“Na Glória, a Amargura”: o corpo estranho de Judy Garland através do espelho

Resumo: Em Na Glória, a Amargura (I Could Go On Singing, Ronald Neame, 1963), Judy Garland faz sua última aparição no cinema. Sua personagem, Jenny Brown, assim como a atriz, perpassava por momentos cruciais de sua carreira. No limite entre a personagem e ela mesma, Judy se dilacera em duas. Até que ponto o que vemos na tela é a personagem na entrega da atriz para o papel, ou a própria Garland, atravessada pelas mesmas adversidades?

Judy Garland em “Na Glória, a Amargura”

A arte de atuar consiste em unir técnica e a emoção, conectar o personagem junto ao ator ou à atriz. De acordo com Stanilawski¹, o corpo teatral deve se assemelhar ao máximo com problemas da vida real, no entanto sob um aspecto intencional, tensionando a ação em gesto. Poucas atrizes na história do cinema exemplificaram isso tão bem quanto Judy Garland. Sob determinados aspectos, muitas pessoas atribuíam que seu talento partia muita vezes de fatores externos. Dentre as intenções deste artigo está analisar algumas proposições acerca de sua expressão corporal, além do poder de seus gestos, sobretudo em seu último filme Na Glória, a Amargura (I Could Go On Singing, Ronald Neame, 1963) como reflexo da sua trajetória como atriz e cantora. É importante ressaltar, sobretudo, a importância de não afirmar certezas totalmente concretas, atravessando perspectivas sob o olhar de biógrafos e estudiosos de sua trajetória.

Diante dos padrões para se tornar uma beleza padrão de Hollywood, Judy enfrentou vários inconvenientes graves ao logo de sua juventude. Desde cedo foi induzida a tomar remédios para manter o peso. Louis B. Mayer, diretor e fundador da MGM, usava recorrentemente o termo “Our little hunchback” (“nossa pequena corcunda”) para se referir a Garland. Consideravam-na incapaz de dançar com “graciosidade”. Era obrigada a usar um corset que apertava sua coluna com a finalidade de parecer mais magra, o que podia gerar desconfortos desgastantes na hora de se apresentar. Segundo Richard Dyer em seu estudo seminal, “Judy Garland and Gay Men” (1986), em determinado momento da história, a imagem da artista passou a ser associada ao sofrimento:

Garland foi demitida pela MGM e tentou (mais enfadosamente do que era permitido pela imprensa) cometer suicídio. Este evento, por ter constituído ao público uma súbita ruptura associada à imagem simples e comum da MGM, tornou-se possível uma leitura de Garland como tendo uma relação especial com o sofrimento, simplicidade, normalidade, e é essa relação que estrutura muitas leituras gays de Garland (DYER, 1986, p. 138).

Os anos da atriz na MGM gerou profundas marcas em sua história. Uma perspectiva particular tange a disposição de sua vida profissional, na qual se estabelece uma barreira entre as limitações impostas e a unidade composta por meio da imagem da tela. Vê-se no movimento, a ideia de analisá-lo fundamentado em questões complexas de identidade. Entre uma das técnicas está a que alguns estudiosos apontam como memória afetiva, que ocorre quando o artista relembra de uma experiência pessoal anterior e utiliza-se dela para desenvolver o gesto. Nenhum deslocamento é sucumbido de sentido. Entretanto, a vertente de Stanislawski¹ aponta que esse método pode ser eficaz até certo ponto, destacando, além disso, a emoção e a interação com o público como fatores importantes para uma verdade cênica visível.

No artigo “Filmed Body: Judy Garland and the kinesics of Suffering” (2010), Adrienne McLean desenvolve um raciocínio sobre as possibilidades de performatividade por meio da análise das danças de Garland, no qual a construção dos seus gestos permitem falar “por ela” enquanto se realizam “pela personagem”. Surge então uma luz, lançando a esperança de que podemos ser quem quisermos a partir das intenções que atribuímos à nossa percepção corporal. Isso inclui a inclinação de todos, pois fomenta novas maneiras e formas de nos expressar, sobretudo no ato de projetar ações no tempo e no espaço. Nasce dessa interpretação uma dualidade. Por um lado, um modelo de beleza do estrelato norte-americano, e por outro, a sua maneira de performar e realizar seus movimentos dentro da estrutura exigida pelos papéis de gênero:

[…] Existem momentos em que imenso prazer de dançar e cantar produz uma sensação nela que predomina a dor de ser […] “um patinho feio em meio a cisnes”. Esse prazer nele mesmo ajuda a evidenciar os frameworks que definem o patinho feio, e sugere que isso altera a maneira como receamos, ocupamos o espaço e comportamos para fora os corpos, o que pode alterar as estruturas de poder investidas aos nossos corpos e seus movimentos como efeitos de poder (MCLEAN, 2010, p. 13).

Na abstração construída por biógrafos e estudiosos de cinema, muitas vezes o papel feminino é associado à uma incapacidade física de equiparar-se ao homem. As barreiras que se estendem dizem respeito a uma lógica que enquadra a mulher como contida, desvinculada de poder próprio e de livre escolha. A existência é condicionada em prol das expectativas de atingir-se o modelo de garota exemplar da sociedade norte-americana.

A análise do impacto da cultura dominante é importante para compreender as dimensões que levam a ocupação dos corpos. A expressão do movimento pode contribuir para enriquecer leituras queer a cerca da vida de Garland. A sua ocupação expansiva de espaços repressivos provoca identificações com o termo queer, utilizado para referir-se à resistência dos corpos por serem considerados esquisitos, estranhos ou excêntricos demais. No artigo “Teoria Queer — Uma Política Pós-Identitária para a Educação”, Guacira Lopes Louro afirma:

Queer pode ser traduzido por estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário. […] Um insulto que tem, para usar o argumento de Judith Butler, a força de uma invocação sempre repetida, um insulto que ecoa e reitera os gritos de muitos grupos homófobos, ao longo do tempo, e que, por isso, adquire força, conferindo um lugar discriminado e abjeto àqueles a quem é dirigido (LOURO, 2001, p. 546).

Ou seja, o próprio corpo é o espaço de resistência contra o que é esperado. Garland expressa sua própria maneira de lidar com o sofrimento. A identificação com o espectador ocorre distante dos padrões de representação tradicionais, quando se percebe que esse corpo estranho possuí outras formas de escapar e libertar-se.

Esse é um dos principais temas de seu último filme. Em Na Glória, a Amargura, a personagem de Garland questiona o futuro de sua carreira de cantora por um bem maior, representado no longa pelo seu filho Matt — interpretado pelo jovem Gregory Phillips, que na narrativa tinha, assim como Garland em “Oz”, 14 anos. Jenny Bowman o teve no passado junto com David Donnie (Dirk Bogarde). Ela os deixa para seguir uma carreira de sucesso como cantora nos Estados Unidos. Anos depois, volta a Londres, onde tudo isso aconteceu, e questiona-se sobre o amor pelos laços que deixou e também da sua ocupação como cantora.

Depois do primeiro reencontro, Jenny negocia com Donnie para assistir a peça infantil de Matt no teatro da escola. Segue a cena de um número musical, em que Matt e os demais garotos da turma dançam usando vestidos e as garotas vestindo trajes de marinheiro. Os dois dividem um mesmo interesse pelo teatro e a música, e emerge uma relação de amizade entre a mãe e filho. Independente da diferença de idade e dos anos que passaram separados, a semelhança entre eles é inevitável, exigindo dela uma atenção que desconhecia, se tornando algo vital para ser feliz. No filme é posto um claro paradoxo entre o amor que surgiu e o fato dela ter o abandonado, como se sua afeição pela arte teatral e pela criança fossem equiparados, apontando dois caminhos distintos para os quais ela poderia seguir.

Tudo muda quando Matt descobre que Jenny é de fato sua mãe. Por fim, a relação entre eles é rompida novamente. De certo modo, Matt agiu também pela influência de seu pai, Donie, que ressaltava e valorizava a vida que haviam firmado juntos. Jenny oferece para o filho a alternativa de ir para Paris acompanhá-la na turnê. No entanto, entende-se que sua proposta foi recusada.

Podemos analisar a seguinte questão trazida pelo longa: ambas, tanto Jenny como a atriz que a interpretava, naquele momento estavam passando por situações decisivas em suas carreiras. Jenny, em prol do filho, renunciaria à fama e ao prestígio de ser uma cantora de famosa. Do outro lado, Judy se via em uma encruzilhada devido à sua saúde física e mental estar comprometida, colocando em risco sua paixão pela profissão. Para ambas, havia através do teatro, a chance da reconciliação.

Deve-se ressaltar o fator de interpretação, o filme ter sido feito nos anos 60, em que a imagem das mulheres no cinema era associada ao papel de mãe e de uma figura familiar, e também a presença de Dirk Bogarde, ator inglês notadamente homossexual, o que reitera essa relação entre Garland e corpos queer, mesmo que “no armário”:

O filme sugere que o personagem dele [de Dirk Bogarde], David, é homossexual, porém vale a pena ser considerado que o filme é centrado em uma relação não-sexual entre um homem e uma mulher, ambos representados por estrelas com um significado particular para a cultura gay. O filme tem como situação de virada a bem documentada síndrome da íntima relação entre o homem gay e a mulher heterossexual (DYER, 1986, p. 185).

Os números musicais seriam o único momento e lugar em que a personagem expressa seu verdadeiro posicionamento sobre a situação. As letras das canções referem-se justamente a uma libertação, percebida na força e na potência das letras. Na última canção, que leva o nome do título ao filme do filme em inglês, ela declama “I could go on singing/ ‘Til the moon turns pink (Eu poderia continuar cantando/Até a lua ficar rosa)”. Identifica-se pois, uma perseverança em seguir fazendo o que sabe de melhor: cantar e estar no palco, independentemente das piores adversidades que apareçam. No fim da apresentação, depois de chegar atrasada em um auditório lotado para vê-la, ela é aclamada e aplaudida pela sua performance.

Judy Garland em “Na Glória, a Amargura”

Diante disso, novas percepções acerca da vida e da obra de Garland são importantes para dar espaço a leituras que antes pareciam complacentes devido ao contexto histórico. Garland e sua trajetória são importantes para entendermos melhor a trajetória por trás das convenções habituais e que reverbera perante os corpos estranhos, inquietos, queer, e que são até hoje, resistência diante da opressão e do silenciamento.

Referências bibliográficas

LOURO, Guacira Lopes. “Teoria Queer — Uma Política Pós-Identitária para a Educação”. Revista de Estudos Feministas, 2001, vol. 9, n. 2, p. 541–553.

MCLEAN, Adrienne L. “Feeling and the Filmed Body: Judy Garland and the Kinesics of Suffering”. In: Film Quarterly, Vol. 55, № 3, Spring, 2002, p. 2-15.

DYER, Richard. “Judy Garland and Gay Men”. In: Heavenly Bodies: Film Stars and Society. London, New York: Routledge, [1986] 2004.

¹SILVA, Mônica. “A Construção do Personagem de Teatro com a visão da Psicologia Analítica”. PUC SP, 2004.

--

--