Admiro o homem, amo a mulher: sobre Mulan, Lee Shang e sexualidades não-binárias

Luá Octaviano
Musicais: Utopias (Queer) no Audiovisual
16 min readAug 27, 2018

Resumo: Em Mulan (1998), a protagonista precisa se disfarçar de homem para atingir seu objetivo. Nessa jornada, conhece Lee Shang e o flerte deste com a protagonista fica subentendido ao longo da trama, até se transformar em paixão após a descoberta de seu “verdadeiro eu” feminilizado. Neste artigo, pretendo analisar e discorrer sobre a sexualidade desse par romântico masculino, tentando problematizá-lo e entendê-lo em sua complexidade.

Mulan (Tony Bancroft, Barry Cook, 1998) é uma animação da Disney popularmente aclamada pela suposta transgressão que representa em relação aos outros longas-metragens do estúdio protagonizados por personagens femininas, quase sempre encarnadas na figura das princesas, que por sua vez exaltam, reforçam e — mais que isso — ensinam a gerações de crianças os padrões de gênero que uma menina deve seguir: os da delicadeza e subordinação (Fig. 2), em outras palavras, da feminilidade, em busca de um objetivo, o de encontrar seu príncipe encantado.

De fato pode-se, à primeira vista, considerar o filme como um marco no que diz respeito às possibilidades que ele se permite abrir nesses ensinamentos de gênero a um público infantil, retirando da protagonista a figura da princesa e dando a ela a imagem da guerreira, mostrando que mulheres podem também fazer “coisas de homem” — no caso, a guerra, e todas as suas implicações físicas do corpo, às vezes melhor que os próprios.

Devido a isso — e à boa recepção do filme pelo público em geral — , não é de se espantar que tenha surgido, principalmente nas redes sociais, preocupações com o “legado” que Mulan deixará às novas gerações através da sua futura adaptação em live action, atualmente em produção. Por não se tratar de um remake, ou seja, por não ser uma obra fiel à original — se é que pode-se considerar o longa de 1998 como obra original, sendo o próprio uma adaptação — , grandes mudanças podem ocorrer. Uma dessas, já confirmada, diz respeito ao par romântico da protagonista: Lee Shang, personagem que não existirá no live action, sendo substituído por outro, com características distintas — e, ao que tudo indica, opressoras à personagem.

Se é comum que uma mudança no par romântico protagonista de um filme cause estranheza e aversão, isso normalmente se dá pela sua figura enquanto representante da utopia romântica heterossexual. Aqui, no entanto, pode-se perceber algo diferente: embora a atração de Shang por Mulan — e vice-versa — se torne ao final do filme explícita, ela se desenvolve ao longo da narrativa, enquanto Mulan ainda está travestida, disfarçada de homem, assumindo o nome de Ping. Seria, portanto, um desenvolvimento de atração entre um homem e, ao menos conforme sua própria percepção, outro homem, o que levou o público a destacar o personagem como “ícone bissexual” (Fig. 1) e reclamar de sua exclusão enquanto tal. Assim, tal qual a animação é exaltada pela sua transgressão, Shang também o é; não pela sua finalidade heterossexual, mas por seu desenvolvimento supostamente homoafetivo ou bissexual.

Fig. 1: Artigo do portal SyFy, uma das diversas publicações que exaltam Shang como ícone bissexual [Legenda: “Aos criadores de Mulan: Traga nosso ícone bissexual de volta!”]. Disponível clicando aqui, acesso em 10 de julho de 2018.

O objetivo deste artigo é trabalhar em cima desta questão. Busco analisar não a protagonista Mulan, mas seu par romântico, jogando luz sobre ele e, especificamente, sobre sua sexualidade. Tento entender não apenas o aparente flerte homoafetivo do filme, mas o que ele representa numa escala maior, e o que se pode dizer sobre a sexualidade de Shang, a depender sempre do que se pensa sobre o gênero de Mulan e os desafios que tanto personagem quanto filme implicam à heteronormatividade e à estrutura de poder patriarcal.

Mulan: Transgredindo gênero?

Pouco me interessa aqui fazer uma análise profunda sobre em que medida Mulan de fato representa uma insubordinação à heteronormatividade ou de que maneiras ela, pelo contrário, a reforça. Afinal, esse trabalho já foi feito (ver LIMBACH, 2013, e MACHADO, 2013). No entanto, para entender a problemática da sexualidade de Shang, é preciso ao menos discorrer brevemente sobre essas discussões anteriores.

A primeira conclusão que se pode tirar é a de que o filme expõe os princípios patriarcais que operam e constroem a ideia da feminilidade e os impõem sobre as mulheres. Mulan precisa passar já nos primeiros minutos de filme pela avaliação de uma casamenteira, que determinará se ela é uma mulher digna de se casar. O objetivo de toda a construção da feminilidade nessa sociedade está no casamento, e assim, ser aprovada pela casamenteira é mais que garantir seu status enquanto “esposa”, mas enquanto “mulher”. É como se, no momento do nascimento e designação de um gênero pautado no sexo, esse momento do casamento se tornasse o objetivo final de toda a sua identidade futura. “Nesse sentido, o performativo introdutório ‘É uma menina!’ antecipa a eventual chegada da sanção ‘Eu vos declaro marido e mulher’”. (BUTLER, 1993, p. 22, grifo nosso).

Fig. 2: No primeiro ato musical de Mulan, a personagem aprende as características de uma boa esposa: “calma, obediente”. [Clique aqui para assistir ao número musical dublado em português]

Após essa exposição, o que se sucede é uma personagem que não se adéqua às expectativas de feminilidade lançadas sobre ela e que, portanto, se vê como alguém que não poderia dar honra à sua família. Para contornar tal situação, Mulan resolve se travestir, se disfarçar de homem e ir à guerra no lugar de seu pai. Nessa jornada, aprende o que supostamente é ser homem, especialmente no número musical “Não Vou Desistir de Nenhum”, com o icônico refrão “Homem ser”. A pergunta que se lança é feita por Shang: “Como posso te tornar um homem?”. A resposta que Mulan dá através das suas ações, ao conseguir escalar o tronco (feito que nenhum homem consegue alcançar) é de que ele não pode, apenas ela, enquanto sujeito da ação, poderia. E “porque ela consegue escalar o tronco quando os outros homens não, parece que seu poder emana de seu gênero confuso, no fato de seu travestimento, e não em uma identidade de gênero específica” (LIMBACH, 2013, p. 121)

De fato, é nessa condição ambígua, de cross-dresser, cujo gênero está no limiar do binário, que Mulan atinge boa parte de seus pontos altos no filme. Nas palavras de Limbach, “Mulan é mais forte […] quando ela está entre gêneros” (LIMBACH, 2013, p. 122). Apesar disso, essa interpretação é uma da qual a Disney parece buscar fugir. Ainda segundo Limbach, embora Mulan tenha conseguido superar os homens ao subir no tronco, e ter inicialmente parado o exército rival sozinha em sua situação de cross-dresser (a morte de Shan Yu, que resulta no salvamento da China), ela atinge esse objetivo enquanto mulher, diminuindo o poder dessa figura “estranha”, entre-gênero.

Há, portanto, uma busca frequente em diminuir as transgressões que o filme e a personagem representam para a normatividade, e compreender isso é fundamental para nossa análise. Por mais que a natureza impositiva dos padrões de gênero seja exposta, revelando não apenas que a feminilidade enquanto expressão natural da mulher é uma farsa e que, por consequência, a masculinidade também o é, sendo características que os indivíduos precisam aprender — aprender a ser uma boa esposa; aprender a ser um bom guerreiro — , ao mesmo tempo a obra faz questão de reforçar a diferença entre os gêneros, pautadas em seus sexos.

Fig. 3: O filme faz questão de delimitar as diferenças entre homens e mulheres. Homens são “nojentos”, como afirma Mulan nesse frame. [Legenda: “ — bonito, não é?”, “ — eles são nojentos”]

Com isso, o “homem ser”, de fato, nunca foi uma opção para Mulan, e faz-se questão de deixar isso claro. Homens são considerados nojentos (Fig. 3), fedidos, agressivos; e Mulan — e por consequência o público infantil feminino do filme — não deve almejar ser como eles. Não obstante, após toda a jornada da personagem, Mulan retorna para casa, para a estrutura patriarcal familiar, trazendo honra para o homem da família, seu pai, e abrindo possibilidade (implícita) de se casar futuramente com Shang. Todas as estruturas heteronormativas e patriarcais permanecem, portanto, intactas, mesmo que previamente tenham sido abaladas. A normalidade, o estado de paz, retorna ao filme no momento em que Mulan atinge seu objetivo enquanto mulher, enquanto esposa. Trata-se portanto de um esforço em manter as estruturas vigentes. Afinal, a Disney “não pode criticar os padrões de gênero tradicionais, porque lucra em cima deles” (ABEL, 1995, p. 188, apud LIMBACH, 2013, p. 121).

Para atingir esse objetivo, é notório que mesmo que Mulan consiga se passar como homem para seus companheiros, sua identidade enquanto mulher é sempre reforçada ao público, numa pressa narrativa para que não se pense muito sobre sua identidade de gênero e a condição não-binária de sua performance, já que “focar e celebrar demais a figura cross-dresser pode parecer apoiar um desafio aberto às normas de gênero dominantes” (LIMBACH, 2013, p. 121).

O flerte homoafetivo

Falo demais sobre Mulan quando nosso foco é Lee Shang, mas há justificativa para tal. Entender que a transgressão normativa de Mulan é sempre diminuída pela reafirmação do poder patriarcal e da heteronormatividade é essencial para analisarmos o relacionamento do par romântico protagonista. Qualquer análise que não reconheça essa questão se tornaria frágil e poderia facilmente ser contrariada.

O que precisa se considerar quanto a tudo isso é o fato de que questionar os valores heterossexuais não é sinônimo de rompê-los. Nas palavras de Butler (1993, p. 22): “não há garantia de que expor o status naturalizado da heterossexualidade levará à sua subversão. A heterossexualidade consegue aumentar sua hegemonia através da sua desnaturalização.”

A partir dessa compreensão, podemos enxergar o flerte entre Shang e Ping (nome que Mulan assume enquanto indivíduo cross-dresser) através de dois prismas. O primeiro diz respeito ao significado dos atos dos personagens para a história e a mensagem que esses atos passam sobre cada personagem; o segundo, por sua vez, ao que eles representam para a estrutura da narrativa da obra e para o intuito educativo da obra de animação. Trato primeiro deste.

Se o telos do filme, apesar dos questionamentos de gênero que a figura de uma protagonista travestida traz, está na restauração e reafirmação do desejo heterossexual e da utopia do casamento, então as escolhas narrativas vão girar em torno desse mesmo propósito. Dessa forma, o personagem de Shang serve, tal qual os príncipes encantados, para ser a figura do grande homem, masculino, bom, viril, desejável. É nele que se esquecem os defeitos da masculinidade — a agressividade, a nojeira, o mal cheiro, já mencionados — e se veem todos os seus benefícios. É ele o objeto de desejo romântico para a formação de um par heterossexual.

Shang serve então para cumprir essa função e as relações dele com a protagonista deverão ser sempre pensadas sobre esse viés. A partir do momento que Mulan o vê, está instaurado o desejo e prevista a paixão que culminará no casamento. Por outro lado, o interesse romântico não pode ser exclusivo de apenas um lado da relação, é preciso fazer com que Shang também deseje Mulan. Contudo, é de se convir que causaria estranheza se esse interesse fosse repentino e, visto que leva tempo para que Mulan volte a assumir publicamente sua identidade enquanto Mulan, se faz necessário desenvolver esse interesse de forma sutil enquanto ela ainda é Ping. Com isso, o interesse mútuo ao final de toda a narrativa se tornaria mais apreciado, por ter se desenvolvido primeiramente com uma relação de proximidade e afeto entre os dois.

O que quero dizer com isto é que, mesmo que o flerte entre Shang e Mulan se dê, na percepção de Shang, entre ele e Ping, isso não representa — na função narrativa e educativa do filme — uma subversão da heteronormatividade; pelo contrário, fortifica e naturaliza a mesma. Isso se relaciona diretamente ao que já foi dito anteriormente: mesmo que Mulan seja entendida como homem pelos seus companheiros, sua identidade enquanto mulher é sempre reforçada para o espectador. Enquanto Shang vê Ping e se interessa por ele, o que o filme busca é levar o público a ignorar esse fato; se sempre entendemos Mulan como uma personagem feminina, então não deveria passar pela nossa cabeça que Shang não a vê como nós a vemos. O olhar do personagem assume o nosso: a heterossexualidade se consolida.

Afirmar isso não significa, no entanto, desvalorizar a conotação queer dessa relação. Se por um lado essas são as implicações do flerte para o objetivo de manter o status quo, por outro, suas implicações práticas quanto aos personagens não podem ser ignoradas. Pelo que Shang sabe, Ping é um homem e ao haver um afeto entre eles, há uma tensão homoafetiva presente. Por mais contraditório que isso possa ser, essa tensão é então, na prática, buscada para dar força à heterossexualidade. Dessa forma, ela não é mero detalhe, tampouco imaginação do espectador. Tal qual Aaron destaca em seus pensamentos sobre Yentl (Barbra Streisand, 1983), outro musical com uma protagonista travestida, essa tensão “é mais que implícita, flerta-se com ela e busca-se a mesma” (AARON, 2000, p. 126) e seu principal gesto subversivo, bem como no filme de Streisand, reside nos olhares (Fig. 4, 5 e 6) entre os personagens (AARON, 2000).

Fig. 4: O primeiro olhar de Mulan ao ver Shang, sem camisa.
Fig. 5: O olhar de Shang quando Mulan se mostra forte e mais habilidosa que os homens.
Fig. 6: Um dos olhares sugestivos que Shang lança a Mulan, quando ela consegue salvar sua vida.

Existe ainda uma outra leitura que pode ser feita desse flerte, que não vem a negar a anterior, mas contrariá-la em certo ponto e complementá-la. Trata-se da compreensão do interesse não como o interesse entre dois homens, tampouco entre gêneros “opostos”, mas como uma tensão sexual entre um homem e um indivíduo fronteiriço. Essa leitura é permitida pela compreensão, já mencionada, da força de ação de Mulan residir enquanto indivíduo cross-dresser, nos momentos em que seu gênero é confuso, em que ela se encontra entre o feminino e o masculino, superando ambos.

Partindo desse entendimento, o que se vê em Shang é o afeto por esse indivíduo. Seu interesse não se dá pela mulher, tal qual a heteronormatividade quer que seja compreendido, mas também não está na homossexualidade. Shang se atrai por Mulan no momento em que ela atinge seu primeiro grande feito no campo: o da escalada do tronco, momento este em que ela supera todos os seus companheiros. Assim, o que interessa Shang não é o fato de Ping ser um homem, mas de ser diferente dos outros homens, mesmo que aparente ser um. Em outras palavras, o desejo do personagem é pelo indivíduo que ele próprio não consegue entender. Tomando novamente emprestado um pensamento de Aaron acerca de Yentl, pode-se dizer que o prazer em Ping é “um prazer transgênero e essa possibilidade transgênera é mediada pelo desejo por ele [o indivíduo fronteiriço]” (AARON, 2000, p. 127), tomando aqui essa transgeneridade de forma não-binária. O flerte é então muito além de um flerte homoafetivo: é um flerte queer.

O problema da nomenclatura

O que essa análise da tensão sexual entre os personagens traz à mesa no que diz respeito a Shang? Qual é, afinal, sua sexualidade? Quando houve o anúncio formal da substituição do personagem na adaptação live action da obra, o termo que costumou-se encontrar pelas redes para exaltar Shang enquanto personagem não-heterossexual foi o de “ícone bissexual”. Meu entendimento, no entanto, é de que essa leitura, aceitando todos os pontos que levantei até aqui, se torna precipitada e rasa.

Há de se ter muito cuidado em nomear identidades alheias, por se tratar de uma categoria que trata essencialmente de questões individuais e por todos os atravessamentos que se sobrepõe a elas. Como afirma Butler, as identidades precisam passar por um processo de autocrítica:

Por mais que termos identitários devam ser usados, por mais que [uma] ‘saída’ [do armário] deva ser afirmada, essas mesmas noções devem se tornar sujeitas a uma crítica das operações exclusivísticas de sua própria produção: […] quem é representado por qual uso do[s] termo[s], e quem é excluído? […] Esse não é um argumento contra usar categorias identitárias, mas um lembrete do risco que permeia cada uso destas. (BUTLER, 1993, p. 19)

Dar a Shang um rótulo é então necessariamente um ato político, dotado de motivações possivelmente pessoais que dizem algo não somente do personagem, mas também de quem o rotula. No entanto, não é somente essa a preocupação que devemos tomar. Dado o caráter único da relação de Shang com Mulan — trata-se, afinal, de forma confusa, de um personagem masculino que se atrai por uma mulher enquanto, por sua vez, acha que a mesma é homem, no momento em que (e pelos motivos em que) suas ações ultrapassam suas identidades tanto como realidade feminina quanto como disfarce masculino e que, após toda essa confusão, descobre a identidade feminina de seu interesse romântico e permanece atraído por ela, tudo isso feito narrativamente com um intuito heterossexualizante — , encaixar a sexualidade de Shang em um único termo específico, que ao mesmo tempo em que afirma certa característica necessariamente exclui outra, se mostra praticamente impossível. Vale lembrar que

diferenças sexuais têm suas próprias dificuldades específicas de definição e identificação. Diferenças de sexualidade não são sempre visíveis. […] Isso significa que o ato de falar sobre [elas] é vital, mas precisamos nos atentar que defini-las e delimitar o pertencimento a categorias sexuais é impossível; sexualidade[s] [são] frequentemente ambígua[s], identificações são flutuantes [e] estrategicamente performadas. (ROSENEIL, 2002, p. 30)

Nessa sentido, rejeitar a concepção de Shang enquanto “ícone bissexual” não representa um desmerecimento dessa leitura, mas apenas uma consideração de que a mesma é precoce e não responde a todas as problemáticas e complexidades que a relação romântica do filme apresenta.

Sexualidades fronteiriças

Seria, todavia, simplista — e, ouso dizer, covarde — rejeitar essa leitura sem propor uma nova compreensão. Não basta negar o que já foi dito, é preciso apresentar novas possibilidades. Indo ao encontro disso, o que proponho é compreender a sexualidade desse personagem enquanto uma sexualidade não-binária, sem rotulação fixa, mas, mais que isso, enquanto sexualidade fronteiriça.

A ideia de utilizar o conceito de fronteiras — e especificamente, de zonas fronteiriças, borderlands — para pensar sexualidades é uma proposta feita por Callis (2014). Tomo essa proposta emprestada pela possibilidade de expansão que ela permite à nossa análise.

Já a imagem de zonas fronteiriças, por sua vez, é trazida por Callis a partir de Anzaldúa, que definiu essas zonas como “instáveis, imprevisíveis, precárias, sempre em transição, sem limites claros” (ANZALDÚA, 2009b, p. 243 apud CALLIS, 2014, p. 69). Trata-se de uma zona física, geográfica, particularmente utilizada para trabalhar o espaço que é dividido pela fronteira entre Estados Unidos e México. Ali, uma nova identidade cultural surge, no limite entre ambos os países, que não pertence exatamente a nenhum deles, mas que transita entre ambos.

Da mesma forma, as sexualidades não binárias,

em vez de se formar separadamente do sistema binário, […] surgiram através/ por dentre as rachaduras dele, criando um espaço intermediário que tem se tornado mais amplo e mais nítido nos anos recentes. Para as pessoas que habitam essa zona fronteiriça, ela é um lugar de fluidez sexual e de gênero, um espaço onde identidades podem mudar, se multiplicar e/ou se dissolver. (CALLIS, 2014, p. 64)

Essa fluidez sexual e dificuldade de definição é o que pode ser visto na relação entre Mulan e Shang. Eles se encontram num espaço que flerta tanto com a heterossexualidade, quanto com a homossexualidade — ambos os lados do sistema binário — e, ao mesmo tempo, ultrapassam questões de gênero. Quando há uma tensão aparentemente homoafetiva que futuramente se transformará na consolidação da tensão heterossexual, o que ocorre é a transição dos indivíduos sexuais de um lado da fronteira para a outra. Se numa fronteira geográfica, pode-se escolher tanto atravessá-la quanto escolher entre um ou outro lado — decisão essa que não é imutável — , também na fronteira sexual

pessoas podem lutar contra outros cruzando as fronteiras, ou fortificar estas. […] Um indivíduo pode se aproximar, ou habitar, ou sair das zonas fronteiriças em múltiplos pontos de suas vidas, e com diferentes perspectivas todas as vezes. Da mesma forma, sexualidades não-binárias são locais de ações múltiplas. (CALLIS, 2014, p. 69)

Através dessa perspectiva, toda a trajetória de Shang se torna se não mais simples, ao menos mais facilmente compreensível. O ato de, em um determinado momento do filme, sua atração representar uma subversão das normas heterossexuais e, em outro, a mesma atração se transformar no ápice e na personificação de toda a cultura matrimonial heterossexual, deixa de ser uma contradição que a redução de sua sexualidade a um rótulo específico evidencia. É uma mudança entre afrouxar as fronteiras e depois reafirmá-las.

Utilizar do conceito de zonas fronteiriças, ao mesmo tempo, não desqualifica o entendimento do personagem como bissexual — a própria bissexualidade é, afinal, não-binária e habita essa mesma zona — apenas amplifica esse entendimento. Por outro lado, representa também uma tendência, apontada na pesquisa de Callis e outras estudadas pela autora (RUST, 2001, e ENTRUP e FIRESTEIN, 2007), de indivíduos que não se sentem confortáveis com um único termo identitário, ou que preferem o uso de identidades alternativas, como queer, bicurioso(a), panssexual e heteroflexível, ao mesmo tempo que também denota uma dificuldade de se nomear, para fins de análise, todas as identidades que vêm surgindo (ENTRUP e FIRESTEIN, 2007 apud CALLIS, 2014).

Considerações finais

Muitos tópicos foram aqui discutidos e questionamentos levantados. Com um debate que surge motivado por notícias sobre uma futura adaptação de Mulan, procurei tentar compreender a sexualidade de Lee Shang, par romântico da protagonista da animação, em sua complexidade, levantando questões sobre o gênero de Mulan, o objetivo heteronormativo do filme, as medidas de sua subversão, e as possíveis análises em cima de uma sexualidade não-binária.

O que se conclui é que há questões queer a serem pensadas sobre esse personagem, mas que não aparentam ser propositais — enquanto questões queer — por parte da produção da obra. Tira-se também que o personagem, e o par de personagens, é mais complexo do que superficialmente aparenta, e se faz necessário pensar nas múltiplas problemáticas que os atravessam.

Por fim, me parece ainda que tal qual fez Barbra Streisand após o lançamento de Yentl, ao negar as implicações homoeróticas de seu filme (AARON, 2000), pode-se entender a exclusão de Lee Shang da futura adapção em live action sob o mesmo olhar. Ao adaptar Mulan sem seu icônico par romântico e substituí-lo por alguém que supostamente deve ser uma figura opressora para a personagem enquanto ela estiver travestida, talvez a nova adaptação se mova em direção a também negar — e de forma ainda pior, excluir — qualquer possibilidade de sexualidade não-binária do casal principal, possivelmente reforçando os signos da utopia heterossexual e de suas tramas comuns, cumprindo um papel heterossexualizante na obra.

Fig. 7: Após Mulan perguntar a Shang se ele quer ficar para o jantar, Mushu completa a utopia heterossexual do casal com sua fala “você quer ficar para sempre?”

* Todas as citações aqui referenciadas tratam-se de traduções livres.

Referências bibliográficas

AARON, M. “Hardly Chazans: Yentl and the Singing Jew”. In: MARSHALL, B.; STILWELL, R. (ed.). Musicals: Hollywood & Beyond. Exeter: Intellect, 2000, p. 125–131.

BUTLER, J. “Critically Queer”. GLQ: A Journal in Gay and Lesbian Studies, v. 1, n. 1, p. 17–32, 1993.

CALLIS, A. S. “Bisexual, pansexual, queer: Non-binary identities and the sexual borderlands”. Sexualities, v. 17, n. 1, p. 63–80, 2014.

LIMBACH, G. “You the Man, Well, Sorta”: Gender Binaries and Liminality in Mulan. In: CHEU, J. (ed.). Diversity in Disney Films: Critical Essays on Race, Ethnicity, Gender, Sexuality and Disability. London: McFarland & Company, 2013, p. 115–128.

MACHADO, C. S. “Mulan: da canção chinesa à produção da Disney — possíveis discursos sobre gênero e identidade”. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero, 10. Florianópolis, 2013.

ROSENEIL, S. “The heterosexual/homosexual binary”. In: RICHARD, D.; SEIDMAN, S. Handbook of Lesbian and Gay Studies. London: Sage, 2002. p. 27–44.

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