Entre Hansel e Hedwig: fluidez de gênero no musical de John Cameron Mitchell

Resumo: O artigo visa a analisar a individualidade da personagem Hedwig, no que diz respeito a sua identidade de gênero, contrapondo as classificações simplistas e compulsórias em que se tenta encaixá-la ao longo da narrativa de Hedwig e o Centímetro Furioso (Hedwig and the Angry Inch, John Cameron Mitchell, 2001).

Nascido e criado na Alemanha Oriental, Hansel (Ben Mayer-Goodman) sofreu abusos sexuais de seu pai (Gene Pyrs) e conviveu com o distanciamento emocional de sua mãe (Alberta Watson). Em meio a sua juventude conturbada, ele se dá conta de que a heterossexualidade não lhe cabia. Hansel passava a maior parte de seu tempo ouvindo à rádio do exército americano, sofrendo influências artísticas e culturais que consequentemente faziam com que a personagem buscasse por uma ideia de liberdade tipicamente americana e que nunca havia desfrutado em seu país. Jillian Sandell detalha esse aspecto em seu texto “ Transnational ways of seeing: sexual and national belonging in Hedwig and the Angry Inch”:

Quando criança na Berlim Oriental, a formação cultural e política de Hansel é moldada pela AFN através de identificação ambivalente. Nascido em 1961, o ano em que o muro foi construído, Hansel só conhece Berlim como uma cidade dividida. Hedwig nos diz que enquanto a maioria dos outros alemães fugiu para o Ocidente quando o Muro de Berlim foi construído, a mãe arrumou suas coisas e se mudou para o Oriente. O filme retrata a infância de Hansel pelos padrões das tropas ocidentais da Guerra Fria no Leste Europeu: um apartamento visualmente apertado, um ambiente politicamente repressivo e uma paisagem culturalmente monótona. É nesse contexto que Hedwig reflete sobre sua infância em Berlim Oriental e lembra que “a maior parte do meu tempo foi gasto ouvindo a “American Forces Radio “. O que o filme torna visível é o tráfego cultural dos EUA; o que faz esse tráfego cultural possível, no entanto, é o tráfego militar anterior menos visível. O desejo de Hedwig emerge e responde à presença militar e cultural dos EUA na Alemanha Ocidental (SANDELL, 2010, p. 345).

Ao conhecer e se apaixonar pelo oficial americano Luther Robinson (Maurice Dean Wint), a quem se referia como “Sugar Daddy”, viu sua chance de partir para o Ocidente, e para isso, submeteu-se, com apoio de sua mãe, de quem pegou o passaporte e o nome “Hedwig”, à cirurgia de mudança de sexo visando se casar com Luther para poder partir dali como sua esposa.

No número musical “Angry Inch”, Hedwig canta sobre sua cirurgia, que definitivamente não havia cumprido com seu objetivo de fazer dela anatomicamente uma mulher.

Minha operação de mudança de sexo foi ferrada
Meu anjo da guarda dormiu na hora
Agora tudo que eu tenho é um pinto de boneca Barbie
Eu tenho um centímetro enfurecido
(…)
Eu sou da terra da onde você ainda ouve os gritos
Eu tive de sair, tinha de cortar todas as relações
Mudei o meu nome e assumi um disfarce
Eu tenho um centímetro enfurecido
(…)
Longa curta história
Quando acordei da operação
Eu estava sangrando lá em baixo
Eu estava sangrando no corte entre as pernas
Meu primeiro dia como mulher
E já era aquela época do mês
Mas dois dias depois
O buraco fechou
O ferimento cicatrizou
E eu fiquei com um monte de uma polegada de carne
Onde costumava ser meu pênis
E a vagina nunca apareceu
Um amontoado de carne de um centímetro com uma cicatriz cortando ao meio
Como um lado careta
em um rosto sem olhos
Só um pouco de volume
Era um centímetro furioso.

(Angry Inch, 2001)

E embora o procedimento houvesse sido o bastante para permitir o casamento e sua partida da Alemanha Oriental, Hedwig passa pela decepção de perceber que sua nova identidade não satisfaria seu esposo, que após a mudança para os Estados Unidos, a abandona, partindo na companhia de outro homem.

Após apresentado o contexto da personagem Hedwig, observa-se que ali no palco, em turnê com sua banda, não há um homem em drag, tampouco uma mulher transgênera, mas alguém que canta seu conflito de não ser um homem nem uma mulher, usando apenas a “performance de gênero” que melhor lhe cabe.

Posteriormente, um anseio da personagem nos é exposto: Uma canção recontando a história do Mito do Andrógino, do “Banquete de Platão”.
Hedwig usa o mito para expressar a procura pela sua metade, após sua decepção com Tommy Gnosis (Michael Pitt) e durante seu relacionamento abusivo com Yitzhak (Miriam Shor).

O que chama a atenção neste contexto é alguém nas condições de gênero de Hedwig se apegando a este mito como a real origem do amor. Quais as chances de ela encontrar de fato o amor, se baseando em uma história de certa forma inclusiva, mas ainda estritamente binária com relação aos gêneros?

Quando a Terra ainda era reta
E nuvens, feitas de fogo
E montanhas iam até o céu
Às vezes além
Povos vagavam a Terra como grandes barris rolantes
Eles tinham dois pares de braços
Eles tinham dois pares de pernas
Eles tinham dois rostos saindo
de uma cabeça gigante
Para que pudessem ver tudo envolta deles
Enquanto falavam; enquanto liam
E eles não sabiam nada de amor
Isso foi antes da origem do amor
A Origem do Amor

E haviam três sexos então,
Um que parecia com dois homens
Grudados pelas costas
Chamados de filhos do sol
E similar em forma e cinturão
Eram os filhos da Terra
Eles pareciam duas garotas enroladas em uma
E os filhos da lua
Eram como um garfo em uma colher
Eles eram parte Sol, parte Terra, parte filha, parte filho

(The Origin of Love, 2001)

Hedwig anseia encontrar sua metade, mas baseando-se em uma “verdade” que exclui sua condição, portanto enfrenta um conflito interno.

Quando pensou ter encontrado o amor em Tommy Gnosis, ela não poderia ignorar o fato de Tommy não aceitar seu corpo incomum, provocando uma ruptura entre eles.

Hedwig procura por Tommy durante todo o filme — ambos estão em turnê e ela o acusa de apropriação de suas composições. Mas, nota-se também que a busca por este antigo amor resulta em uma busca por si mesma. Quem ela realmente é? Ela deve continuar na performance feminina que a levou aos Estados Unidos? Ela de fato de identifica com o gênero feminino?

Percebe-se que não. Devemos lembrar que todo motivo por trás da cirurgia era a possibilidade de um casamento heteronormativo, ou seja, entre um homem e uma mulher. Na época, Hansel se identificava com o gênero masculino e assumia o pronome “ele”. Hedwig nasceu como uma esperança de liberdade e fuga. Mas, depois a identificação física com seu interior não aconteceu. Àquela altura, seria apenas menos trabalhoso assumir uma identidade feminina, porém não poderia voltar ao masculino tampouco.

O entendimento de quem é, a aceitação e a tão sonhada liberdade chega para Hedwig, que pela primeira vez, não se esconde atrás do que se espera dela e apresenta o último número do musical:

(…)
Respire, sinta, ame
Entregue, liberte
Saiba no fundo do seu ser
Como o sangue sabe o caminho
Do seu coração até sua cabeça
Sabe que você é inteiro.
(…)
(Midnight Radio, 2001)

Considerações finais
Hedwig e o Centímetro Furioso é um filme que nos apresenta essa personagem interessante e cheia de questões. E estimula a reflexão de forma didática sobre gênero, pertencimento e identidade. Ainda na última cena, há quem interprete que Hedwig havia reassumido a identidade masculina, uma vez que se despiu de toda feminilidade pela primeira vez, desde que deixara de responder por Hansel. Porém, chego a outra conclusão: Hedwig havia entendido que o feminino e o masculino não lhe bastavam, e por isso, não havia metade que a completasse. Ela era em si, completa: aspectos femininos, masculinos e a fluidez entre ambos. Fica explicito na obra que gênero vai muito além dos atributos físicos, e se ater a isso resulta na infeliz tentativa de se adequar ao que o social espera daquilo que vemos refletido no espelho, que por sinal, não nos define.

Referências Bibliográficas

SANDELL, Jillian. “Transnational ways of seeing: sexual and national belonging in Hedwig and the Angry Inch”. Gender, Place and Culture. Vol. 17, №2, April 2010, pp. 231–247.

SALAZAR, Rosa. “Hedwig and the Angry Inch: A Radical Affront to Conventional Renditions of Gender”. Culture Society & Praxis. Vol. 3 №1, November 2004, pp. 69 –78.

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