Judy Garland e a performance drag em “Nasce uma Estrela” (1954)

Lara Queiroz
Musicais: Utopias (Queer) no Audiovisual
11 min readAug 26, 2018

Resumo: Este artigo busca analisar as performances drag de Judy Garland no filme Nasce uma Estrela (A Star is Born, George Cukor, 1954) como forma de libertação dos papéis de gênero impostos à personagem, utilizando como base conceitos como o camp, a imagem e biografia de Garland e as teorias de gênero de Judith Butler.

Judy Garland como Esther Blodgett/Vicky Lester em Nasce uma Estrela, de 1954

Um astro de cinema em decadência e com problemas de alcoolismo conhece uma atriz e resolve ajudá-la a alcançar o estrelato. No decorrer do filme, os dois se apaixonam e se casam. Ao ver sua carreira decair enquanto a carreira de sua esposa ascende, ele afunda cada vez mais em seus problemas. Essa é a história contada em Nasce uma Estrela (A Star is Born), musical dirigido por George Cukor em 1954, que traz Judy Garland como protagonista. Nesse filme é explorado o desempenho dos papéis de gêneros, através de personagens que se vêem obrigados a desempenhar comportamentos relacionados a construção de gênero masculino e feminino. Essas normas são subvertidas durante as performances drag de Garland, o que permite à personagem uma fuga temporária, um momento de liberdade, desses padrões institucionalizados.

De acordo com Judith Butler (2003), o gênero é construído através de atos e gestos repetitivos — denominados “performativos” — os quais reiteram uma construção discursiva dos corpos, baseada no sexo binário, ou seja, a ideia de papéis de gênero naturalizados é uma construção social. No filme, Norman Maine (James Mason) é um artista com problemas de alcoolismo, que se sente incomodado com o sucesso de sua esposa em detrimento ao fracasso de sua carreira. A se ver sendo sustentado por sua mulher ele sente seu orgulho ferido, uma vez que ele deveria desempenhar o papel de “homem”. Por outro lado, temos Esther Blodgett (Judy Garland), que está presa entre seu papel de atriz em ascensão de Hollywood e de esposa devotada, que tenta desesperadamente se encaixar nos padrões. Os dois personagens estão presos a uma performatividade de seus papéis heteronormativos, se tornando angustiados e pressionados ao não conseguirem desempenhá-los.

Esther após a transformação sendo avaliada por Norman

Em uma cena do filme, vemos essa exibição angustiante dos fardos da feminilidade tradicional imposta à protagonista. Nela, Esther é submetida a uma transformação visual para se encaixar nos padrões dos corpos de Hollywood, sendo constantemente criticada por suas características divergentes. Ao apresentar um excesso do hiperfeminino, ela passa a desempenhar um ato drag, uma vez que ser fêmea não significa necessariamente ser feminina (HELFORD, 2013). Apesar de ser mulher, Blodgett não apresenta as características consideradas “femininas” para os padrões de Hollywood, sendo que a construção dessa feminilidade se dá através de atos performativos relacionados ao gênero. Nesse caso, ao vermos Judy super produzida, acentuando essas características consideradas femininas de forma exagerada e artificial, ela performa uma intensificação do papel de gênero. A cena que se segue é a de Maine se deparando com Esther e rejeitando a transformação. Ele a leva para casa e retira toda sua maquiagem, a peruca loira e a prótese no nariz, refazendo sua maquiagem de forma natural, a forma que ele aprova. É interessante notar como o papel feminino é construído através de um olhar masculino, e como durante todo o filme, as vontades de Esther estão sempre relacionadas às vontades de Norman.

O filme faz diversas referências ao início de carreira de Judy Garland e aspectos de sua vida podem ser vistos tanto na personagem Esther quanto em Norman. Assim como a protagonista, Judy teve que mudar seu nome, passou por diversas transformações e teve seu corpo e sua imagem manipulados pela MGM, uma vez que ela não se encaixava no padrão de glamour das artistas femininas hollywoodianas da época, sendo relacionada a uma imagem de ordinariedade. Esse termo, utilizado por Dyer (1986), é uma das categorias que explica a sua relação dentro de uma cultura gay. Ele faz referência a como sua imagem era apresentada nos filmes da MGM, sempre relacionada a papeis e imagens de uma garota comum e não muito atraente. Essa relação com a ordinariedade se dá através da disparidade entre a imagem de suas personagens e a pessoa real por trás delas, que se provou ser de forma alguma comum, permitindo uma identificação por parte de seus fãs gays. Tanta pressão sobre seu corpo a fez recorrer a diversos remédios e ao alcoolismo. Nesse contexto, as performances drag de Judy podem significar uma libertação dos papéis de gênero e das constantes críticas de estúdio, que tanto ela quanto Esther, sofriam.

De acordo com Richard Dyer (1986) em seu texto “Judy Garland and Gay Men”, a imagem de Judy expressa uma “androginia de gênero”, através de suas roupas e de sua movimentação. Esse corpo andrógino não se encaixa na masculinidade e na feminilidade conferidas pela sexualidade heteronormativa, é algo “no meio” disso, que transcende essas construções. Essa androginia de Garland apresenta duas direções opostas denominadas por Dyer como vampish (sedutora) e de trampish (vagabundo). Em “Gotta Have Me Go With You”, vemos uma imagem vamp de Garland, em que ela é glamourosa, sexy, mas ao mesmo tempo “parte dos garotos”. Diferente dessa imagem, em “Swanee”, em que vemos Garland, em seu estilo tramp, completamente masculinizada. Essa compreensão de androginia é muito importante para os atos drag, uma vez que esse corpo contesta o poder dos papéis heteronormativos.

A esquerda temos Garland em seu estilo vampish em “Gotta Have Me Go With You”, e a direita seu estilo trampish em “Swanee”

Esses conceitos de gênero são desconstruídos durante as performances drag de Garland, permitindo esses momentos de fuga da personagem. Ao deslocar valores que inicialmente pertenciam a um domínio masculino, colocando-os sobre um corpo feminino, Judy, em suas performances drag, “brinca com a distinção entre a anatomia do performer e o gênero que está sendo performado” (BUTLER, 2003, p.196), reapropriando e desconstruindo essa visão de heteronormatividade vigente. Como disse a própria Butler:

“No lugar da lei da coerência heterossexual, vemos o sexo e o gênero desnaturalizados por meio de uma performance que confessa sua distinção e dramatiza o mecanismo cultural de sua unidade fabricada” (BUTLER, 2003, p. 197).

Esther (Judy) antes da apresentação

As performances drag podem ser tanto libertadores quanto constrangedores diante desses papéis. Na performance vamp de “Gotta Have Me Go With You”, vemos Garland trazer um apelo sexual, acompanhado por suas vestimentas. Ao vestir uma jaqueta justa e meia calça, que deixa as pernas à mostra, ela se mostra desconfortável. Isso é confirmado na cena anterior à apresentação, em que temos um plano de Judy por trás, se preparando e ajustando suas meias, demonstrando certo nervosismo. Inclusive a letra da música é um apelo ao dizer “Você tem que me levar contigo”. Por outro lado, a sua performance tramp na sequência “Born in a Trunk” — em que canta a música “Swanee” vestida com cartola, jaqueta, gravata e luvas brancas — apresenta uma personagem que se demonstra extremamente confortável, encarando ao público de forma confiante e abrindo seus sentimentos ao cantar (HELFORD, 2013, p. 599). Dessa forma, podemos inferir que as performances drag tramp oferecem desafios às normas de gênero, permitindo uma total liberdade da tradicional feminilidade.

Ainda na sequência “Born in a Trunk” temos uma metalinguagem ao vermos Esther, em seu primeiro filme, interpretando uma atriz em uma apresentação. Nos números musicais consecutivos, a personagem traz sua história, desde o fato de ter nascido em um baú dentro de um teatro, suas primeiras apresentações, a entrada no mundo de Hollywood, as decepções e, por fim, conseguindo o que queria. Aqui, temos outras referências à vida de Garland. Assim como a personagem do número musical, ela também tem origens no teatro, uma vez que seu pai era dono de um. Além disso, a música ainda faz críticas às agências e aos sistemas hollywoodianos da época. Na letra de “You Took Advantage Of Me”, ela canta: “Eu sou uma sentimental boba/ De que adianta tentar não cair?/ Eu não tenho vontade/ Porque você se aproveitou de mim”, demonstrando esse poder e a violência que essas agências exercem sobre esses corpos. Nas sequências musicais a personagem se apresenta em roupas femininas apertadas e desconfortáveis, sempre se mostrando ansiosa ou decepcionada. Quando finalmente a personagem de Esther Blodgett, agora reconhecida pelo nome artístico Vicky Lester, consegue o que quer, ela aparece em roupas masculinas, confiante e feliz para cantar “Swanee”. Aqui, a performance drag pode ser lida como um extravasamento das decepções e pressões ocasionadas pelos sistemas de Hollywood.

Judy durante a sequencia de “Born in a Trunk”

Os musicais frequentemente oferecem esses momentos de subversão, uma vez que eles podem ser relacionados ao conceito de camp. Para Susan Sontag (1964), o camp é uma sensibilidade ligada a um esteticismo, uma maneira de ver o mundo como um fenômeno estético, não em relação a beleza, mas ao artifício, estilização. Além disso, ele é ainda uma qualidade que pode ser encontrada nos objetos e no comportamento das pessoas. Dentro das características de um humor camp, ainda de acordo com o texto de Sontag, estão à paródia, a representação e a teatralidade. Essa paródia e teatralização do gênero é uma estratégia de deslocar o poder dessa heteronormatividade compulsória naturalizada. Para Butler, “a proliferação parodística priva a cultura hegemônica e seus críticos de reivindicação de identidades de gênero naturalizadas ou essenciais” (BUTLER, 2003, p. 180), ou seja, ao justapor uma identidade masculina em um corpo feminino, Garland perde essa distinção binária, parodiando o ideal de gênero e subvertendo o poder, desnaturalizando o sexo e permitindo uma fuga das normas impostas.

Outro número importante em que Garland utiliza o drag é “Lose That Long Face”. A performance tramp de um pré-adolescente retoma essa ideia de infância, ligada à inocência e à liberdade das amarras da vida adulta, trazendo um ar brincalhão para o número musical. A letra traz uma referência a Garland e Esther por terem falhado em cumprir os padrões de aparência feminina de Hollywood, ao dizer: “Se, como e quando você tem um rosto comprido/ Reordene/ Não se contente com a cara errada/ Há uma maneira de mudar isso”, retratando os ataques sofridos por Garland, pela MGM, e por Lester/Blodgett, no filme. Ao citar Peter Pan e Tom Sawyer, ela desloca da esfera adulta essa crítica de gênero. Isso, associado às roupas largas e a sua movimentação — que de acordo com Dyer (1986, p. 168) é relacionado a coreografias masculinas — permitem uma maior liberdade do corpo. O drag funciona como uma forma de reorganizar a aparência para evitar censuras (HELFORD, 2013, p. 600), e ao apresentar esse número tramp, Garland se solta das restrições de gênero e da feminilidade adulta.

Performance de “Lose That Long Face”

No contexto do filme, a performance acontece em um momento em que a protagonista confronta o fracasso dos papéis de gênero heteronormativos. Ela se vê presa entre a sua carreira e sua vida conjugal, uma vez que Norman chegou a um ponto extremamente problemático, ao ver sua carreira e fama acabarem. Em uma conversa com o chefe de estúdio, Oliver Niles (Charles Bickford), ela sofre um colapso e desabafa as suas angústias em relação ao marido que se tornou emocionalmente abusivo, mas que, apesar disso, ela não pretende abandonar. Por outro lado, temos uma atitude que considero feminista ao ver que a personagem não quer ceder às normas — pelo menos nesse ponto da narrativa — ao recusar colocar o casamento acima de sua carreira. Após essa cena, que é uma das mais emocionantes de Garland, Esther/Vicky enxuga os olhos, retoca a maquiagem e volta para o set confiante e determinada, vestida como um garoto. Na cena seguinte, em que vão fazer um close de seu rosto, a música entra e ela fica prestes a chorar, mas quando chega a sua parte, ela corta a emoção ao meio, encarna no personagem e volta a cantar com uma alegria contagiante.

Momento da transição da atriz para o personagem

Apesar de continuar em sua carreira, Blodgett se sente responsável pelo marido. Quando Norman chega ao fundo do poço, Esther decide parar sua carreira para ajudá-lo, finalmente aceitando as condições sexistas de gênero impostas. Na varanda de sua casa, ela conversa com Niles sobre deixar sua carreira para ajudar Norman, o qual está em um quarto ao lado escutando tudo. Na cena, a aparência de Esther — que traz um vestido constrito e um lenço no pescoço — reflete sua angústia diante um casamento desgastado por conformidades com as normas sociais, que estão pressionando tanto ela quanto seu marido. Maine, ao perceber o efeito que está causando na vida de sua esposa, decide se afogar no mar. Esther, inicialmente fica paralisada pelo suicídio de Norman, se sentindo culpada. Ao final, seu ex-parceiro de banda Danny McGuire (Tommy Noonan) a convence de que ela é um legado deixado por Norman Maine, mais uma vez relacionando o seu papel feminino a uma dependência ao papel masculino. Ela toma isso como uma verdade, e na conclusão do filme ela volta ao palco, usando um vestido elegante e extremamente feminino, reiterando essa aparência normativa de gênero. Ela não é ovacionada por um desempenho artístico, mas por uma performance de gênero (HELFORD, 2013, p.602) ao anunciar sobre o microfone: “Esta é a Senhora Norman Maine”.

Esther ao palco afirmando ser “Sra. Norman Maine”

Os desempenhos dos papéis de gênero institucionalizados dentro da sociedade são um ponto importante do filme Nasce uma Estrela, uma vez que eles induzem as atitudes de seus personagens. Diante de sua carreira em Hollywood e o seu papel como esposa, Blodgett se vê pressionada de diferentes formas durante todo o filme. Além disso, a imagem que Garland evoca é muito bem representada em sua personagem, possuindo uma relação entre a biografia das duas, uma vez que assim como a protagonista, Judy também foi vítima desses padrões impostos durante toda a sua vida. Diante disso, as performances drag funcionam, através da subversão e paródia do gênero, como um desvio momentâneo dessas normas. Apesar de ao final a protagonista ceder a esses papéis, esses números drag merecem ser destacados, uma vez que eles são uma contestação a esses padrões heteronormativos institucionalizados, uma forma de resistência e de liberdade do corpo, o qual é constantemente constrangido.

Referências:

BUTLER, Judith. “Problemas de Gênero — Feminismo e subversão da identidade”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

DYER, Richard (1986). “Judy Garland and Gay Men”. In: DYER, Richard. Heavenly Bodies: Film Stars and Society. London, New York: Routledge, 2004.

HELFORD, Elyce Rae. “Theatricality and Female Drag in Three Films by George Cukor”. In: Feminist Media Studies, 2014, p. 593–607.

SONTAG, Susan (1964). “Notes on’ Camp”. In: Camp: Queer Aesthetics and the Performing Subject: A reader. Edinburgh University Press, 1999. p. 53–65.

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