Da Zona Leste para o Mundo: O Proceder de Glória Groove

Resumo: O presente artigo se propõe a desenvolver uma análise da videografia do álbum “O Proceder”, da drag queen e cantora brasileira Gloria Groove, destacando a militância e representatividade LGBTQ+ presentes em suas canções, além dos aspectos camp recorrentes em suas performances.

“Gloria Groove hoje não representa um personagem pra mim, não é algo completamente descolado da minha vida, (..) é algo que é literalmente o meu nome artístico. Gloria Groove está para Daniel Garcia, assim como Anitta está para Larissa.” (GROOVE, 2018)

Antes reduzido a um “entertainment transvestite”, a cena drag no Brasil há poucas décadas estava restrita a espaços específicos de sociabilidade LGBTQ+, tais como bares, casas noturnas e passeatas organizadas pelo movimento, com raras aparições em programas de TV e de rádio, de artistas como Rogéria e Nany People. Anos mais tarde, com programas como RuPaul’s Drag Race, desencadeou-se um verdadeiro boom no que se diz respeito à arte, em consonância com os avanços tecnológicos e das redes sociais, estas que viabilizaram o desenvolvimento de um possível novo mercado.

Com a possibilidade de gravar canções e videoclipes, lançando-os de forma instantânea, sem mesmo que haja a necessidade de ter contrato com grandes gravadoras e divulgação massiva, abriram-se portas para novas artistas e o cenário musical drag brasileiro deu grandes saltos:

O baixo custo da experiência e a imensa base de usuários em potencial significam que alguém com uma ideia que demandaria dezenas (ou milhares) de participantes pode agora tentar pô-la em prática a um custo extraordinariamente baixo, sem precisar pedir permissão a quem quer que seja (SHIRKY, 2011, p. 162).

Dentre estas artistas destaca-se Gloria Groove, drag queen e cantora nascida e criada na cidade de São Paulo. Em seu primeiro álbum de estúdio, ou “EP” (Extended Play), lançado gratuitamente em plataformas como o Youtube, mas também no Spotify e iTunes, traz temáticas que retratam sua luta como cidadã LGBTQ+ e drag queen que sempre viveu em bairros mais periféricos da capital paulista. Com sonoridade predominantemente fundamentada em hip hop e trap music, suas letras carregam críticas sociais e políticas, além de empoderamento e autoestima.

Conforme destacadas as potencialidades desse álbum, esse artigo apresentará quatro canções (singles), dentre as oito lançadas junto ao material completo, que tiveram seus respectivos videoclipes divulgados. Não somente será uma análise quanto ao teor das letras, mas também de sua obra audiovisual como um todo em relação à sua militância e representatividade, nos vieses da teoria queer e conceito de camp. E serão elas: Dona, Império, Gloriosa e Muleke Brasileiro.

DONA (João Monteiro, 2016)

Capa de “Dona”, seu primeiro single.

Com assumidas influências na trap music, o seu single de estreia foi lançado em janeiro de 2016, mas somente meses depois, em 3 de março daquele mesmo ano que foi lançado seu videoclipe oficial, gravado na cidade de São Paulo, de onde a cantora se origina. Inicialmente com imagens em preto e branco andando numa rua paulista, passa a ter como cenário uma festa numa boate, a Blue Space, ganhando cores.

Videoclipe oficial de “Dona”.

A música se inicia e a cantora canta repetidas vezes que “É que eu sou dona, dona da festa toda” e “Se restou alguma dúvida permita que eu responda/Eu sou a dona, a dona da porra toda”, demonstrando a sua força tal como drag queen, e reafirma seu poder e que veio para ficar, em versos como “Sou Gloria Groove do Brasil, eu vim pra ficar” e “Avisa quem chegou, a dona do jogo”.

Retratando a cultura drag, e enaltecendo-a como uma expressão artística que se desprende das performatividades de gênero convencionais, revela-se muito longe da ideia de “bagunça” que muitos comumente interpretam. No trecho “Represento esforço, tipo de talento, cultivo respeito, cultura drag é missão, um salve a todas as montadas da nossa nação” reitera a valorização de seu trabalho e de suas companheiras.

Na construção de seu videoclipe, há como destaque os participantes dessa grande festa, e ali tem de tudo: drags, travestis, afeminados, lésbicas e viados, todos efervescidos ao som da música e dançando sem nada a temer, indo até o chão. Assim como defendido por Monique Wittig (2001, p. 97), as diferentes expressões travestis, transexuais, lésbicas e homossexuais (além de drag queens) são “brincadeiras ontológicas”, que apontam para tecnologias de gênero vinculadas à produção cultural e combinatória da constituição sexual, enfrentando e desestabilizando a base naturalizadora do regime heteronormativo das diferenças e identidades sexuais.

Take retirado do videoclipe de “Dona”.

Ao longo do vídeo, Groove apresenta-se em quatro momentos diferentes, havendo sempre a troca de figurinos: cantando num divã, sob um palco numa pista de dança, junto a dois dançarinos frente a poderosos holofotes e, em meio aos seus versos de hip hop, apresenta-se desmontado, em seu momento como Daniel Garcia, o gay afeminado.

Desta forma, assim como em outros futuros trabalhos audiovisuais, não usa de sua imagem sem maquiagens, perucas e figurinos brilhosos para se desqueerificar, mas para um claro desprendimento daquilo que define “o que é ser menino e menina”, como a própria diz. Ao fim, há uma reprodução daquilo que vem a ser identificado como “A Santa Ceia”, passagem bíblica que foi reproduzida por ilustres como Leonardo da Vinci, numa forma de queerificar aquilo que é somente visto como algo sagrado e pertencente à Igreja, a qual constantemente condena o que fere o tradicionalismo pregado: LGBTQ+ em sua totalidade.

Cena final do videoclipe de “Dona”.

“Eu incomodo as pessoas que presam por um conservadorismo descabido.” (GROOVE, 2017)

IMPÉRIO (João Monteiro, 2016)

Vindo como um verdadeiro chamado para a revolução num rap cantado, Gloria Groove lançou em outubro daquele mesmo ano o seu segundo single, já propriamente desenvolvido para integrar o que viria a se tornar seu álbum de estreia, “O Proceder”.

Videoclipe oficial de “Império”.

A cantora inicia proferindo os versos que compõem o refrão da canção:

“Viver no mundão tá ligado que é caso sério
Dando a cara a tapa e às vezes sem ter critério
Levar o legado sendo parte do mistério
Trabalhar pra prosperar
Ascensão do império”

Este Império está a representar todas as dificuldades da luta da comunidade LGBTQ+ por conquista de espaço na sociedade, nos meios de comunicação e socioculturais. A canção está contextualizada no período em que Groove estava encerrando as gravações do programa “Amor e Sexo”, de Fernanda Lima, junto a outras tantas drags da cena.

Take retirado do videoclipe de “Império”.

Utilizando-se de uma montação diferente das já apresentadas, tanto em seu figurino como no cabelo e maquiagem, Groove está no que aparenta ser uma construção abandonada, acompanhada de dançarinos que fogem totalmente dos padrões de beleza engessados na sociedade, com estéticas que permeiam o não-binarismo de gênero. Em toda a extensão do videoclipe, os componentes presentes utilizam acessórios, figurinos, strass pelo corpo e pinturas faciais que expressam o que há de mais camp, mergulhados em extravagância e artificialidade, explorando uma variedade de recursos que os difere de outros humanos comuns, tornando-os especiais.

Take retirado do videoclipe de “Império”.

“Na realidade, a essência do camp é a sua predileção pelo inatural: pelo artifício e pelo exagero” (SONTAG, 1987, p. 318).

“O camp pode ser comparado com a fechação, a atitude exagerada de certos homossexuais, ou simplesmente à afetação. Já como questão estética, o camp estaria mais na esfera do brega assumido, sem culpas” (LOPES, 2002, p. 95).

Groove encontra seu momento máximo de extravagância a partir de 1:50 de seu videoclipe, em que está caracterizada como um ser sobrenatural, mais uma vez reafirmando que “ser um monstro não é uma coisa ruim, ser um monstro é maravilhoso, prova que você é diferente do resto” (GROOVE, 2017).

Cena do videoclipe de “Império”.

Assim como no videoclipe de “Dona”, Gloria “dá as caras” no corpo de Daniel Garcia, quebrando mais uma vez paradigmas heteronormativos e de gênero. Com rápidos flashes em que se apresenta caracterizada como anteriormente mostrado, em meio as imagens de Garcia, revela-se “várias pessoas numa só”.

A minha música é resistência. Resistência social, resistência política.
Eu uso o meu corpo para fazer a minha arte, a minha cabeça para fazer minhas
letras e eu tiro da minha vivência, da minha existência o meu material de luta.
(GROOVE, 2017)

GLORIOSA (João Monteiro e Fernando Moraes, 2017)

Presente em seu álbum de estreia, “O Proceder”, “Gloriosa” tornou-se o primeiro videoclipe divulgado pós-lançamento do material musical completo, já em junho de 2017.

Videoclipe oficial de “Gloriosa”.

Numa transição pra uma pegada mais pop, ainda com fortes influências no R&B de artistas como Beyoncé (muito provavelmente foi influenciado por ela na produção da canção, visto sua assumida inspiração na mesma), inicia o vídeo no maior estilo drag power, dançando num estúdio inteiramente branco e com jogos de luzes à la Beyoncé em seu smash hit “Single Ladies (Put a Ring on It)”, mas não deixando de marcar sua identidade, seja pela canção ou até mesmo a partir de suas coreografias com influências urban.

Em “Hoje ninguém me segura, Groove vai sair pra rua, me sinto bem na penumbra” a cantora revela mais uma vez o quão sente-se poderosa e orgulhosa em ser drag queen, junto às suas “bandidas” que,“Quando o sol se põe, ela vai se enfeitar” e, deixando de lado suas vestimentas do dia a dia, encarnam suas drags, figuras empoderadas que sentem-se maravilhosas e verdadeiramente GLORIOSAS.

“O processo de empoderamento é diário. Todo dia precisamos nos olhar no
espelho e entender que somos maravilhosas, que temos direitos, sim, e não
podemos ficar à margem da sociedade” (LINIKER, 2016)

Entrando no refrão, agora com figurinos cor de rosa, remetendo a terminação do título da canção propriamente referida, reconhece a sua capacidade e poder que tem em mãos para ser e fazer o que bem entender com seu corpo. Desta forma, a canção, complementada pelo teor do videoclipe, é entregue de forma a se tornar o verdadeiro hino do empoderamento de Groove.

Imagem de divulgação para o videoclipe de “Gloriosa”.

Em seu último pré-refrão e refrão, não somente pelo seu figurino, que aliás é inteiramente cheio de brilhos, com lantejoulas e jóias, Groove assume seu momento ápice de autoestima e GLÓRIA. Frente à um letreiro em luzes em que se lê “GLORIOSA” e sentada num banco em formato de boca (o que remete à sedução), tudo deve-se à sua conduta (lê-se atitude) no ato referido, indo para além das aparências.

Cena do videoclipe de “Gloriosa”.

“G-L-O-R-I-O-S-A
O poder está em mim, nem preciso soletrar
Hoje eu acordei assim, ninguém vai me derrubar”. (GROOVE, 2017)

MULEKE BRASILEIRO (Rafael Costa da Costaken, 2017)

Finalizando a divulgação de seu álbum de estreia, O Proceder, ao final de 2017 foi lançado o videoclipe para a canção que já tinha previsão de se tornar single, visto o desempenho da faixa nas plataformas digitais e a mobilização dos fãs para que fosse produzido um vídeo.

“Sinto como se fosse o principal sonho que se realiza para os fãs” (GROOVE, 2017).

Videoclipe oficial de “Muleke Brasileiro”.

Gravado em uma praia deserta no litoral paulistano, a cantora aparece com diferentes looks e diversas insinuações sexuais em meio à sua performance, além de coreografias ao lado de seus dançarinos.

Assim como a própria Gloria Groove define:

“Ela sempre veio na referência da música de praia, de verão, swingada. Acho que eu tava me alimentando muito do que eu ouvia. (…) É a quebra mais pop desse álbum. Foi a transição perfeita desses momentos, foi a importância de ter sido o ultimo single”. (2018)

Foto de divulgação para o videoclipe de “Muleke Brasileiro”.

Em meio a rapazes de aparências diversas, esse é, evidentemente, o primeiro videoclipe em que Groove está dançando acompanhada de rapazes não-afeminados, de aparências e gesticulações heteronormativas. À vista disso, revela, a partir do que vemos e pelo teor da letra da canção, ao que talvez deva ser o fetiche da personagem encarnada pela drag no videoclipe, não necessariamente o da artista.

O ápice da brasilidade e identificação camp é o momento em que Groove canta deitada sobre milhares de bananas, referência direta à figura de Carmen Miranda, importante figura na subcultura gay e no mundo drag.

“Seu exagero, estilização e autoparódia produziram um distanciamento do estereótipo das mulheres latino-americanas e, em um sentido maior, desestabilizou ideias essencialistas de identidades, na visão deste público” (BALIEIRO, 2014, p. 108).

Assim como Balieiro se refere a Miranda e visto a importância da mesma para a comunidade LGBTQ+, interpreta-se a perfomance de Groove tal como uma homenagem e busca por uma identificação e proximidade para com o país em que vive.

Cena final do videoclipe de “Muleke Brasileiro”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com um cenário musical cada vez mais aberto a novos artistas do meio LGBTQ+, a cena drag tem conquistado maior espaço nos últimos tempos. Gloria Groove se destaca como uma das artistas que maiormente impulsiona a transformação no que se diz respeito à quebra dos padrões de gênero. Carrega consigo a arte e militância, em meio à sua exuberância e até mesmo em seus momentos out of drag (desmontada), buscando a igualdade e maior representatividade nos meios sociais e midiáticos. A partir da análise de seus videoclipes, pôde-se notar que, por meio de sua música e de suas perfomances audiovisuais, a cantora tem conseguido transmitir sua mensagem e crítica, passando assim a iniciar uma verdadeira revolução, que tem objetivos claros: o maior respeito e igualdade de direitos aos LGBTQ+.

Referências bibliográficas

SANTOS, Thiago Henrique Ribeiro dos. As donas da porra toda: uma leitura política da produção de conteúdo autoral nas mídias alternativas das drag queens Lorelay Fox, Gloria Groove, Pabllo Vittar e Rita Von Hunty. 108 f. Monografia (Especialização em Jornalismo Cultural) — Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Pós-Graduação em Jornalismo Especializado, São Paulo, 2017.

ROCHA, Rose de Melo, SANTOS, Thiago Henrique Ribeiro dos. Remediação com purpurina: bricolagens tecno-estéticas no drag-artivismo de Gloria Groove. p. 205–220.

ROCHA, Rose de Melo, POSTINGUEL, Danilo. SANTOS, Thiago Henrique Ribeiro dos. NEVES, Thiago Tavares das. Comunicação e estudos de gênero — imagens diaspóricas, imaginários insurgentes. Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação — Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte — MG, 2018

BALIEIRO, Fernando. “Seria Carmen Miranda uma Drag Queen? Uma Análise Queer da Trajetória e Recepção da Cantora e Entertainer Brasileira”. Revista Florestan, ano 1, n. 2, 2014.

Webgrafia

RODRIGUES, Rubens. Faixa a faixa | Gloria Groove comenta o álbum de estreia “O Proceder” — O POVO online

Trip TV. Gloria Groove, a dona da porra toda — Youtube

Revista ÉPOCA. Conheça Gloria Groove, a drag queen do Hip hop — Youtube

UOL. DE CANTOR MIRIM A DRAG QUEEN: GLORIA GROOVE CONTRA O PRECONCEITO — Youtube

Conexão Repórter. Reportagem “O Encontro” — Parte 1 Conexão Repórter (03/09/17) — Youtube

Canal Ana Hickamann. O DIA EM QUE CONHECI GLORIA GROOVE | ANA HICKMANN — Youtube

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