Elsa fora do “armário”: uma leitura queer de “Frozen: Uma Aventura Congelante”

Renato Schuenck
Musicais: Utopias (Queer) no Audiovisual
10 min readAug 27, 2018

Resumo: Este artigo pretende tratar de leituras “queer” que circundam Frozen: Uma Aventura Congelante, onde a protagonista, Elsa, se vê presa entre a vontade dos pais de ser introspectiva e sua liberdade de ser quem é. As analogias trazidas pela obra vão ser dissecadas de modo a entendermos a camada “queer” presente na narrativa, a qual aposta num segundo público alvo que se identifica com as questões de reclusão e aceitação. Para além de Elsa, serão tratados elementos pontuais tais quais os demais personagens, a mimetização do sexo e o aspecto musical.

Elsa (Idina Menzel) em Frozen: Um Aventura Congelante

Muito tem se visto de uma certa ascensão “queer” na mídia atual. O que antes era tido como caricato, engraçado, estereotipado, torna-se, hoje, um personagem midiático como outro qualquer, capaz de exprimir emoções e de viver como protagonista em sua própria história. O termo “queer”, no entanto, diverge quanto sua acepção. Para uns, como Alexander Doty, “queer” é uma atitude que nega o binarismo na instância de gênero (GRIFFIN, 2004, p. 107, tradução minha). Para outros, como Caitlin Ryan e Jill Hermann-Wilmarthy, o termo se refere à uma gama de modalidades sociais inerentes ao indivíduo que se diferencia do “normal” (WILSON, 2015, tradução minha). Além disso, existem leituras pertinentes que negativam o termo “queer” no momento em que se diz que sexualidade pode ser aprendida, dando margem ao seu “desaprender”. Eve Sedgwick, por exemplo, propõe a ideia de duas visões dentro do binômio sexualidade e gênero. Em sua “visão minorizada”, a autora lê o ser “queer” a partir do indivíduo, propondo que existem pessoas que nascem com traços “diferentes” e que se mantêm como comunidade a partir de interesses comuns. Já em sua “visão universalizada”, a leitura se faz a partir do ser social, onde sugere que a identidade erótica do indivíduo se dá pelo contexto no qual se insere a pessoa, o que torna plausível a ideia de subversão da sexualidade (GRIFFIN, 2004, p. 106 e 107, tradução minha).

Sean Griffin, em seu artigo “Pronoun Trouble: The Queerness of Animation” (2004), traça um panorama de possíveis leituras “queer” e suas recepções ao longo do último século das animações norte-americanas. Ao analisar três obras de diferentes épocas, Griffin questiona a estabilidade do gênero ao se perceber que o modo como o aspecto “queer” é colocado na animação e sua recepção são variáveis que se estabelecem a partir dos contextos nos quais estão inseridas. Ao longo do texto, o autor pontua que a caracterização das personagens e o contexto às quais são inseridas constroem sua sexualidade, ou seja, traja-se o personagem com adereços e trejeitos inerentes à sua identidade erótica e mimetiza-se o ser “queer” na narrativa. Griffin cita também Judith Butler, e contextualiza a fala da filósofa ao dizer que ela

(…) vê como os múltiplos discursos morais (que regulam, proíbem e geram o discurso hegemônico aprovado) frequentemente se sobrepõem, se complicam e se contradizem. Consequentemente, possíveis resistências podem ocorrer quando essas complicações do discurso massivo são reveladas. Os discursos materiais do poder que definem identidade são subvertidos ao desenvolverem-se de modo que várias camadas sociais atinjam extremos absurdo e paródico, expondo gênero, sexualidade e o próprio sexo como construções. (GRIFFIN, 2004, p. 107, tradução minha).

A instabilidade do discurso massivo, pode-se dizer, gera brechas que são apropriadas e lidas de forma a colocar em cena as “minorias”.

Dado também o aspecto da espectatorialidade, temos a reapropiação dos discursos inerentes à obra e a subversão deste por parte da leitura do espectador. Dentre vários exemplos de obras com uma possível camada “queer”, que se torna passível de tal subversão e leitura, temos Frozen: Uma Aventura Congelante (Jennifer Lee e Chris Buck. 2013). A animação conta a história de Elsa e Anna, filhas da realeza de Arendelle. O enredo se desenvolve a partir dos poderes de Elsa, a qual mais tarde se torna a rainha do gelo. Logo no início da narrativa, somos apresentados à família real e aos poderes gélidos da princesa. Em uma noite de brincadeiras, Elsa acaba por atingir sua irmã com um raio de gelo e “congela” sua mente. Dado isso, Elsa se vê em conflito com a personalidade de seus poderes; suas grandezas e seus perigos. Orientados pelo patriarca Troll — um rei, por assim dizer, que rege sua colônia nos arredores do reino –, o rei e a rainha decidem fechar as portas do palácio, trancafiando-se na tentativa de controlar Elsa e proteger sua família e seus súditos.

Elsa cantando Let It Go em “Frozen”

A personagem dublada por Idina Menzel, que possui um histórico “queer” em sua carreira — como ao interpretar uma garota lésbica no musical Rent (Jonathan Larson) — , é Elsa, que podemos dizer ser o pilar principal que sustenta a camada “queer” no filme. Kade Wilson, em seu artigo “’Conceal, Don’t Feel’: A Queer Reading of Disney’s Frozen”, propõe, como o próprio título diz, uma leitura em que a jornada de Elsa faz uma espécie de alusão à vida de parte da comunidade LGBTQ+. Ao ter seu poder reprimido por seus pais e se ver obrigada a escondê-lo, Elsa precisa encarar uma jornada de aceitação.

Os pais de Anna e Elsa tem um papel particularmente importante no enredo do filme. Apesar de morrerem cedo na história, sua breve presença deixa um grande impacto na vida de Elsa. Parte dos sentimentos mais profundos de Elsa em relação aos seus poderes advém dos ensinamentos de seus pais (especialmente, seu pai), dizendo para ela “esconder, não sentir e não deixar ser visto”. A partir do que é dito por seus pais, a necessidade de controle de Elsa sobre seus poderes se torna uma necessidade de reprimir e não sentir. Essa ideia é facilmente assimilada por uma audiência “queer”, dado que o discurso moderno que circunda sexualidades “queer” e identidades de gênero é de reprimir e esconder ao invés de aceitar e amar. (Wilson, 2015, tradução minha)

Alguns anos após a morte dos pais, os poderes de Elsa são revelados durante sua coroação e ela é vista pelo reino como um monstro. Esse confronto é o gatilho para Elsa fugir, assim como grande parte da comunidade “queer” o faz. Fugir não significa, nesse caso, abdicar de responsabilidades, mas sim uma busca pela liberdade. Ao entoar a música “Let It Go”, Elsa clama por sua libertação, aceitando e abraçando seus poderes. Pode-se ler esse momento como a saída do armário (coming out) de Elsa. Ao se permitir sentir e viver quem ela realmente é, a personagem conversa com o público que vive trajetórias semelhantes. Como dito, Elsa permite leituras LGBTQ+, uma vez que se vê reprimida devido às suas diferenças. Durante o decorrer do filme, podemos ouvir a palavra “porta” ser mencionada várias vezes, o que traz consigo o peso da “porta do armário” em que parte da comunidade LGBTQ+ vive. O abrir e fechar dessas portas sugerem a tentativa de aceitação e a repressão da sociedade para com o indivíduo queer. Além disso, temos durante a música um verso em que Elsa diz que o frio nunca a incomodou. De maneira literal, temos a obviedade do assunto, dado que se trata de uma rainha do gelo. Entretanto, o frio pode ser lido como o passo para “fora do armário”, as adversidades enfrentadas por pessoas que se aceitam e assumem suas “diferenças”.

Além de Elsa, temos no filme outros pontos que são elevados à camada “queer”, o que dá conta de reforçar pequenos estereótipos que circundam a sociedade. Olaf, o boneco de neve criado pela rainha do gelo, é um desses pontos. Por ser um boneco de neve, o gênero de Olaf é definido apenas quando lhe dão um nome, trajes e voz, o que lembra a fala de construção e aprendizado do sexo enquanto instituição. Sendo, então, um personagem masculino, Olaf apresenta trejeitos que destoam da masculinidade imposta pelo meio social. Sua voz possui uma comicidade aliada a um cantarolar que por vezes é associada aos gays. Olaf, também, apresenta ares de inocência, que se apresentam em seus movimentos e suas falas alegres e exagerados. Contudo, é uma inocência subvertida, que se associa, novamente, à comunidade LGBTQ+.

Olaf em seu número musical em “Frozen”

Outros pontos que são passíveis de apropriação para a construção dessa leitura são o Duque de Weselton, a família que vive na montanha e o monstro criado por Elsa na tentativa de se proteger. Enquanto Olaf possui uma doçura “inocente”, o Duque, por sua vez, se manifesta como a “bicha velha e má”. Não há indícios diretos da sexualidade do Duque durante o desenvolvimento da trama, porém ao longo do filme podemos pinçar momentos desse personagem e lê-los como “queer”. Em um primeiro momento, somos apresentados a um homem na casa dos seus 50 anos, aparentemente solteiro e acompanhado de dois soldados, que são claramente submissos a esse homem. Apresentando uma forte malícia em sua fala, o Duque possui trejeitos e gestos que o colocam numa posição como os vilões da própria Disney, os quais são lidos como “queer” justamente por essas características atribuídas a eles. No que diz respeito à família da montanha, a primeira e única aparição deles em tela é suficiente para elevá-los à camada “queer”. O patriarca da família, que também é o atendente de uma lojinha, mostra sua família ao apontar para a porta da sauna. Através do vidro vemos três crianças, uma adolescente e um possível segundo pai, desconstruindo a ideia patriarcal ao redor das famílias e atribuindo mais um aspecto “queer” ao filme. O último tópico a ser pontuado aqui é o monstro criado por Elsa. Sendo chamado de Marshmallow por Olaf, temos a ideia de um ser no mínimo sociável. Contudo, somos apresentados a um monstro que expulsa qualquer um que tente entrar no castelo de gelo. Temos, então, a concatenação do “macho” dentro do filme. Entretanto, nas cenas pós-creditos, Marshmallow é visto andando pelo castelo e tropeça em um objeto, deixando-o nervoso. Ao perceber que é a coroa antiga de Elsa, o monstro à veste e seu semblante se torna macio e suave, sugerindo a troca de humor e o início de uma nova personalidade da personagem em questão.

Família do atendente da lojinha em “Frozen”

Wilson, ainda em seu artigo, sugere a presença de dois universos, criando a ideia de “dentro” e “fora”:

A divisão desses mundos se manifesta quando Elsa é trancada em seu quarto e, em uma leitura mais abrangente, quando as duas irmãs são presas no palácio. Anna possui o lugar inteiro para explorar, mas ela anseia pelo mundo do lado de fora (representação da realidade) e pelo mundo de Elsa (o pequeno mundo que foi criado ao redor de Elsa para ocultar seus poderes). Elsa está presa nesse pequeno mundo inundado com sua magia, e apesar de querer participar da realidade “normal” da sociedade, ela é obrigada a se manter onde seus pais e a sociedade a colocaram, supostamente para o bem de todos, inclusive Elsa. Mesmo com os portões do palácio abertos e Elsa saindo de seu quarto, ela claramente possui um conflito entre seus desejos e o que ela acredita ser necessário. Em resposta ao questionamento de Anna do porquê os portões não podem permanecer abertos, Elsa rapidamente diz, “Mas não dá”, nunca esclarecendo sua resposta. Aqui, o espectador pode perceber como Elsa procura mesclar seus mundos, real e mágico. Ela gosta de estar no mundo “real” do castelo de portões abertos; no entanto, ela acredita que o único lugar que ela pode existir é em seu quarto, no mundo “mágico” de gelo que foi construído ao redor dela, ensinando-a a ter vergonha de seus poderes. (Wilson, 2015, tradução minha)

O que pode ajudar a sustentar essa visão de cisão de realidades é o aspecto musical do filme. Richard Dyer, em seu artigo “Entertainment and Utopia”, sugere a existência de duas esferas narrativas dentro de um filme musical, a primeira se referindo a narrativa propriamente dita e a segunda, que se divide em outras pequenas esferas, que se estabelece nos números musicais, sendo, respectivamente, realidade e utopia. Todavia, Dyer não nega a mesclagem desses mundos (assim como Elsa tanto anseia). Para o autor, mesmo que o número musical se contenha em unidade, ele participa da narrativa ao preencher lacunas do enredo e ao permitir uma diferente conexão do espectador com a história. Novamente, “Let It Go” se lê como o momento de aceitação de Elsa e, para além disso, é o primeiro momento em que Elsa funde seu mundo “mágico” com o mundo “real”. Tem-se, então, o momento “queer” do filme, quando a fusão desses mundos acontece e Elsa se torna parte de ambas realidades, marcando a instância de mescla do número musical (utopia) com a narrativa (realidade).

Ao se criar uma personagem, dá-se a ela a profundidade emocional necessária para a conexão com o espectador. Além disso, existem características básicas como nome, roupas, sexo e, muitas vezes, a própria sexualidade que definem a personalidade construída. Ao transpor o real para uma mídia massiva, cria-se uma linguagem que dá conta de mimetizar essas nuances, principalmente as inerentes ao ser humano, antropomorfizando um ser de papel. Ainda que se crie perspectivas negativas ao redor dessa linguagem, ela se faz necessária ao ser apropriada, dado que a partir desses meios se torna possível difundir histórias e experiências que se relacionam com o mundo “queer”, criando leituras que se apresentam para o público massivo.

Referências bibliográficas

DYER, Richard. “Entertainment and Utopia”. In: COHAN, Steven. (ed.). Hollywood Musicals, The Film Reader. Londres, Nova Iorque: Routledge, 2002, p. 19–30.

GRIFFIN, Sean. “Pronoun Trouble: The Queerness of Animation.” In.: BENSHOFF, Harry M., GRIFFIN, Sean. Queer Cinema, The Film Reader. Nova Iorque: Routledge, 2004, p. 105–118.

WIILSON, Kade. “Conceal, Don’t Feel: A Queer Reading of Disney’s Frozen”. WRIT Large Vol. 4, 2015. Disponível em: <https://www.du.edu/writing/writ-large/vol4/wilson-conceal-dont-feel.html>. Acesso em: 12 jul. 2018.

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