Janet (Susan Sarandon)

Entretanto, para além da representação de personagens que rompem com as normas identitárias convencionadas pela sociedade, qual seria a mensagem subjacente da obra de Sharman e O’Brien? Em primeira instância, pode-se enxergar o filme como sendo um desafio ao status quo, subvertendo e invertendo parâmetros aos quais o público estava condicionado a esperar. Scott Miller traz uma reflexão interessante quanto à dicotomia do “normal” e do “transgressor”, na análise contextual da participação de Brad e Janet na trama frente às transformações que se davam, conjunturalmente, nos Estados Unidos:

Rocky Horror dispensa totalmente da noção de “normal”. Brad e Janet, duas pessoas que seriam consideradas normais sob quase quaisquer outras circunstâncias, são, nesse caso, os esquisitos, os forasteiros, os incomuns. A referência para o que é e o que não é normal é destruída, à medida que o mesmo fenômeno se dava na América. O que era normal na década de 1950 […] já não era mais a norma. Com o início da década de 1970, os hippies dos anos sessenta estavam tendo filhos e criando famílias. Agora, pais estavam fumando maconha. Adultos frequentavam festas de swing. O normal não era mais normal. E o que era mais assustador para determinadas pessoas — a ideia de normal não estava apenas mudando, ela estava caindo aos pedaços inteiramente, em algumas partes da cultura. (MILLER, 2011)

Uma manifestação evidente da subversão presente no filme pode ser observada na supracitada dinâmica entre os personagens de Dr. Frank N. Furter e Brad e Janet. Frank, ao seduzir e se relacionar sexualmente com ambos integrantes do par, simultaneamente suscita a ruptura dos votos de castidade do casal, como também rompe, no processo, com a estrutura monogâmica do relacionamento deles e até mesmo com a percebida sexualidade de Brad. Tais rupturas afetarão permanentemente a relação e percepção do casal, que se encontra fortemente transformado ao final do filme.

Deflagra-se ainda nova subversão na transformação vivida pelos dois componentes do casal ao final do filme, que apresentaram reações diametralmente opostas às experiências vividas no decorrer da história, de modo a inverter a dicotomia preestabelecida da relação: enquanto que Janet se sente liberada e revigorada pelas relações sexuais que teve no castelo onde o filme se passa, Brad se vê traumatizado e perturbado pelos mesmos. Scott Miller sintetiza tal discrepância, referindo-se a um número musical próximo ao clímax do filme:

Ocorre uma inversão de papéis na performance no palco. Janet e Brad trocaram de lugar. Enquanto que Janet era a mulher “fraca” que necessita de proteção no início da história, agora ela é a pessoa forte. Ela adquiriu poder ao expressar sua sexualidade tão livremente. Ela está no comando de sua vida agora. […] E na mesma medida que Janet ganhou poder, Brad perdeu todo o seu. Ele passou de ser o caçador-coletor-protetor àquele que chora por sua mamãe. Ele está perdido nesse mundo, o mesmo mundo em que Janet está finalmente se encontrando. Assim como mulheres americanas reais fizeram durante e após a Segunda Guerra Mundial, Janet descobriu que há mais na vida do que ser uma dona de casa, e ela jamais poderá retornar à maneira que as coisas eram antes. (MILLER, 2011)

Ademais, o experimento executado pelo doutor no filme pode configurar-se como outra subversão: ele pretende criar o espécime humano perfeito, visando consumar relações carnais com o mesmo e atingir graus apicais de prazer. O espécime em questão é Rocky, um homem de físico escultural. A objetificação de Rocky, personagem que efetivamente existe, dentro da trama, apenas para satisfazer Frank N. Furter sexualmente, pode ser vista como uma resposta em contrapartida à norma hollywoodiana, que historicamente atribuía (e segue atribuindo) esse papel a mulheres no cinema.

A indumentária marcante de Frank N. Furter, que usa, no filme, um espartilho, meia-calça e saltos altos, pode ser inspirada, segundo Emily Asher-Perrin, na figura de David Bowie, que revelara sua bissexualidade no início da década de 1970, e adotara para si trajes tipicamente percebidos como femininos, além do então emergente movimento glam rock, também centrado, esteticamente, em androginia. Tal figurino pode causar um aparente contraste com a sonoridade nostálgica das faixas que compõem a trilha sonora do filme, remetentes ao roots rock de duas décadas antes. Mas Emily Asher-Perrin destaca a maneira que o longa lida com tal dicotomia ao chamar atenção para a sequência na qual Frank, que é, na realidade, extraterrestre, brutalmente executa seu ex-amante Eddie, representado como um arquétipo de tais tempos passados, com uma picareta. Nas palavras de Asher-Perrin, “a ciência alienígena mutilou os milkshakes e hambúrgueres, a exploração sexual orgulhosa trucidou as apalpações nas traseiras de carros, e o glam simplesmente assassinou o bom e velho rock ’n’ roll.” (ASHER-PERRIN, 2012).

Sendo assim, configura-se, então, mais uma ruptura do longa com as estruturas conservadoras que o antecederam. Entretanto, uma série de questões apresentadas no filme, intencionalmente ou não, parecem contestar a visão, em primeira instância, quanto ao encorajamento de tais rupturas e à liberdade, para além de possivelmente perpetuar visões estereotípicas advindas do mesmo sistema conservador pretensamente combatido pelo longa. O personagem de Frank N. Furter, representando a rejeição e o não-enquadramento em noções lineares de gênero e sexualidade, é caracterizado como alguém cuja existência é dedicada integralmente ao sexo, sem nuances que sugiram a presença de outras pautas em sua vida, o que converge com visões preconceituosas traçadas comumente acerca de integrantes da comunidade LGBT. O fato de ele ser, diegeticamente, um alienígena, também fomenta a exotização, segregação e, no caso do filme, literal desumanização da figura do transsexual.

Dr. Frank N. Furter (Tim Curry)

Adicionalmente, no clímax do filme, dois dos servos de Frank N. Furter o notificam que seu experimento na Terra fracassou, condenando-o por seu estilo de vida lascivo e insinuando a insustentabilidade do mesmo antes de o executarem com uma arma laser. Essa conclusão, de leitura ambígua (podendo o filme estar tomando o partido dos executores ou de Frank N. Furter) remete, de certa forma, às conclusões de incontáveis produções audiovisuais da Era Hays, na qual um código extremamente conservador impunha resoluções em que aqueles que desviassem das normas rígidas e reacionárias vigentes à época deveriam pagar por isso, reforçando o status quo e restabelecendo a “normalidade”. Por essa ótica, a resolução de The Rocky Horror Picture Show parece sugerir um viés conformista, conferindo um tom de certa futilidade na tentativa de derrubar os paradigmas que regem a sociedade exibidos no longa.

Em contraposição a tal interpretação, pode-se enxergar os personagens de Riff Raff e Magenta, os executores em questão, como antagonistas, representando a força com a qual o sistema reprime qualquer manifestação de rebelião contra os dogmas por ele impostos. Ainda assim, remanesce uma certa dúvida quanto aos intuitos de Furter que, a despeito de seu discurso de liberação sexual e amor livre, se vê enciumado quando descobre que Janet teve relações sexuais com Rocky, sua criação, exibindo certa hipocrisia em sua filosofia de vida. Soma-se a isso um atrito crescente entre o doutor e seus hóspedes, culminando na petrificação e subsequente lavagem cerebral dos mesmos pelo doutor, manipulados a virarem escravos sexuais de Frank N. Furter, em detrimento de seu livre arbítrio.

Observa-se, em linhas gerais, em análises de estudiosos como Emily Asher-Perrin e Scott Miller, uma visão de que The Rocky Horror Picture Show finda por, em igual medida, celebrar as liberdades, experimentações e subversões das percepções dogmáticas da sociedade, como também criticar seus extremismos. Entretanto, a visão de que deve-se haver um limite para o iconoclasmo e a ruptura com as normas é, por si só, em algum grau, um reforço das mesmas normas criticadas pela obra.

Dessa forma, pode-se concluir que o longa-metragem The Rocky Horror Picture Show, embora se apresente como um audacioso projeto que desafia as convenções e propõe revoluções na maneira de se portar e agir, possui ainda em seu conteúdo elementos que reafirmam as convenções previamente desafiadas no decorrer da obra, atingindo, finalmente, um platô de ambivalência temática que nubla sua mensagem e a torna, de certa forma, igualmente passível de apropriação ideológica por mentes progressistas e conservadoras.

Referências bibliográficas:

ASHER-PERRIN, Emily. “The Astonishingly Non-Nonsensical Plot of The Rocky Horror Picture Show”. Disponível em: http://www.tor.com/2012/10/31/the-astonishingly-sensical-plot-of-the-rocky-horror-picture-show/

MILLER, Scott . Sex, Drugs, Rock & Roll, and Musicals. Boston: Northeastern University Press, 2011. Capítulo 6 disponível em: http://www.newlinetheatre.com/rockychapter.html

WEINSTOCK, Jeffrey Andrew. Reading Rocky Horror: The Rocky Horror Picture Show and Popular Culture. New York: Palgrave MacMillan, 2008.

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