Camp e o Exótico Latino-americano: Uma Análise de Carmen Miranda no filme “The Gang’s All Here”

Rodrigo Jalles
Musicais: Utopias (Queer) no Audiovisual
7 min readAug 26, 2018

Resumo: Carmen Miranda foi um ícone controverso de interpretações do exótico no imaginário da América Latina em meio à Política da Boa Vizinhança empregada pelos Estados Unidos através de seus aparatos culturais na década de 1940. Este artigo pretende observar os elementos camp próprios de Miranda no filme The Gang’s All Here (1943), dirigido por Busby Berkeley, sob a ótica da construção do exotismo latino-americano.

Dentre os filmes produzidos pela Fox com a participação de Carmen Miranda no elenco, um dos que ganhou maior destaque nas veiculações de mídias de massa de sua época foi The Gang’s All Here, do coreógrafo e diretor Busby Berkeley, lançado em 1943 (no Brasil, ficou com o título Entre a Loura e a Morena).

O primeiro número musical se dá logo no início do filme. Revela-se um navio transportador denominado “SS Brazil” descarregando produtos como café e açúcar. A câmera vai então em um plano fechado do alto, fazendo um travelling para baixo, revelando uma enorme coluna de frutas, que finalmente mostram a grande estrela no número: Carmen Miranda sorridente e com uma caracterização forte, que logo começa a cantar. O exagero proposital de uma cena precursora repleta de elementos pode ser visto como um preparo autenticamente camp para a introdução apropriada a Carmen Miranda, que precisa estar, já de cara, associada a essa ideia do exagero, da abundância latino-americana. Os elementos já conhecidos pelo público ganham proporções maiores neste filme, onde “suas versões da fantasia da baiana alcançaram o absurdo, com proporções altamente camp, particularmente em seus turbantes crescentemente bizarros […] uma fantasia que claramente objetiva evocar conotações de alegria de viver e tropicalidade” (SHAW, 2013, p. 52–53). Nesse momento, a personagem do filme não está revelada — todos os elementos que compõem a performer na cena já são conhecidos e reconhecidos pelo público como parte do universo de Carmen — , aqui, ela está interpretando ela mesma. É como se nas aparições espetaculares de Carmen Miranda, a atriz precedesse a personagem do filme, que se encontra em segundo plano. Posteriormente, ela será apresentada sem que haja qualquer confusão entre a atriz e sua interpretação.

A primeira parte da música, um excerto da música “Aquarela do Brasil” (Francisco Alves, 1939) é toda cantada em português. Após a aparição de Phil Baker, interpretando ele mesmo, se inicia o segundo número musical, dividido apenas pela mudança de título. “You Discover You’re in New York é em inglês, sendo, portanto, semanticamente compreendida já dentro da lógica narrativa do filme, para plateias americanas. Modelo já muito utilizado nos outros filmes estrelando Miranda eram os números musicais cantados em português e com palavras inexistentes em qualquer idioma, que naturalmente não eram compreendidas pelo público clássico estadunidense. “O que o público mais amava em Carmen Miranda era sua extrema alteridade, em especial a diferença enunciada pela Outra língua; o que eles adoravam era que não conseguiam entendê-la” (ROBERTS, 2002, p. 143). Alguns títulos anteriores trazem números consagrados, como “Tico-tico no fubá”, e “Chica-Chica-Boom-Chic”, e os números musicais se comunicavam muito mais pela configuração dos elementos do cenário e indumentária, que diga-se de passagem eram demasiados, pelas cores e pelas gesticulações típicas às personagens de Carmen Miranda. No fim do número, o apresentador Phil Baker, em meio a uma piada qualquer, lembra os espectadores dentro do filme (o número se passa em uma apresentação de um clube novaiorquino) o fato de Carmen fazer parte da chamada “Política da Boa Vizinhança”, como uma forma de verbalização de algo que já estava conhecido pelo público e aclamado ao mesmo tempo, como uma espécie de benfeitoria estadunidense.

O próximo número musical com Carmen no filme é “The Lady In The Tutti-Frutti Hat”, o qual certamente é o principal número musical de todo o longa-metragem. Com uma coreografia exuberante, típica do diretor Busby Berkeley, que parece não ter medido esforços para criar uma performance totalmente baseada nas frutas, especialmente a banana, e vestir Carmen de maneira a transformá-la também em uma fruta tropical. Tal liberdade de criação de cenário, tanto aqui quanto na performance do início do filme se encontra diegeticamente justificada na narrativa. Ambas as performances acontecem no palco, o que é extremamente comum aos filmes de Carmen Miranda. Dessa forma, a multiplicidade de opções para a criação do exagero cênico se põe quase sem limites.

Neste número musical, diferentemente do anterior, toda a letra é em inglês, embora permaneçam todas as implicações da forma particular que Carmen fala a língua. Por isto, para o número musical é preciso levar em consideração a letra em si. Em geral, a música é uma explicação de Carmen sobre si mesma, mais uma vez, transcendendo as particularidades da personagem Dorita, que por muitas vezes fica quase esquecida atrás da grande figura de Miranda. Nas palavras de Fernando Balieiro:

a enterteiner se defende de uma suposta acusação de que se veste de uma forma exageradamente alegre, alegando que tal vestimenta corresponde a seu natural estado de espírito. A iconografia de sua personagem, por sua vez, afasta-se daquilo que é tido como razoável para uma vestimenta comum, associando uma sensualidade transgressora, supostamente “natural” às latino-americanas, com sua performance baseada no exagero e artificialidade na composição de sua roupa. Assim, temos a expressão vocal e corporal da autenticidade (“natural”) contrastando com a sua vestimenta exagerada (“cultural”), conjugando de forma paradoxal espontaneidade e despropósito artificial. (BALIEIRO, 2014, p. 252).

Essa explicação acaba por reforçar a ideia de que as mulheres do Brasil, e aqui caberia naturalmente uma extensão para um pensamento generalista latino-americano, são camp em seu estado normal. Ou seja, as performances de Miranda apresentariam essa figura alegórica da mulher latina enquanto “The Lady in The Tutti Frutti Hat” confirmaria esse imaginário. A felicidade, o entusiasmo, contemporaneamente grafado como “gay” seria então um estado natural dessa mulher, que seria transferido para suas vestimentas, como explicaria a própria Carmen em entrevista: “[A]lgumas pessoas dizem que eu me visto de um modo muito feliz [gay] mas todos os dias eu me sinto assim e quando eu estou feliz eu me visto dessa forma. Há algo errado nisso? Não”. O elemento do figurino e cenário fazem parte dessa composição.

Uma característica importante dos filmes estrelados por Carmen Miranda que dão destaque a este misticismo exotizante das latinas é a presença intensa de cores, dando vividez a todos os elementos de maneira muito mais enfática. “Todos os filmes de Miranda no período da guerra eram em Technicolor, o que destacava seus figurinos brilhantes e coloridos, como os das “nativas” garotas latinas” (ROBERTS, 2002, p. 143).

O diretor Busby Berkeley usa algumas de suas técnicas desenvolvidas especialmente para os números musicais neste filme com Carmen Miranda. Uma delas, que consiste em revelar um grande conjunto a partir de um pequeno elemento, está aplicada no final do número, em que Carmen é revelada usando um enorme turbante de bananas no fim, de uma perspectiva de profundidade composto por morangos. É uma grande celebração das frutas, como um fechamento camp digno de um número autorreferente de Carmen Miranda, que aqui está totalmente desprendida de sua personagem Dorita.

Ao longo do filme a caracterização de Dorita segue um padrão que pouco se alterou ao longo da filmografia hollywoodiana de Carmen Miranda, a de uma mulher latina quase sempre enterteiner, com um caráter humorístico muito forte, cujo inglês não é tão perfeito e que quase nunca tem um romance com o protagonista do filme ou outro homem coadjuvante. Essa espécie de “carimbo cênico” das personagens de Miranda faz com que ela, a atriz, sempre se sobressaia perante suas personagens, e que suas interpretações sejam por vezes paródias de sua própria imagem pública.

A próxima performance de Miranda, quase no fim do filme, é mais uma apresentação musical típica dela: “Paducah”, que não quer dizer nada sequer em português e uma brincadeira em torno da palavra. Na linguagem verbal, semanticamente com pouco significado, mas em todo o resto carregado de significações que reforçam a imagem apresentada de Carmen, a garota latina em típica alegoria.

O filme The Gang’s All Here, de grande sucesso na carreira de Carmen Miranda, é um notável exemplo de como a representação da enterteiner retroalimentava a construção de uma ideia de que a América Latina, em especial as mulheres, era um grande número camp, e que isto era uma espécie de status quo da figuração latino-americana. Na atualidade, a controversa Carmen Miranda segue tendo interpretações divergentes, seja nos Estados Unidos ou no Brasil. Por aqui, hoje é muitas vezes interpretada como um ícone da cultura gay de um imaginário solidamente construído no passado cinematográfico clássico de que o Brasil é natural e culturalmente camp e que esta é, por excelência, a imagem exótica que o país carrega, a de se encontrar fora de uma curva normatizante.

Referências bibliográficas

BALIEIRO, Fernando de Figueiredo. Carmen Miranda Entre os Desejos de Duas Nações: Cultura de Massas, Performatividade e Cumplicidade Subversiva em Sua Trajetória. São Carlos: Ufscar, 2014.

ROBERTS, Shari. “‘The Lady in the Tutti Frutti Hat’: Carmen Miranda, a Spectacle of Ethnicity”. In: COHAN, Steven (ed.). Hollywood Musicals, The Film Reader. London, New York: Routledge, 2002.

SHAW, Lisa. Carmen Miranda. London, New York: Palgrave Macmillan, 2013. In. BALIEIRO, Fernando de Figueiredo. Carmen Miranda Entre os Desejos de Duas Nações: Cultura de Massas, Performatividade e Cumplicidade Subversiva em Sua Trajetória. São Carlos: Ufscar, 2014.

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