Mickey’s Parade of Villains: a “queerificação” dos vilões da Disney

Carol Marques
Musicais: Utopias (Queer) no Audiovisual
9 min readAug 27, 2018

Resumo: O trabalho propõe fazer um mapeamento dos elementos queer na construção dos vilões Ursula, Scar e Governador Rattcliff, com enfoque em seus números musicais em cada filme em que estes são as/os antagonistas. E, a partir desse mapeamento, questionar a presença desses elementos como componentes da vilania, em contraponto à heteronormatividade do “felizes para sempre”.

Vilões da Disney

Desde o amadurecimento do seu papel para com a indústria cultural, produções audiovisuais são manifestações artísticas com a capacidade não só de emocionar e entreter seu público, mas de difundir concepções e valores do grupo proponente. No caso das animações infantis, esse caráter difusor ganha ainda mais importância a partir do reconhecimento de seu potencial educativo não-formal, apresentando ao público ‘família’ (principalmente crianças) discursos ideológicos e padrões de comportamento no que diz respeito à normatividade social.

Dentro desse cenário, a Walt Disney Studios se fundamentou como símbolo do conteúdo cinematográfico infantil, por seus longas e desenhos, assistidos no mundo inteiro. Fundada em 1923, a bilionária empresa merece destaque no que diz respeito ao seu poder enquanto instituição na mercantilização da cultura, além de formadora de opinião, reprodutora em massa de valores e visões de mundo através de suas narrativas. No panorama da cultura midiática, os filmes da Disney educam e moldam a forma com que seu público infantil concebe suas identidades, moral e valores. Entretanto, seu discurso ideológico é disfarçado pela imagem mágica e inocente, encantada e lúdica do “lugar mais feliz do mundo”.

No que diz respeito à formação ideológica quanto questões de gênero e sexualidade, o que se vê é mais do mesmo. As animações dos estúdios Disney reforçam um sistema heteronormativo, através de duas vias principais. A primeira, a construção de um padrão ideal do “felizes para sempre”, fazendo com que sejam comuns filmes centrados na busca pelo amor (branco, heterossexual, classicista) verdadeiro. São protagonizadas pelos heróis e heroínas das narrativas, cujas características físicas e comportamentais denotam performances de gênero claras, quase estereótipos, do que seria a feminilidade ou masculinidade. Em contraponto, temos a segunda via: a associação de características desviantes, fora do padrão tradicional, como identidades de gênero complexificadas aos antagonistas. E é sobre essa caracterização que esse trabalho se propõe a atentar, a partir da análise de como três clássicos vilões do universo Disney — Scar, Governador Ratcliffe e Úrsula — são construídos, principalmente em seus números musicais.

Quanto à questão da vilania em si, algumas considerações hão de ser feitas. Primeiramente, vale ressaltar que tratam-se de personagens que compõem a chamada Era da Renascença dos estúdios Disney. Iniciada pelo lançamento do longa “A Pequena Sereia” (Ron Clements e John Musker, 1989), a fase é marcada por refletir mudanças sociais que aconteceram na época, de modo que temas como multiculturalismo e a figura da mulher na sociedade tiveram maior visibilidade. Nesse período, destaca-se a construção de vilões mais complexificados, que vão além do binarismo bom/mau, que também permitem discussões quanto a questões como gênero e sexualidade (permitindo leituras queer) e que, apesar de aparecerem como antagonistas, representam minorias sociais. De modo que o embate entre a heterossexualidade normatizada dos protagonistas e a codificação desviante do antagonista ganham uma maior centralidade quando discutidas.

Segundo Sean Griffin, em seu artigo Pronoun Trouble, the queerness of animation: “Animação, uma forma de arte geralmente concebida para crianças, sempre teve um histórico de queerness.” Griffin defende que “o objetivo em se usar o termo queer é desafiar e subverter a presumida ordem natural da heterossexualidade”. Um exemplo dado pelo autor é a questão da neutralidade de gênero encontrada nas animações, como animais que nunca são vistos com os órgãos sexuais aparentes e que, “(…) sem esses significantes, os desenhos dependem das vozes e roupas para designar gênero (e também tornam possível negar a existência de qualquer sexualidade).” O autor defende que a presença dos elementos queer enquanto característica das animações visa romper barreiras heteronormativas estabelecidas pelas próprias narrativas.

Muito associado à questão ‘queer’ está o conceito de Camp. De difícil definição, o termo designaria uma sensibilidade estética, uma preferência pelo ostensivo, exagerado, artificial e esotérico. Sua associação ao queer está justamente na concepção como característica dos homossexuais, sua forma de ver o mundo em recusa a uma normalização visual e a um silenciamento através da extravagância. O estilo camp como “sensibilidade gay” está presente em muitos produtos culturais, inclusive nas animações da Disney, marcando uma crítica à narrativa heteronormativa, de modo que sua forma se opõe ao conteúdo. A partir da identificação de elementos camp e sua leitura queer que serão feitas as análises dos vilões a seguir.

Governador Ratcliffe

Pocahontas (Eric Goldberg e Mike Gabriel, 1995) conta a história da filha do chefe de uma tribo americana na época das navegações, quando embarcações inglesas chegam à sua terra, chamada “Novo Mundo”, para explorá-la atrás de ouro e outras preciosidades. Pocahontas e John Smith, um dos exploradores, se apaixonam e, quando o conflito entre seus povos parece insustentável, cabe ao seu amor restaurar a paz. Na animação, a figura do vilão é representada pelo personagem Governador Ratcliffe, sobre o qual apontamentos podem ser feitos quanto sua construção como personagem queer.

Governador Ratcliffe, vilão em “Pocahontas” (1995)

Como muitos vilões, Ratcliffe é apresentado como ganancioso, com fome de poder, cruel e manipulador. Tem muito apreço pela luxúria, mostrada em seus aposentos e vestimentas em uma paleta de cores costumeiramente lidas como femininas. Há também traços de sua aparência física, por exemplo, como a sugestão do uso de cosméticos, pelos cílios alongados, sobrancelhas arqueadas e pálpebras arroxeadas, o cabelo arrumado em duas tranças, seu físico diferenciado, com um peito volumoso e cintura fina, formando uma silhueta quase feminina.

Em seu número musical, “Mine, mine, mine”, Ratcliffe canta para os exploradores da expedição, convencendo-os a trabalhar duro para achar o ouro e pedras preciosas para o reino inglês. O ganancioso personagem canta sobre todo o prestígio que vai receber quando retornar a Londres com muitas riquezas. Conforme o número evolui, vemos uma alucinação do vilão, em que ele é visto descendo uma longa escadaria coberta por um tapete vermelho, enquanto vários servos enfileirados seguram mastros com plumas. Ratcliffe aparece usando uma roupa igual à que usa na realidade, mas toda dourada e cintilante, enquanto canta os versos “Meus rivais lá em casa/ Não que eu seja amargo/ Mas pensem como vão se contorcer/ Enquanto eu cintilo”. Em seu ápice, o número é praticamente uma grande extravaganza imaginária, enquanto os mineiros escavam de maneira coreografada, em círculos, jogando terra para o alto e explodindo canhões como se fossem efeitos visuais. Em análise, o número é recheado de elementos camp, marcado principalmente pela extravagância e luxuosidade. Além do artifício da imaginação, são usados jogos de câmera que enfatizam as coreografias e elementos cênicos que corroboram para a ostentação do luxo.

Governador Ratcliffe em “Mine, mine, mine”

Scar

O Rei Leão (Rob Minkoff e Roger Allers, 1994) conta a história de Simba, filho do rei Mufasa e herdeiro do reino dos animais. O antagonista da história, seu tio Scar, planeja uma emboscada para o pai e o filho, com o objetivo de se tornar rei. Scar é apresentado na trama como o anti-sujeito, figura de oposição à manutenção da ordem ‘natural’ da hereditariedade (heterossexual) da manutenção do trono. Em sua caracterização física, Scar é demarcadamente diferente dos outros leões, apresentando um rosto alongado e queixo pontiagudo, sua juba é de coloração escura, fluida e com muito movimento, além de também aparentar usar cosméticos. Sua estrutura corporal é magra, suas patas são muito gesticuladas e expressivas, com longas garras sempre aparentes. Além disso, destaca-se o fato de Scar ter sido criado por Andreas Deja, desenhista abertamente gay e admitia que sua sexualidade (lê-se sensibilidade) tinha influência em seu trabalho. Scar é um personagem irônico, teatral e debochado, relembrando características estereotípicas de gays “afeminados”.

Scar, vilão em “O Rei Leão” (1994)

Em “Be Prepared”, Scar compartilha com suas aliadas, as hienas, seu plano de matar Simba e Mufasa para se tornar o rei. No número musical, o vilão canta sobre uma “nova era” sob seu comando, fazendo promessas de melhorias para seus súditos, de maneira muito semelhante a líderes fascistas da história. De fato, o personagem aparece retratado de maneira tirânica, planejando um golpe para assumir o poder e dar voz aos que, em sua concepção, são os diferentes, excluídos no reino de Mufasa. Durante todo o número, podem ser vistos os citados trejeitos ‘afeminados’ do leão, que caminha de maneira sinuosa e articula muito as patas. Quanto aos elementos cênicos, destaca-se a paleta de cores obscuras, associadas à vilania. Enquanto um exército de hienas se forma e marcha sob seu comando, Scar é visto em cima de uma espécie de pedestal, com sua juba esvoaçante, cantando sobre seu poder e futuros triunfos: “Se preparem para o golpe do século/ Se preparem para a trama sombria/ Bem premeditada e bem calculada/ O rei rejeitado será coroado”.

Scar em “Be Prepared”

Úrsula

A Pequena Sereia conta a história de Ariel, sereia filha do rei, que se apaixona por um humano, Príncipe Eric. Após ser repreendida pelo pai, a protagonista faz um acordo com Úrsula, a vilã da trama, em que abre mão da sua voz para poder tornar-se humana e encontrar seu amor. Úrsula é uma vilã gananciosa, que durante a trama procura atrapalhar o romance entre Ariel e Eric para conseguir dominar o oceano. A personagem, que é baseada na figura da drag queen Divine, apresenta características físicas de uma identidade de gênero claramente desviante. A bruxa do mar está longe do padrão de beleza da feminilidade, apresentada como uma figura obesa, de pele arroxeada, cabelos curtos e espetados, mandíbula larga, além da forte maquiagem, unhas longas, acessórios chamativos que dão um toque dramático e extravagante à personagem. Além disso, se na parte superior de seu corpo há uma figuração semelhante à feminina, na inferior são vistos apenas tentáculos, de modo que sua não há nenhum marcador do seu gênero de fato, lhe atribuindo um caráter ambíguo.

Úrsula, vilã em “A Pequena Sereia” (1989)

Em seu número, “Poor Unfortunate Souls”, a vilã tenta convencer Ariel a assinar seu contrato, enquanto ensina à sereia sobre como se portar enquanto humana feminina, os estereótipos da feminilidade hegemônica. O número é todo centrado na performance de Úrsula marcadamente teatral, destacada pelo seu gestual extravagante, que mistura uma feminilidade excessiva com uma agressividade vista como masculina, caracterizando toda a performance como um número drag. A vilã é performática, em muitas cenas se movimentando como se fizesse uma performance diretamente para o público do filme, e com suas magias, cria efeitos para o próprio número, na tentativa de atrair Ariel. Ainda, destaca-se que durante toda a canção, Úrsula parece estar ridicularizando o amor (heteronormativo) e principalmente as construções da performance da masculinidade e feminilidade.

Úrsula em “Poor Unfourtunate Souls”

Por fim, como procurei expor durante toda a análise, conclui-se que há uma tendência no uso da ‘queerificação’ dos vilões como artifício usado na definição e reforço de uma heteronormatividade social, representada pelo “Felizes Para Sempre”. A caracterização da vilania como desviante e transgressora, no que diz respeito a identidades de gênero e sexualidades normativas, faz com que esses aspectos sejam equivocadamente associados à crueldade, egoísmo, manipulação e tirania. Dessa maneira, o que é transmitido disfarçadamente pelo discurso tido inclusivo e mágico da Walt Disney Studios é a perpetuação de uma influência muito negativa para a sociedade, especialmente para o público infantil: a ideia de que não se limitar a binaridade dos papéis de gênero feminino e masculino, assim como apresentar identidades complexas ou ambíguas faz com que o “Felizes Para Sempre” não seja merecido.

Referências bibliográficas

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