As contradições de João Francisco dos Santos em “Madame Satã” (2002)

Resumo: Este artigo busca, a partir de uma breve análise fílmica, a identificação de aspectos queer no filme Madame Satã (2002) de Karim Aïnouz, focando nas ações ambíguas do protagonista João Francisco dos Santos, que transita por diferentes papéis de gênero.

Madame Satã é o primeiro longa metragem de Karim Ainouz, lançado em 2002, contribuindo para o panorama cinematográfico queer brasileiro. O filme se passa durante os anos 1930, na Lapa, bairro carioca que é um ponto de encontro boêmio, sexual e voluptuoso. Atentando-se a um sentido social, a Lapa sempre foi um espaço de vivência dos marginalizados e excluídos. Tal ambientação se associa a uma ideia de descuido, do torpe, do proibido, elementos que remetem ao queer, no sentido de desviante ou insólito, logo, diretamente relacionado ao bairro propriamente dito. Estamos, portanto, associando um termo a um espaço. E este espaço queer em que o filme se passa, apresenta personagens que são considerados queer não somente pelos seus caráteres “estranhos”, marginalizados e desviantes de uma certa normatividade, mas também por conta de suas manifestações sexuais. João Francisco (Madame Satã), o protagonista, é nordestino, negro e homossexual.

Somos apresentados a João Francisco logo na primeira cena do filme: um plano-sequência que mostra o rosto do protagonista em uma delegacia. Ouvimos um policial em off descrevendo o detento em um discurso dentro das bases socialmente bem concebidas — portanto, essa voz que descreve João Francisco o transforma automaticamente em um delinquente. Bem aí, identificamos o papel socialmente transgressor que o cinema possui. Karim Aïnouz é o principal cineasta brasileiro que se alinha ao New Queer Cinema (NQC), movimento do cinema queer independente estadunidense que ascendeu no início dos anos 90, como um respiro pós-crise da AIDS. Este movimento teve como principal intuito a tentativa da inserção da comunidade queer na sociedade. Até mesmo antes do NQC, houve estratégias assimilacionistas que tentaram estabelecer uma “falsa inclusão” do homossexual na sociedade através de um pensamento generalizado de higienização: este homossexual precisaria seguir regras e constructos sociais para ser aceito. O movimento queer repudia essa ideia e reforça orgulhosamente a mensagem de que o universo queer é realmente desviante. Neste sentido, voltando à cena inicial de Madame Satã, Aïnouz dá uma resposta de resistência às estratégias assimilacionistas que até hoje parecem existir no âmbito social ocidental. Através da descrição de João Francisco cedida pelo policial, a personagem é apresentada realmente como um marginal, homossexual, perigoso e estranho, portanto, queer.

A cena subsequente nos traz um outro plano do rosto de João Francisco. Este, porém, em outro contexto. Ele está na casa de shows onde trabalha e seu rosto está posicionado atrás de uma cortina de pingentes azuis que remetem a um possível onirismo. Ouvimos, então uma voz feminina entoando uma canção francesa. A câmera ainda mostra João Francisco, que move seus lábios coerentemente ao som da voz da mulher que canta. Vitória é esta mulher, interpretada por Renata Sorrah, uma atriz noturna que provoca uma certa reflexão em João Francisco, despertando nele a vontade de se ver presente em um palco executando apresentações. Enquanto João observa Vitória, ele coloca as mãos no rosto, revelando anéis em seus dedos que complementam o brilho da cortina de pingentes que, por sua vez, cobrem parte de seu rosto. Esta sensibilidade, esta afetação em estética nos introduz a uma ideia que permeia a obra, de que o camp está presente no filme, embora não aparente na primeira cena. É notável que é esse camp que proporciona ao personagem a oportunidade de se libertar e exercer, pelo menos em seus devaneios, quem e o que quiser. Aqui, observamos a feminilidade como uma possível construção, assim como a masculinidade, João Francisco, se liberta e se “feminiliza”, e faz jus à ambiguidade de sua pessoa.

Menciono a ambiguidade de João Francisco, pois seu comportamento é claramente dividido em dois aspectos: masculino ou feminino. João, em diversos momentos, age como um malandro violento, rígido. Em outros, assume uma postura sensualmente feminina, principalmente ao forte desejo de se tornar um performer e ao ser efetivamente um. Ainda no início do filme, vemos João sendo um forte “chefe” de família. Ele é um líder e exerce essa função com muita rigidez. Laurita (Marcélia Xartaxo) e Tabu (Flávio Bauraqui), a primeira sendo uma prostituta que possui uma filha e o segundo sendo um rapaz homossexual que realiza trabalhos informais na Lapa, constituem tal núcleo familiar no qual João Francisco é tido como a figura central. A sua masculinidade, entretanto, atinge o ápice quando ele evoca uma energia paterna ao zelar pela filha de Laurita, que ainda é bebê e vive com eles. O seu comportamento é contraditório e ambíguo justamente por essas diferentes atitudes que surpreendem o espectador que está acostumado a ver no cinema — e, talvez, até mesmo na vida real — personagens gays ora “comportados” perante os padrões e códigos de condutas sociais, remetendo às estratégias de assimilações comentadas anteriormente, ora estereótipos afeminados, fazendo jus à uma ideia queer. João Francisco é um personagem que apresenta essa ambiguidade.

Pode-se dizer que as atitudes do protagonista que movem a trama, assim como o que a mobiliza fisicamente e contextualmente, são ações mais masculinizadas. A sua feminilidade, por mais que seja exprimida principalmente através das performances e desejos, é exibida através do corpo do personagem. Essa feminilidade, atribuída de forma sensível, dentro de um espectro do camp, possibilita ao personagem a superação das limitações de gênero que são impostas pelo meio social. É importante lembrar o discurso do policial que descreve a figura de João Francisco dos Santos como detento no início do filme. Aqueles dizeres constroem para o espectador uma certa imagem de João Francisco. Sabemos que ele é um marginal, pois as palavras da autoridade que as proclama são eloquentemente bem recebidas no nosso imaginário. O ator Lázaro Ramos, porém, desconstrói a imagem que captamos de João Francisco no início do filme através de uma linguagem corporal muito bem desenvolvida.

“Enquanto a polícia mobiliza o discurso médico-jurídico para construir a identidade doentia, marginal e criminosa de João Francisco, ele próprio utilizará uma linguagem não-verbal para se constituir como um híbrido de convenções masculinas e femininas” (ALÓS, 2014, p. 11)

A primeira performance de João Francisco é no Danúbio Azul, bar do personagem Amadeu. Aqui, temos um close no rosto de João que aparece maquiado, com brilho. É importante ter a recordação da segunda cena do filme que foi analisada no início deste texto. Aquela traz cortinas de pingentes cobrindo o rosto do personagem. Nesta, sua face está explícita. Não somente: seu corpo está presente num palco e é a sua voz que está sendo entoada. A estética onírica ainda existe, embora haja a concretização de um enorme desejo.

No início do filme, João diz ser devoto de Josephine Baker, um sucesso da época, cantora e dançarina negra que despertava inspiração em João Francisco. Em uma das cenas, inclusive, trechos de filmes de Josephine dançando são exibidos enquanto João os assiste. É perceptível, portanto, a idolatria de João em relação à dançarina, em suas performances. Podemos pensar em Josephine como um ícone para ele, um homossexual, assim como outras grandes célebres estrelas são ícones para diferentes nichos da cultura gay.

Observo em uma cena que retrata uma festa preparada por Tabu e Laurita, para celebrar a volta de João para casa após um tempo na prisão, objetos de decoração muito parecidos com uma estética camp de Carmen Miranda. Sobre as mesas, inclusive, estão sobrepostas algumas frutas tropicais, remetendo à imagem de Carmen. Novamente, o filme traz mais um aspecto queer e do camp.

Antes de sua segunda performance, João Francisco encarna Jamacy, uma entidade da Floresta da Tijuca. Ele ensaia em frente ao espelho e, logo após parte para a sua apresentação no Danúbio Azul. Lá, a sua personagem é a Mulata do Balacoxê. Neste momento, estamos acostumados e habituados com o temperamento violento e rígido de João Francisco, mas essa performance, no fim do filme, vem como uma comprovação do lado feminino do personagem, que se confundiu e se confrontou com o outro, mas que agora é nítido. Finalmente, a identidade do personagem de João Francisco é firmada.

O desfecho do filme traz novamente um primeiro plano do protagonista na delegacia. Aqui, ele é julgado, não somente descrito pejorativamente, assim como havia sido no início. Em dado momento, a voz do policial começa a desaparecer e a de João surge. Ele está contando a história da entidade Jamacy, relacionando-a com a história das mil e uma noites, que era contada por Vitória em suas performances. João Francisco se insere nessa narração, possibilitando o fim do filme ao contar a origem de seu apelido Madame Satã.

Neste filme, Karim Ainouz insere uma reflexão acerca do queer como transgressor, ambíguo e diferente ao construir o personagem de João Francisco dos Santos, que adota papéis de gênero distintos no decorrer do filme, mas sempre deixando em evidência a sua sexualidade, os seus desejos e a sua aversão a códigos de condutas sociais. Esta obra, portanto, como uma “representante” dos efeitos do New Queer Cinema no Brasil, proporciona um levantamento de questões reflexivas através da construção e do desenvolvimento de um personagem queer baseado em uma figura real.

Referências Bibliográficas:

LOURO, Guacira Lopes. O corpo estranho: Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

SONTAG, Susan. “Notas sobre o Camp”. In: Contra a interpretação. Porto Alegre: LPM, 1987, p. 318 a 337.

VERGARA, Daniel Luis Moura. “Madame Satã: a desconstrução da sexualidade”. In: Anais do Intercom — Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. X Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sul: Blumenau, 2009.

ALÓS, Anselmo Peres. “A rubra ascese queer de João Francisco dos Santos: Madame Satã, do testemunho às telas”. Periódicus, v. 1, n. 1, p. 222–242, 2014.

NAGIME, Mateus, LOPES, Denilson. MURARI, Lucas, NAGIME, Mateus (orgs). “New Queer Cinema e um novo cinema queer no Brasil”. In: New Queer Cinema: cinema, sexualidade e política. Rio de Janeiro, 2015.

LOPES, Denilson. “Madame Satã”. In: MURARI, Lucas, NAGIME, Mateus (orgs). New Queer Cinema: cinema, sexualidade e política. Rio de Janeiro, 2015.

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