Entrando no apartamento e saindo do armário: O número musical queer na websérie “The Boy Next Door”

Resumo: Este artigo explora a possibilidade de leitura do momento musical presente em “The Boy Next Door” como um número de saída do armário, exemplificando a transgressão queer presente nessa websérie sul-coreana.

A trajetória histórica da mídia queer na Coreia do Sul é curta e bastante recente, um reflexo do forte conservadorismo do país. Devido à resistência na cultura hegemônica, a presença de personagens, questões e celebridades LGBTQ+ na mídia mainstream por muitas décadas foi quase inexistente.

O panorama começou a mudar de forma mais perceptível apenas na década de 1990, tendo como marco o sucesso de público do filme “The King and The Clown”, o qual traz um triângulo amoroso entre 3 homens. A partir dele, deu-se o que Kim e Singer chamam de “Era dos Blockbusters” do cinema queer coreano, o que resultou na aparição de mais personagens gays no cinema, e também — em menor escala — na televisão. Essa mudança, porém, não partiu como uma forma de engajar um público queer, como foi a lógica do pink money¹ no ocidente:

“Diferente de como a mídia queer no ocidente estrategicamente buscou engajar queers e héteros como audiência, na Coréia, materiais queer embutidos na cultura popular e mídia de massa apenas buscam engajar espectadores heterosexuais que gostam de consumir materiais sexualmente transgressivos como audiência primária, ao invés dos membros da comunidade queer.” (TIK SZE, 2016, p. 25)

Jung Min Kwon vai além, e argumenta que esses espectadores se tratam majoritariamente de mulheres jovens e heterosexuais:

“Colocando de forma simples, o conteúdo gay contemporâneo nas produções midiáticas mainstream coreanas são um reflexo do desejo feminino e é uma mercadoria através da qual as corporações midiáticas lucram.” (Kwon, 2016, p. 1575)

O sucesso de “The King and the Clown” levou ao conhecimento dos estúdios a existência desse grande demográfico feminino com poder de compra e interesse em conteúdo homoerótico. Sua existência advém da exposição dessas mulheres a produtos ocidentais com personagens abertamente LGBT e, principalmente, o gênero de mangá homoerótico japonês chamado yaoi/boys’ love (BL) desde a década de 1980.

O gênero yaoi/BL se caracteriza classicamente por suas narrativas de romance entre homens jovens de uma beleza andrógina, os quais são divididos em passivo (uke) e ativo (seme). Essa divisão define sua caracterização e personalidade. Os mangás yaoi podem ou não trazer cenas de sexo explícitas.

Kwon ainda destaca que essas fãs “não apenas consomem produções culturais gays como também produzem seus próprios textos gays (…)”, sendo que o consumo e produção desse tipo de conteúdo “levou a uma crescente abertura da mente sobre homens gays entre mulheres jovens” (KWON, 2016, p. 1570).

Desta forma, por serem voltados para esse consumo feminino, os produtos queer mainstream trabalham dentro da fetichização das relações e do corpo gay, principalmente do masculino. As transgressões de gênero ocorrem em função principalmente da erotização desses corpos para a satisfação desse público em específico. O enredo favorece cenas românticas e íntimas entre personagens do mesmo sexo, mas estas partem de um modelo heterossexual hegemônico de intimidade e relacionamento.

Mesmo assim, o público queer existe e consome na Coreia do Sul, e nada o impede de consumir esse tipo de produção, por mais que não seja o público alvo. Uma vez presente a transgressão, abrem-se as porta para leituras queer mais amplas e para uma reapropriação LGBT+. Algumas produções atuais, inclusive, estão ousando mais, trazendo críticas e criando mais aberturas para essas leituras subversivas e o engajamento do público queer. Principalmente na internet, meio mais livre de regulações. É o caso de “The Boy Next Door”.

The Boy Next Door” (“Sseomnam”), é uma websérie Sul Coreana exibida durante abril de 2017 através da ferramenta de transmissão da empresa de serviços online Naver. Totalizando 15 episódios com 6 minutos de duração, está disponível no youtube no canal da empresa de criação de conteúdo Dingo. É uma adaptação de um webtoon homônimo escrito por Bae Cheol Wan. A adaptação mantém o gênero da obra original, podendo ser categorizado como uma comédia e boys’ love não-explícito.

A trama acompanha a vida de dois vizinhos, Park Kyu Tae e Sung Gi Jae, ambos com 25 anos, estudantes da mesma universidade e de personalidades bastante diferentes. Devido a um incêndio em seu apartamento, Kyu Tae acaba indo morar junto com Gi Jae. Em meio a essa convivência forçada, os estudantes acabam constantemente, de forma acidental, em situações que levam as demais personagens a questionar se eles não são, na verdade, um casal. Inclusive Kim Min Ah, colega e interesse amoroso de Kyu Tae e ex-namorada de Gi Jae.

Trata-se de um BL não-explícito. O gênero subentende a atração homoerótica entre os protagonistas, mas não vai além de sugestões, tendo o(a) espectador(a) que ler as entrelinhas. Esse tipo de BL permite o consumo de um público atraído pelo flerte homossexual que pode ou não ser avesso a sua concretização e ao ato sexual. Em sociedades homofóbicas onde os simpatizantes da causa também são alvos de preconceito, esse gênero também permite um consumo “mais seguro” para aqueles que conseguem ler as entrelinhas.

Apesar dos inúmeros momentos eróticos entre os protagonistas, estes sempre são “acidentais” e, até o final da série, não é confirmado de forma explícita no enredo os sentimentos e o futuro da relação de ambos. Soma-se a existência de um possível interesse romântico feminino para os dois protagonistas, o qual objetiva levar a narrativa na direção de um triângulo amoroso.

A queerificação da relação de Kyu Tae e Gi Jae na parte representativa do enredo tenta ser controlada. Deveria ser mostrado o suficiente para a satisfação do fetiche do público sem que a sua heterosexualidade seja ameaçada, buscando sempre reafirmar a heteronormatividade. Mas as sugestões para leituras queer no nível não-representativo colocadas nessa primeira instância acabam tornando a websérie bem mais gay do que seria esperado do gênero. Isso devido a forma como a narrativa e seu humor é construído:

“As representações de gênero e sexualidade em séries não-explícitas (…) são muitas vezes mais fluídas e nuançadas precisamente pelo que não é feito visível na tela. Estas séries tendem a ser altamente auto-reflexivas e conscientes das convenções de gênero, assim como das expectativas dos fãs.” (WOOD, 2013, p. 13)

O humor da websérie advém de uma consciência do nível de absurdidade das situações clichês que são convenções de gênero dos boys’ love clássicos. Estas são reproduzidas, mas ao mesmo tempo ironizadas através do exagero. Os momentos acontecem de forma acidental, em câmera lenta, com uma música sugestiva, as vezes aparecendo reproduções mais exageradas e bregas das partículas de flores que abundam nas folhas dos mangás românticos. Essas cenas homoeróticas são espetacularizadas como esperado do gênero, mas ao ponto do exagero, a fim de criar humor.

Esses momentos sempre são flagrados por outra personagem, a qual assume imediatamente existir um relacionamento entre os dois. A presença e reação dessas personagens podem ser lidas como uma paródia dos próprios fãs do gênero. Elas estão ali para fazer suposições e se deixar levar pelo espetáculo e excitação proporcionada por aqueles corpos juntos, desconsiderando totalmente os indivíduos e a sua situação real. Os protagonistas não aparentam incômodo com as situações até o momento em que é percebido o olhar do outro, quando ocorre um julgamento social das suas ações e/ou a objetificação delas. Desta forma, os mecanismos escolhidos para gerar humor na série também podem ser interpretados como críticas ao yaoi em certo nível.

A presença desse humor irônico aliado a atuações exageradas, teatrais e artifícios visuais aproximam a série de uma estética “afetada” ou “excessiva”, prejudicando a leitura do seu enredo na chave da heterossexualidade.

Alimentando mais ainda essa estética, a série flerta com o gênero musical em sua estruturação narrativa e apresenta efetivamente um momento musical em seu penúltimo episódio.

É utilizado constantemente o recurso de tela dividida para acompanhar ao mesmo tempo os dois protagonistas, inicialmente como uma forma de ressaltar a sua condição de vizinhos e as suas diferenças. Esse foco narrativo em torno desses dois protagonistas a fim de mostrar consecutivamente suas reações está dentro da estrutura do duplo foco narrativo como apresentada por Rick Altman. Em sua análise dos musicais clássicos hollywoodianos, Altman afirma que os musicais são o ápice do casal heterosexual, e a narrativa gira em torno de um ritual de cortejo entre um homem e uma mulher, os quais terminarão juntos no final (ALTMAN, 2002) .

Em “The Boy Next Door” o enredo é a relação entre Kyu Tae e Gi Jae. O duplo foco permite a leitura da interação entre essas personagens como um jogo de cortejo e, finalmente, como os personagens que terminarão juntos como um casal no final da história.

Devido a convivência forçada dos dois no mesmo apartamento, os protagonistas rapidamente ficam confortáveis um com o outro. Gi Jae toma a iniciativa dos dois tomarem banho juntos, cuida de Kyu Tae quando ele está doente. Kyu Tae cozinha e arruma a casa para os dois. Eles passam a sair juntos. Eles passam os intervalos da faculdade juntos. Isso em uma sociedade aonde dificilmente as amizades chegam a esse nível de intimidade.

Diegeticamente essa relação é contida dentro da ideia do bromance². Mas as sugestões , olhares/ações ambíguas e as constantes situações de caráter homoerótico vividas por eles permitem sua leitura como uma relação com potencial romântico, principalmente se o leitor está inicialmente aberto a ela.

Isso acontece em detrimento da existência da personagem Min Ah. Sua presença vem como um mecanismo de reafirmação da heterossexualidade das protagonistas, uma vez que Gi Jae já namorou com ela e Kyu Tae mostra certo interesse romântico. Mas os olhares e atitude destes são ambíguas, com cenas que colocam em dúvida se suas reações são motivadas por um afeto voltado a ela ou ao outro. Mais ainda, o desenvolvimento desse triângulo amoroso é totalmente esquecido nos episódios finais, com Min Ah deixando de aparecer por dois episódios seguidos (13 e 14), bem no momento em que o enredo deveria chegar ao seu clímax.

No lugar de uma resolução clássica do triângulo amoroso, o que acontece nesse momento do enredo é um número musical. Ele acontece logo após a separação dos protagonistas, quando Kyu Tae finalmente pode retornar para seu apartamento. Cada um volta para sua vida a sós com relutância. E então, de forma inesperada, eles começam a dublar a música “Don’t go, don’t go” da dupla Brown Eyes.

O número musical “Don’t Go Don’t Go” em “The Boy Next Door”

Ora intercalando entre os dois, ora mostrando ambos ao mesmo tempo em uma tela dividida, os protagonistas fazem um lip sync emocionalmente intenso, expondo fisicamente toda a sua tristeza e sofrimento devido a separação. No nível representativo esse espetáculo de exagero serve a um propósito cômico, harmonizando com o tipo de humor irônico trabalhado ao longo da série, mas vários de seus elementos permitem uma leitura além.

O momento em que o número tem lugar no enredo diegeticamente, a música escolhida, as atuações e ações das personagens, todos esses elementos possibilitam a sua interpretação como um número de transparência emocional. A sequência faz referência, agora de forma direta, aos números dos musicais clássicos hollywoodianos. Partindo da categorização das sensibilidades utópicas de Richard Dyer (2002), é possível a sua leitura como um número musical de transparência, isto é, um momento em que as personagens ganham voz e podem ser sinceras sobre seus sentimentos. Além disso, trazendo mais especificamente para a questão queer encenada, o número pode ser lido como uma “saída do armário”.

O engajamento do(a) espectador(a) também muda durante a sequência. A primeira ação feita por Gi Jae é a quebra da quarta parede, seguido por Kyu Tae, convidando o(a) espectador(a) a compartilhar o momento, a ser o confidente daquelas demonstrações de afetos.

Eles performam, aos prantos, uma série de cenas que fazem referência a atitudes de término de namoro — como encher a cara em um banco de praça e chorar pelos cantos, chorar até dormir. Eles ainda interagem com objetos que foram presenteados ou remetem ao outro de alguma forma, chegando até a abraçar a parede que os separa. Esses momentos são intercalados com os trechos das situações homoeróticas mais sugestivas da série, como o beijo que eles se dão para que Gi Jae possa ganhar um computador.

Levando em consideração que ao longo dos episódios qualquer implicação de um relacionamento entre eles é majoritariamente feita por terceiros e a narrativa apenas trabalha com a sugestão, o número musical é o primeiro e único momento em que essas personagens comentam abertamente sobre seus sentimentos um pelo outro, exatamente no momento em que se veem afastados. E esse comentário ocorre no penúltimo episódio, um ponto onde cabe um ápice narrativo, onde deve acontecer ou ficar iminente um enlace romântico. Seria o conflito e depois o beijo, a descoberta ou confirmação dos sentimentos entre os protagonistas. Mas no caso de “The Boy Next Door”, coincidentemente, tem-se a separação dos dois, seguida de um número musical.

A escolha específica pelo uso de um momento musical não pode ser considerada gratuita. Como colocado por Brett Farmer:

“Mesmo hoje, tempos depois da morte do musical como uma forma de cultura popular bastante relevante, a associação simbólica entre musical e homosexualidade masculina parece ter perdido pouco de sua relação com as subculturas gays.” (FARMER, 2000, p. 74)

Abrem-se então as portas para ler o número como uma “saída do armário”, aonde o sofrimento das personagens não advém apenas de uma exageração cômica de uma simples separação de “colegas de apartamento”, mas sim do sofrimento da separação entre pessoas que nutrem sentimentos românticos.

Outro elemento que reforça essa possibilidade de leitura é a escolha da música, mais especificamente sua letra e seu status cultural. “Don’t Go Don’t Go” é uma música extremamente melosa/romântica, com um eu lírico que implora pela volta da amada. Ela é muito usada na trilha de filmes e novelas românticas no país, virando um tema clichê de momentos de término. Busca-se humor em seu uso, uma vez que o refrão é exatamente “não vá”, mas além disso as personagens dublam frases como “Você me ama”, “Eu preciso de você”, “Oh baby, meu amor”. Não só dublam, como as interpretam com toda a emoção que a melodia clichê pede, em um nível que realmente extrapola o natural, caindo numa teatralidade que se aproxima de uma estética do excesso.

O número musical pode ser lido como a afirmação da identidade queer dessas personagens na ausência de sua afirmação no nível representativo. Como uma confirmação de todas as sugestões que extrapolaram ao longo dos episódios. A presença de uma cena com esse caráter em BLs não é muito comum, e sugere uma postura por parte dos criadores da série de proporcionar um fechamento mais satisfatório para os espectadores mais abertos a uma leitura queer mais amplia. Isto é, a websérie leva em consideração um público além do feminino heterossexual.

Desta forma, “The Boy Next Door” pode ser considerado um produto um pouco mais transgressor dentro da produção midiática mainstream queer da Coreia do Sul, abrindo as portas para mais produções semelhantes. O uso feito do número musical auxilia nessa transgressão, reforçando o caráter utópico do musical e sua potência de criação de subversões e de sensibilidades queer.

Notas

  1. Pink Money ou “Dinheiro Rosa” é o termo usado para se referir, neste caso, a produção de conteúdo midiático que “objetiva ganhar dinheiro dos grupos queer de classe-média” (Tik Sze, 2016, p.25).
  2. Bromance é o nome dado a uma relação muito próxima mas não sexual entre dois homens, segundo o Cambridge Dictionary.

Referências audiovisuais

THE BOY next door. Direção: Yoo Il Han ; Oh Soon Sung. Produção: Choi Jae Yoon. Coréia do Sul. Make Us/Dingo Estudios, 2017. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=XkC8q92XLDk>. Acesso em: 13 jun. 2018.

THE KING and the Clown. Direção: Lee Joon-ik, Produção: Jeong Jin-wan; Lee Joon-ik. Cineworld; Eagle Pictures, 2005.

Referências bibliográficas

ALTMAN, Rick. “The American Film Musical as Dual Focus Narrative”. In: COHAN, Steven (ed.). Hollywood Musicals, The Film Reader. London, New York: Routledge, 2002.

DYER, Richard. “Entertainment and Utopia”. In: COHAN, Steven. (Org.). Hollywood Musicals, the Film Reader. London: Routledge,2002. p.19–30.

KWON, Jungmin. “Commodifying the Gay Body: Globalization, the Film Industry and Female Prosumers in the Contemporary Korean Mediascape”. International Journal of Communication, n. 10, 2016, p.1563–1580.

TIK SZE, Chuk. Queer Representations in Korean Media-Heteronormativity, Homonormativity, and Queer Transgression. Tese (Mestrado em Filosofia )— Universidade de Hong Kong. Hong Kong, p. 1– 40. 2016.

WOOD, Andrea. “Boys’ Love anime and queer desires in convergence culture: transnational fandom, censorship and resistence”. Journal of Graphic Novels and Comics, vol. 4, n. 1, 2013, p.44–63.

KIM, Phil H.; SINGER, C. Colin. “Three periods of korean queer cinema: invisible, camouflage and blockbuster”. Acta Koreana, vol. 14, n. 1, 2011, p. 117–136.

FARMER, Brett. Spectacular Passions: cinema, fantasy, gay male spectatorships. EUA. Duke University Press, 2000.

AMARAL, Carolina. “Medianeras e YouTube: Performance musical e ‘Atração’”. Trabalho apresentado ao GT Nº6: Mídia, Música e Audiovisual, do V Musicom — Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular. Centro Cultural de Belém — Centur, Belém/PA. 28 a 31 de agosto de 2013.

AMARAL, Carolina. “Performance musical em Antes do pôr-do-sol: espetáculo, atração e narrativa”. Trabalho submetido ao GT1 — Tempo e Memória do IX Seminário de Alunos de Pós-Graduação em Comunicação da PUC-Rio. 7, 8 e 9 de novembro de 2012.

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