Afeto e performatividade queer na performance de “Esse Cara” em “Tatuagem” (2013)

Resumo: Esse trabalho se propõe a analisar, a partir do parametro do musical clássico hollywoodiano, como a performance da canção “Esse Cara”, no filme Tatuagem, rompe com padrões do “gênero” — na ambiguidade do termo — ao permitir uma potencialização dos afetos queer, dos quais a narrativa não consegue dar conta sozinha.

Tatuagem (2005)

Ah! Que esse cara tem me consumido
A mim e a tudo que eu quis
Com seus olhinhos infantis

Como os olhos de um bandido
Ele está na minha vida porque quer
Eu estou pra o que der e vier
Ele chega ao anoitecer
Quando vem a madrugada ele some
Ele é quem quer
Ele é o homem
Eu sou apenas uma mulher

(“Esse cara”, de Caetano Veloso)

Desde seu lançamento, Tatuagem (Hilton Lacerda, 2013) causou um frisson na pesquisa de cinema no Brasil, por muitos motivos. Pelo ousadia narrativa e estética, característica do Novo Cinema Pernambucano, pela abordagem quase inédita de uma temática essencial à formação de uma história LGBTQ+ brasileira, pela potência da encenação dos corpos e sua representação, entre muitas outras coisas (SANTOS JÚNIOR, 2015; GALVÃO, 2017). O aspecto que analisaremos neste trabalho é a questão de “gênero” no filme — no sentido ambíguo da palavra: o gênero cinematográfico, e o gênero enquanto papel social; ambos construções arbitrárias. No primeiro caso, a discussão é mais teórico-analítica que qualquer outra coisa: o filme tem inúmeras sequências musicais e de dança, que entremeiam, tensionam, e potencializam a narrativa, além de aproximações inegáveis com um certo modelo de musical — em termos de linguagem, narrativa e estética. Porém, o que realmente nos vale é perceber que esses números são mais que isso, são performances, cuja potência vai além de complementar a narrativa pela pura enunciação; eles provocam de fato uma ruptura de gênero — na segunda acepção do termo — que a narrativa não é capaz de dar conta.

Para entender melhor o proposto, analisaremos um trecho específico do filme, presente na altura dos 22 minutos de duração, que mostra o primeiro contato do casal principal. Fininha (Jesuíta Barbosa) chega ao Chão de Estrelas à procura de seu cunhado Paulinho (Paulete, para os íntimos), e acaba por conhecer Clécio (Irandhir Santos), com quem (re)descobrirá sua identidade e transformará sua visão de mundo em meio a uma tempestade política e cultural na capital pernambucana. Esse encontro acontece pela primeira vez em um esquema que Richard Dyer (2002) denominaria utópico: Clécio, envolvido de glitter e plumas, entoa a canção “Esse Cara” de Caetano Veloso, primeiro para a plateia diegética do Chão de Estrelas e, com o andar da música — e do personagem — , também para um espectador em particular, um amante em potencial, um complemento para o eu-lírico da canção: Fininha. Depois disso, os dois conversam, na mesa do bar, e já têm sua primeira noite de amor — cuja cena poderíamos considerar, em si, uma performance.

Clécio, quase travestido, flerta com Fininha (em primeiro plano, fora de foco). Nesse momento, o primeiro encontro do casal, a narrativa é “pausada” para dar lugar a um agenciamento de afetos que ela mesma não poderia propor.

Porém, a leitura acima pode direcionar uma apreensão “não musical” do filme, encaixando os acontecimentos em uma cadeia de causalidade, preenchida por motivações e desejos de um protagonista. Ao estudar o musical clássico americano, Rick Altman propôs uma outra possibilidade de leitura para o gênero, e ela cabe muito nessa análise. Ele chamou o método de Narrativa de Duplo Foco,

“construída paralelamente ao redor de estrelas de sexos opostos e valores radicalmente divergentes. Essa estrutura de duplo foco exige que o espectador se sensibilize não tanto com a cronologia e a progressão — até porque o resultado do encontro homem/mulher é totalmente convencional e portanto deveras previsível — mas à simultaneidade e à comparação” (ALTMAN, 2002, p. 42).

Desse modo, é possível observar, na sequência, como Fininha e Clécio são representados e qual a função deles, narrativamente falando, nesse momento do filme. Fininha está adentrando um universo estranho a ele, repleto de dissidências e rupturas com o que ele viveu até ali. Ele está tímido, retraído, desconfortável. Por outro lado, Clécio tem, no palco do Chão de Estrelas, a sua verdadeira casa, e sua extroversão se traduz na performance da canção — e na sequência narrativa que se segue.

Pudemos perceber que a leitura de Rick Altman inclui que esse duplo foco narrativo reproduz, também, estruturas de gênero. Mais adiante no texto, ele infere o seguinte:

Numa inspeção atenta (…) podemos distinguir uma oposição secundária, ainda que essencial, ao lado da divisão sexual inicial: cada sexo é identificado com atitudes, valores, desejos, lugares particulares (…). Esses atributos secundários sempre começam diametricamente opostos e mutualmente exclusivos (ALTMAN, 2002, p. 48)

De certo modo, podemos perceber em Clécio e Fininho um reflexo dessa dualidade, mas é a partir daqui que começa o rompimento de fato com o modelo clássico de musical. Clécio, apesar de todos os elementos femininos que traz consigo durante a performance — e apesar de literalmente declamar ser “apenas uma mulher” — , é um homem, pelo menos em termos narrativos. Assim que a performance acaba, a encenação passa a se tratar de um casal homossexual, e, portanto, a ideia de Altman sobre os papeis de gênero precisa ser redirecionada nessa análise.

E é a partir da função da performance que reordenaremos os papeis. Elena Del Río, em seu extenso trabalho entitulado Powers Of Affection, vai dedicar uma longa reflexão sobre o papel de afeto — ou seja, de “afetar” — que o corpo performático tem no objeto audiovisual, em contraponto a uma narração meramente representativa:

Enquanto evento, a performance é livre de qualquer realidade ou estrutura pré-concebida. Em seu sentido ontológico fundamental, a performance dá a luz ao real. Enquanto a representação é mimética, a performance é criativa e ontogênica. Na representação, a repetição da á luz ao mesmo; na performance, cada repetição ordena seu próprio e único evento. A performance suspende todas as prefigurações e distinções estruturadas, para se tornar o evento pelo qual novos fluxos de pensamento e sensação podem emergir (DEL RIO, 2008, p. 4)

Portanto, se considerarmos o número de “Esse Cara”, uma performance, e não uma representação, observamos que Clécio passa a ser o veiculador de uma materialidade para além da narrativa, de um “evento”, que reordena fluxos de pensamento e de sensação. A performance cumpre seu papel de liberdade e criação e extravasa a narrativa, deslocando dela o foco de atenção. Esse deslocamento, que na verdade é o que Christian Borges vai chamar de “coração selvagem do cinema” (BORGES, 2014) que permite que o filme enderece aspectos que a pura encenação mimética, estruturada na clássica cadeia narrativa, não seria capaz.

Nesse caso, o reordenamento é do próprio papel de gênero, uma vez que o eu-lírico da canção é feminino e Clécio entoa a canção com uma voz aguda, com trejeitos atribuídos a mulheres, com roupas, maquiagem, enfim, quase travestido. Porém isso não é o suficiente para atestarmos uma verdadeira ruptura. O que realmente provoca “novos fluxos de pensamento” é a androginia, traduzida nos estudos queer como um dos aspectos mais iminentes do camp: a plateia diegética do Chão de Estrelas sabe que Clécio é homem, o espectador que aceitou o pacto proposto pela encenação sabe que Clécio é homem, etc. Essa teatralidade andrógina, que é uma representação mais do que evidente de uma “sensibilidade gay” (BABUSCIO, 2004, p. 123), ganha uma potência ainda mais intensa quando colocada sob a lente do afeto.

O corpo de Clécio passa a ser, dentro das proposições de Del Río, um corpo performático, que “apresenta a si mesmo como uma onda de afeto, um evento-expressão que faz do afeto uma materialidade visível e palpável” (DEL RÍO, 2008, p. 10). O principal “corpo afetado” porém, é o de Fininha, que vai ter sua materialidade transformada por aquela performance.

Luiz Guilherme dos Santos Junior, pesquisador da PUC-RS, faz uma análise geral sobre esse aspecto do corpo em Tatuagem. Ele recorre, entre outros, a Michel Foucault, que, em uma entrevista, falou sobre o papel do cinema e sua função política de desconstruir paradigmas:

De acordo com Foucault (2001, p. 366), “a meticulosidade, o ritual, a forma cerimonial rigorosa que assumem todas as cenas de Sade excluem tudo o que poderia ser jogo suplementar da câmera”. Em contraponto, o autor refere-se a um tipo de cinema que permita recriar a “organicidade do corpo”, ou seja, desconstruir as hierarquias que restringem os movimentos (…). Nesse sentido, o cinema precisa “desmantelar essa organicidade: isso não é mais uma língua que sai de uma boca, não é um órgão da boca profanado e destinado ao prazer de um outro” (FOUCAULT, 2001, p. 367). Por isso, a câmera, nessa perspectiva, tem um papel primordial de agenciar intensidades através de ângulos obtusos, linhas de fuga, prazeres que desorganizem as formas e discursos comuns no tocante ao prazer. (…) Foucault (2001, p. 370) ratifica a necessidade de elaborar outras experiências cinematográficas, com base em aspectos não disciplinares no que concerne às imagens do corpo: “é preciso inventar com o corpo, com seus elementos, suas superfícies, seus volumes, suas densidades, um erotismo não disciplinar: o do corpo em estado volátil e difuso, com seus encontros ao acaso e seus prazeres não calculados”. Mais do que uma “encenação” do corpo diante da câmera, o cinema pode agenciar perspectivas artísticas que façam do corpo um agente utópico. (SANTOS JUNIOR, 2015, p. 2)

Clécio, aqui, transfigurado e ressignificado, portador e produtor de sentido estético e narrativo, e, principalmente, agenciador de afetos — e não de quaisquer afetos, mas “homoafetos”, afetos queer, vai ser esse agente utópico clamado por Foucault. De certo modo, esse pensamento se alinha com o pensamento de Richard Dyer sobre o musical clássico, no qual o número musical teria também uma função utópica, seguindo essa definição

O entretenimento oferece a imagem de “algo melhor” para onde escapar, ou alguma coisa que queremos profundamente nossa vida cotidiana não dá conta de providenciar. Alternativas, esperanças, desejos — essas são as questões da utopia, a sensação de que as coisas poderiam ser melhores, de que algo diferente do que é agora pode ser imaginado e talvez realizado (DYER, 2002, p. 20).

Reaproximando o filme das leituras sobre o musical clássico estadunidense, o “algo melhor” proporcionado pelo entretenimento, aqui apresentado na forma do número musical, é a liberdade sexual, pensando na narrativa do casal que virá-a-ser; ou até mais além, uma não-conformidade com os papéis de gênero, monolitos que perduram apesar de tudo, pensando na potência queer de deslocamento provocado pela estética e pela ousadia da performance.

Considerando tudo isso, se não podemos colocar Tatuagem dentro do guarda-chuva dos musicais, definitivamente podemos o fazê-lo no guarda chuva das utopias queer. As cenas que compõem o trecho analisado são cenas chave para o filme e para o entendimento das possibilidades que uma performance tem, dentro de uma narrativa, de desmontar pressupostos e criar novas histórias, novas vidas, novos mundos, porque, como insiste Elena Del Río, a performance é um evento único. Por esses e muitos outros motivos, “Esse Cara”, em sua ontogenia, propõe uma abordagem histórico-cultural mais do que essencial para a criação de uma cultura queer legitimamente brasileira.

Referências bibliográficas

ALTMAN, Rick. “The American Film Musical as Dual-Focus Narrative. In: COHAN, Steven” (Org.). Hollywood Musicals, The Film Reader. London: Routledge, 2002. p. 41- 52.

BABUSCIO, Jack. “Camp and The Gay Sensibility”. In: BENSHOFF, Harry; GRIFFIN, Sean. Queer Cinema, The Film Reader. New York: Routledge, 2004. p. 117–135.

BORGES, Christian. “Mais perto do coração selvagem (do cinema)”. In: GONÇALVES, Osmar. (Org.). Narrativas Sensoriais: Ensaios sobre cinema e arte contemporânea. Rio de Janeiro: Circuito, 2014. p. 41–59.

DEL RÍO, Elena. Powers of affection: Deleuze and the cinemas of performance. Edinburg University Press, 2008.

DYER, Richard. “Entertainment and Utopia”. In: Only Entertainment. London: Routledge, 2002.

GALVÃO, Giovana Ciannella. A potência política dos corpos no filme “Tatuagem”. 2017. Trabalho de Conclusão de Curso (Cinema e Audiovisual) — Instituto de Arte e Comunicação Social — Universidade Federal Fluminense.

SANTOS JUNIOR, Luiz Guilherme. “Dimensões do Corpo no filme Tatuagem, de Hilton Lacerda”. In: Anais do XXXVIII CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO. São Paulo: Intercom, 2015. v. 37. p. 1–11.

SONTAG, Susan. “Notes on ‘Camp’”. In: Camp: Queer Aesthetics and the Performing Subject: A Reader. Edinburgh University Press, 1999. p. 53–65.

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