Gêneros e sexualidades como resistência à repressão em “Cabaret” (1972) e “Tatuagem” (2013)

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Resumo: Kit Kat Klub e o Chão de Estrelas são espaços de resistência de expressões de gênero e sexualidade que fogem à heteronormatividade imposta, e que encontram através da performance a sua maior arma: o deboche ao conservadorismo e à intolerância. Neste sentido, serão analisados os números musicais “Tiller Girls”, de Cabaret (1972), e “Polka do Cu (Tem Cu)”, de Tatuagem (2013).

Berlim, década de 1930, ascensão do Nazismo. Recife, década de 1970, em meio à ditadura militar. Apesar de se tratarem de duas culturas e épocas muito distintas, Cabaret (Bob Fosse, Estados Unidos, 1972) e Tatuagem (Hilton Lacerda, Brasil, 2013) ambos retratam relacionamentos tidos como subversivos em meio a uma sociedade repressora. A partir da aproximação desses dois filmes, buscarei trabalhar o entendimento do humor Camp como uma arma política contra o conservadorismo e a intolerância, através do teor debochado e contestador de suas expressões artísticas. Serão analisados dois números musicais nas duas obras que desafiam os entendimentos hegemônicos de gênero e sexualidade, ao passo que questionam os ideais autoritários estabelecidos.

Kit Kat Klub e Chão de Estrelas, as duas casas noturnas em que a maioria dos números musicais ocorrem em ambos os filmes, são espaços de resistência de expressões de gênero e sexualidade que fogem à heteronormatividade imposta. Nas duas obras, o cabaré, frequentado por um público diversificado, de corpos por vezes ambíguos (ou fora do padrão cis-heteronormativo), é constantemente contrastado com o “mundo exterior” regrado pelo totalitarismo. Em Cabaret, a montagem em diversos momentos intercala os números debochados comandados pelo Mestre de Cerimônias (interpretado por Joel Grey), com episódios de anti-semitismo vividos ao fim da República de Weimar na Alemanha, que marcaram a ascensão do Nazismo ao poder. Apesar de apresentado como um lugar apolítico pelo anfitrião, onde a vida é linda e os problemas são deixados do lado de fora, o Kit Kat Klub é palco de repetidas sátiras acerca dos valores alemães. Já em Tatuagem, a ferveção do Chão de Estrelas e da vida de Clécio (Irandhir Santos) é contraposta com a vida regrada de Fininha (Jesuíta Barbosa) no quartel, e o encontro improvável dessas duas vivências é o grande marco da trama. “Nossa arma é o deboche!”, anuncia Clécio ao início de uma das apresentações do espetáculo “Na Ponta Da Lança”. O viés contestador das performances da trupe é assumido não somente na força dos corpos transgressores que ali resistem, mas também na forma do humor sarcástico, do humor Camp. O entendimento da sensibilidade Camp é essencial para as leituras de ambos os filmes. É a partir da potencialidade política do Camp que a ode à liberdade é tecida nos palcos do Kit Kat Klub e do Chão de Estrelas.

A trupe do espetáculo "Na Ponta da Lança".

De acordo com Susan Sontag, a sensibilidade Camp éuma sensibilidade que, entre outras coisas, transforma o sério em frívolo”, uma “predileção pelo exagerado, por aquilo que está ‘fora’, por coisas que são o que não são”, “da vida como teatro”, da “glorificação do ‘personagem’”, do “artifício como ideal”. É o entendimento de que “ser é representar um papel”. Não se é uma mulher, mas uma “mulher” (SONTAG, 1964). É um comportamento que tende ao extravagante, ao artificial, ao exagerado. Falar de um humor Camp é falar de um humor transgressor, performático. Marcos Aurélio da Silva diz que “o humor Camp surge enquanto uma performance que, de certa forma, pode nos falar de possíveis hierarquias e regras construídas nesses espaços de sociabilidade” (DA SILVA, 2017, p. 61). Ao ressaltar a artificialidade das coisas, o Camp ressignifica os papéis atribuídos a elas e brinca com os estereótipos criados ao seu redor. Uma vez deslocados do seu contexto original, esses papéis tornam-se risíveis. Em relação a vivência gay e o humor Camp, Marcos Aurélio cita MacRae:

“Essa forma de percepção do mundo seria uma decorrência da condição de oprimido do homossexual, que torna possível que ele enxergue a natureza artificial de categorias sociais e a arbitrariedade dos padrões de comportamento. A força do Camp repousa em grande parte no seu humor corrosivo e iconoclasta, disposto a ridicularizar a todos e quaisquer valores” (MCRAE, 1990, p. 231).

Serão analisados aqui dois momentos dos filmes escolhidos, “Tiller Girls”, de Cabaret, e “Polka do Cu”, de Tatuagem. Tiller Girls, originalmente o nome dado às famosas trupes de dança da Inglaterra do final do século XIX, consistiam de um grupo de garotas de braços dados dançando com movimentos precisamente sincronizados, numa disciplina quase militar. A escolha do nome do número musical em Cabaret já é, em si, grande parte da ironia. Em um primeiro momento, vemos as dançarinas e o Mestre de Cerimônias, travestido, em um número de cabaré absolutamente normal. O tom é cômico, a dança é extrovertida. É então que a performance passa a ser intercalada com cenas da casa de Natalia Landauer, a garota de uma rica família judia, sendo vandalizada por um grupo de jovens nazistas. A jovem, já ciente do cenário político da Alemanha no período, tem sua preocupação constatada. Natalia encontra seu cachorro morto na porta de sua casa, a palavra “Juden” pintada em sua fachada. A ferveção do cabaré é interrompida, a música transforma-se numa marcha, a iluminação torna-se sombria. As garotas e o Mestre de Cerimônias viram seus chapéus e eles se transformam em capacetes, suas bengalas tornam-se armas. A coreografia assume a sincronia da marcha militar. A zombaria das Tiller Girls do Kit Kat Klub com a figura nazista, numa tentativa de desmoralizar o inimigo, cede ao número musical um inesperado teor político.

A marcha militar em "Tiller Girls".

Uma leitura contrária também poderia ser feita. Há quem assuma a figura do Mestre de Cerimônias como um porta-voz do nazismo, como uma personificação do totalitarismo e da decadência dos ideais alemãs. No entanto, em uma leitura através de um entendimento Camp, nota-se que

“A performance ocorre num processo comunicativo que oferece ao espectador uma chave para interpretar de forma especial o que está sendo observado: posturas e palavras não devem ser interpretadas ao pé da letra. Se tais cenas fossem vistas por alguém que não frequenta comumente esses territórios, provavelmente seriam entendidas como o próprio estereótipo e não um deboche dele.” (SILVA, 2017, p. 63).

Neste contexto, a justaposição da estilização do cabaré com o antissemitismo ao fim da República de Weimar vem como uma forma intrigante de denúncia à intolerância e à truculência militar. Neste número musical tão breve, brilhantemente apresentado logo em sequência à cena em que vemos Brian (o britânico que veio à Berlim para trabalhar no seu doutorado em Filosofia) severamente ferido após enfrentar um grupo de nazistas, a crítica é entregue sem a necessidade de palavras — a narrativa é lida através da expressão corporal acompanhada pelo instrumental burlesco, e é o suficiente para absorvermos o deboche aos papéis de poder na forma do humor Camp.

Um paralelo pode ser feito com um número semelhante em Tatuagem. A “Polka do Cu”, que se repete por dois momentos na trama, carrega consigo um questionamento: “Mas afinal, o que diabos é liberdade?”, pergunta Clécio à platéia (e ao espectador por trás da tela). Em um período em que a democracia é inexistente, em que amar a quem quiser é tido como uma perversão, o espetáculo “Na Ponta da Lança” usa de um pedaço do corpo tido como periférico, sujo, imoral, para falar de liberdade. Os dançarinos, nus, enfileirados, exibem seus corpos cobertos de glitter. O sempre tão censurado cu naquele palco não é somente mostrado, como exaltado. Assim como os relacionamentos homossexuais e as expressões de gênero fora da experiência heteronormativa, que para o pensamento moralista devem ser escondidos, enrustidos, o cu carrega consigo o peso da reprovação por ser o meio de um prazer sexual onde o fim não é a reprodução. Só que, como o anfitrião nos relembra, uma das poucas coisas que nos une, curiosamente, é o cu. A objeção aos poderes totalitários, assim como no Kit Kat Klub, acontece através do deboche à ideologia da repressão e aos seus agentes. A ousada correspondência traçada entre o infame cu e a liberdade e a democracia certamente incomoda àqueles a quem a crítica é direcionada (“Tem cu do coronel, que trás felicidade à todos do quartel!”, brinca Clécio). Os artistas da trupe misturam-se com a platéia, brincam, dançam com seus corpos nus, e retornam ao palco numa marcha militar, batendo continência. Após essa performance, o espetáculo é censurado sob denúncias de atentado contra os valores da pátria, da família, do pudor. Ainda assim, a trupe retorna ao Chão de Estrelas, não deixando-se vencer pela censura. Durante a segunda apresentação da “Polka do Cu”, o número é intercalado com cenas das viaturas militares aproximando-se do Chão de Estrelas, o tom de ameaça crescente a cada instante. Fininha, nesse momento tão significativo, agora encontra-se no palco, apresentando-se junto à trupe. É sacada a arma dos artistas, o deboche. Eles retrucam com a sua sátira, manifestam-se contra a repressão, contra a censura, contra o totalitarismo, e fazem-se ouvir através das suas falas subversivas, dos seus corpos transgressores, da sua resistência. “E democracia? Que porra é democracia?”, questiona Clécio. E, como era de se esperar, a resposta militar foi dura. O número é interrompido, e o som da música é substituída pelo som dos gritos, do quebra-quebra, da pancadaria.

Número musical da "Polka Do Cu"

Filmes como Tatuagem e Cabaret são obras muito relevantes para se pensar, inclusive, o contexto político atual brasileiro. Vivemos em um momento em que símbolos da cultura queer ganham cada vez mais destaque, ao passo em que um conservadorismo político e social ascende. De um lado, notamos uma popularização da arte Drag, vozes LGBTTI lentamente ganhando proeminência na cultura pop, debates ao redor das perspectivas queer ganhando um certo realce. Por outro lado, figuras políticas ao redor do mundo com discursos calcados na mesma intolerância e crueldade de tempos passados conquistam seguidores com uma velocidade assustadora. E apesar de termos conquistado territórios antes inalcançáveis, as vivências homossexuais periféricas ainda são apagadas. O que prevalece ainda é o imaginário do homem gay cis, branco, classe média alta. As causas negra, feminista e LGBT, apesar de muito mais vistas hoje do que costumavam ser, infelizmente seguem vistas através de um filtro capitalista, de um esvaziamento que transforma discursos em produtos a serem vendidos, em propaganda, em black ou pink money.

Considerações Finais

No momento atual, não vivemos em um regime totalitarista como Clécio ou como Sally Bowles e Brian. Apesar disso, um dos assuntos mais polêmicos de 2017 foi a censura da exposição “Queermuseu”. O espetáculo “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, protagonizada pela atriz trans Renata Carvalho, é alvo de censura em Pernambuco, Jundiaí e no Rio de Janeiro. De acordo com o Grupo Gay da Bahia, assassinatos de LGBTs em 2017 cresceram 30% em relação ao ano anterior. Somente no primeiro semestre de 2018 foram assassinadas 86 travestis e transexuais (Dados da ANTRA — Associação Nacional de Travestis e Transexuais). Em um cenário como esse, pode-se parecer absurdo destacar a importância do riso e do deboche. Apesar de não ser a solução para o ódio e para a ignorância, o humor Camp, com sua capacidade de permanecer subversivo, nada mais é que a arte de encontrar força e conexão entre indivíduos que vivem em um mundo quase sempre hostil.

Referências bibliográficas

SILVA, Marcos Aurélio da. “Tatuagem, Deboche e Carnaval: Algumas reflexões sobre a política LGBT contemporânea a partir de uma antropologia do cinema e de uma festa que não existe mais.” Juiz de Fora, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais — UFJF. Teoria e Cultura, v. 12 n. 2 jul. a dez. 2017.

SONTAG, Susan. “Notes on ‘Camp’”. In: Camp: Queer Aesthetics and the Performing Subject: A Reader. Edinburgh University Press, 1999. p. 53–65.

BLOCK, Geoffrey. “Is life a cabaret? Cabaret and its sources in reality and the imagination”. Studies in Musical Theatre, Volume 5, Number 2, August 2011, pp. 163–180

BABUSCIO, Jack. “Camp and The Gay Sensibility”. In: BENSHOFF, Harry; GRIFFIN, Sean. Queer Cinema, The Film Reader. New York: Routledge, 2004.

TERRI, Gordon J. “Film in the Second Degree: Cabaret and the Dark Side of Laughter”. Proceedings of the American Philosophical Society, vol. 152, n.4, December 2008, pp. 440–465.

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