“Notas sobre Camp”, de Susan Sontag (1964)

Nota da publicação: A maioria dos artigos da revista remetem ao conceito de Camp cunhado por Susan Sontag (termo de difícil tradução, que remete a “frescura”, “afetação”, “artifício” ou “exagero”). Tendo isto em vista, decidimos incluir no corpo da publicação o famoso artigo da autora, datado de 1964. Esta tradução é uma versão com ligeiras correções da encontrada aqui, acompanhada por ilustrações escolhidas pelos editores Jocimar Dias Jr. e Luiz F. Ulian.

Número musical “Think Pink” em “Cinderela em Paris” (Stanley Donen, 1957)

Muitas coisas nesse mundo não têm nome; e muitas coisas, mesmo que tenham nome, nunca foram definidas. Uma delas é a sensibilidade — inequivocamente moderna, uma forma de satisfação, mas não idêntica à satisfação — conhecida pela expressão esotérica Camp.

Falar de uma sensibilidade (distinta de idéia) é uma das coisas mais difíceis; entretanto, existem razões especiais para o Camp, em particular, jamais ter sido analisado. Não se trata de uma forma natural de sensibilidade, se é que isto existe. Na realidade, a essência do Camp é sua predileção pelo inatural: pelo artifício e pelo exagero. Camp é esotérico — uma espécie de código pessoal, até mesmo um signo de identificação entre as igrejinhas urbanas. Além de um preguiçoso esboço de duas páginas no romance de Christopher Isherwood, The World in the Evening (O Mundo ao Entardecer, 1954), nunca chegou a ser divulgado. Portanto, falar de Camp equivale a uma traição. Se a traição é justificável, é pela edificação que proporciona ou pela dignidade do conflito que resolve. No meu caso, argumento com o objetivo da auto-edificação e do estímulo de um agudo conflito em minha própria sensibilidade. Sinto-me fortemente atraída pelo Camp e quase tão fortemente agredida. É por isso que quero falar a seu respeito e por isso posso fazê-lo. Pois ninguém que compartilhe sinceramente de uma determinada sensibilidade pode analisá-la; só pode, seja qual for a sua intenção, mostrá-la. Para designar uma sensibilidade, traçar seus contornos e contar sua história exige-se uma profunda afinidade modificada pela repulsa.

Embora esteja falando apenas de sensibilidade — e de uma sensibilidade que, entre outras coisas, transforma o sério em frívolo — o assunto é sério. A maioria das pessoas considera a sensibilidade ou o gosto no âmbito de preferências totalmente subjetivas, aquelas misteriosas atrações, em grande parte sensuais, que não foram sujeitadas pela soberania da razão. Elas permitem que considerações de gosto influam em suas reações a pessoas e a obras de arte. Mas esta atitude é ingênua. Ou pior. Defender a faculdade do gosto equivale a defender a si mesmo. Pois o gosto rege toda reação humana livre — contraposta à reação mecânica. Nada é mais decisivo. Existe gosto nas pessoas, gosto visual, gosto na emoção — e há gosto nos atos, gosto na moralidade. A inteligência também, em realidade, é uma espécie de gosto: gosto pelas idéias. (Um fato que é preciso reconhecer é que o gosto tende a se desenvolver de maneira muito desigual. É raro que a mesma pessoa tenha bom gosto visual e também bom gosto em termos de pessoas e em termos de idéias.)

O gosto não possui um sistema e não possui provas. Mas existe uma espécie de lógica do gosto: a coerente sensibilidade que fundamenta e dá origem a um novo gosto. Uma sensibilidade é quase, não totalmente, inexprimível. Qualquer sensibilidade que possa se enquadrar no molde de um sistema, ou ser manuseada com os toscos instrumentos da prova, não é mais uma sensibilidade. Ela se solidificou numa ideia…

Para captar uma sensibilidade por meio de palavras, principalmente uma sensibilidade viva e vigorosa[1], é preciso ser cuidadoso e ágil. A forma de apontamentos, mais que de um ensaio (que pretende ter uma argumentação linear, consecutiva), pareceu-me a mais adequada para escrever a respeito dessa sensibilidade peculiar e fugidia. Seria embaraçoso assumir o tom solene de tratado para falar de Camp. Haveria o risco de produzir um Camp de qualidade bastante inferior.

Essas notas são dedicadas a Oscar Wilde.

“Deveríamos ser uma obra de arte ou vestir uma obra de arte.” — Phrases & Philosophies for the Use of the Young

1. Para começar de maneira bastante geral: Camp é um certo tipo de esteticismo. É uma maneira de ver o mundo como um fenômeno estético. Essa maneira, a maneira do Camp, não se refere à beleza, mas ao grau de artifício, de estilização.

2. Enfatizar o estilo é menosprezar o conteúdo, ou introduzir uma atitude neutra em relação ao conteúdo. Não é preciso dizer que a sensibilidade Camp é descompromissada e despolitizada — pelo menos apolítica.

3. Não só existe uma visão Camp, uma maneira Camp de olhar as coisas. Camp é também uma qualidade que pode ser encontrada nos objetos e no comportamento das pessoas. Há filmes, roupas, móveis, canções populares, romances, pessoas, edifícios campy… Essa distinção é importante. É verdade que o gosto Camp tem o poder de transformar a experiência. Mas nem tudo pode ser visto como Camp. Nem tudo está nos olhos de quem vê.

4. Exemplos aleatórios de elementos que se enquadram nos princípios do Camp:

Zuleika Dobson
Lâmpadas Tiffany
Filmes em cinemascope
O restaurante Brown Derby no Sunset Boulevard, em Los Angeles
The Enquirer, manchetes e artigos
Desenhos de Aubrey Beardsley
O Lago dos Cisnes
Óperas de Bellini
A direção de Visconti em Salomé e ’Tis Pity She’s a Whore
Certos cartões postais da virada do século
King Kong, de Schoedsack
A cantora pop cubana La Lupe
O romance em xilogravuras God’s Man, de Lynn Ward
Os velhos quadrinhos de Flash Gordon
Vestuário feminino da década de 20 (boás de plumas, vestidos com franjas e miçangas, etc.)
Os romances de Ronald Firbank e Ivy Compton-Burnett
Assistir a filmes pornográficos sem se excitar

(Da esquerda para a direita) King Kong, de Ernest Schoedsack (1933); desenhos de Aubrey Beardsley; os velhos quadrinhos de Flash Gordon.
Exemplo de filme em Cinemascope “O Manto Sagrado” (Henry Koster, 1953).

5. O gosto Camp tem afinidade com certas artes mais que com outras. Vestuário, mobília, todos os elementos de decoração visual, por exemplo, constituem grande parte do Camp. Pois a arte Camp freqüentemente é uma arte decorativa que enfatiza a textura, a superfície sensual e o estilo em detrimento do conteúdo. A música de concerto, entretanto, por não ter conteúdo, raramente é Camp. Ela não oferece a oportunidade, digamos, de um contraste entre um conteúdo tolo ou extravagante e uma forma rica… às vezes, formas artísticas como um todo se tornam saturadas de Camp. O balé clássico, a ópera, o cinema durante muito tempo pareceram Camp. Nos últimos dois anos, a música popular (pós-rock’n’roll, o que os franceses chamam iê-iê passou a ser incluído também. E a crítica cinematográfica (como as listas dos “Dez Piores Filmes”) hoje é provavelmente a maior divulgadora do gosto Camp, porque a maioria das pessoas ainda vai ao cinema numa atitude jovial e despretensiosa.

6. Num certo sentido é correto dizer: “É bom demais para ser Camp”. Ou “muito importante”, não bastante marginal. (Falarei sobre isso mais tarde.) Portanto, a personalidade e muitas das obras de Jean Cocteau são Camp, mas não a de André Gide; as óperas de Richard Strauss, mas não as de Wagner; misturas de Tin Pan Alley e Liverpool, mas não jazz. Muitos exemplos de Camp são coisas que, de um ponto de vista “sério”, são arte ruim ou kitsch. Nem todos, porém. Não só o Camp não é necessariamente arte ruim, como certa arte que pode ser encarada como Camp (exemplo: os importantes filmes de Louis Feuillade) merece a admiração e o estudo mais profundo.

Cena do filme “La Belle et La Bête” (Jean Cocteau, 1946).

“Quanto mais estudamos Arte, menos nos interessamos pela natureza”. — The Decay of Lying

7. Todos os objetos e pessoas Camp contêm um grande componente de artifício. Na natureza nada pode ser campy… O Camp rural ainda é feito pelo homem e a maioria dos objetos campy é urbana. (No entanto, freqüentemente possuem uma serenidade — ou uma ingenuidade — equivalente ao pastoral. Grande parte do Camp sugere a expressão de Emerson, “pastoral urbano”.)

8. Camp é uma visão do mundo em termos de estilo — mas um estilo peculiar. É a predileção pelo exagerado, por aquilo que está “fora”, por coisas que são o que não são. O melhor exemplo está na Art Nouveau, o estilo Camp mais típico e mais plenamente desenvolvido. Os objetos Art Nouveau tipicamente transformam uma coisa em outra coisa: elementos para iluminação na forma de plantas florescentes, a sala de estar que em realidade é uma gruta. Um exemplo a ser destacado: as entradas do metrô de Paris projetadas por Hector Guimard, no fim da década de 1890, com ramos de orquídeas em ferro fundido.

(À esquerda) Exemplo das entradas do metrô de Paris projetadas por Hector Guimard. (À direita) Exemplos de Lâmpadas estilo Tiffany.

9. Como gosto pessoal, o Camp responde em particular ao marcadamente atenuado e ao fortemente exagerado. O andrógino é seguramente uma das grandes imagens da sensibilidade Camp. Exemplos: as figuras lânguidas, esguias, sinuosas da pintura e da poesia pré-rafaelita; os corpos delgados, fluidos, assexuados das estampas e dos cartazes Art Nouveau, apresentados em relevo em lâmpadas e cinzeiros; o vazio andrógino que paira na beleza perfeita de Greta Garbo. Nesse caso, o gosto Camp inspira-se numa autenticidade do gosto em grande parte não reconhecida: a forma mais refinada de atração sexual (assim como a forma mais refinada de prazer sexual) consiste em ir contra a corrente do próprio sexo. O que há de mais belo nos homens viris é algo feminino; o que há de mais belo nas mulheres femininas é algo masculino… Aliado ao gosto Camp pelo andrógino existe algo que parece bastante diferente mas não é: uma tendência ao exagero das características sexuais e aos maneirismos da personalidade. Por razões óbvias, os melhores exemplos que podemos citar são as estrelas de cinema. A melosa e resplandecente feminilidade de Jayne Mansfield, Gina Lollobrigida, Jane Russel, Virginia Mayo; a exagerada masculinidade de Steve Reeves, Victor Mature. As grandes estilistas do temperamento e do maneirismo, como Bette Davis, Barbara Stanwyck, Tallulah Bankhead, Edwige Feuillière.

(À esquerda) Edwige Feuillière. (À direita) A masculinidade exagerada de Steve Reeves.

10. O Camp vê tudo entre aspas. Não é uma lâmpada, mas uma “lâmpada”, não uma mulher, mas uma “mulher”. Perceber o Camp em objetos e pessoas é entender que Ser é Representar um papel. É a maior extensão, em termos de sensibilidade, da metáfora da vida como teatro.

11. Camp é o triunfo do estilo epiceno. (A conversibilidade de “homem” e “mulher”, de “pessoa” e “coisa”.) Mas todo estilo, ou seja, todo artifício, é, em última análise, epiceno. A vida não tem estilo. Nem a natureza.

12. A questão não é “Por que a paródia, a representação, a teatralidade?” Mas, “Quando a paródia, a representação, a teatralidade adquirem o gosto especial do Camp?” “Por que a atmosfera das comédias de Shakespeare (As You Like it, etc.) não é epicena, enquanto a de Der Rosenkavalier é?”

13. A linha divisória passa aparentemente pelo século XVIII; ali se encontram as origens do gosto do Camp (os romances góticos, a chinoiserie, a caricatura, as ruínas artificiais, e assim por diante). Entretanto, a relação com a natureza era então bastante diferente. No século XVIII, as pessoas de gosto tutelavam a natureza (Strawberry Hill) ou tentavam reconstituí-la em algo artificial (Versailles). E tutelavam também, incansavelmente, o passado. O gosto Camp hoje apaga a natureza, ou mesmo a nega totalmente. E a relação do gosto Camp com o passado é extremamente sentimental.

14. Uma pequena história do Camp poderia, é claro, começar muito antes — com artistas maneiristas como Pontormo, Rosso e Caravaggio, ou a pintura extraordinariamente teatral de Georges de La Tour, ou o eufuísmo (Lyly, etc.) na literatura. No entanto, o ponto de partida mais correto é, ao que tudo indica, o final do século XVII e o início do XVIII, por causa da extraordinária sensibilidade daquela época ao artifício, à aparência, à simetria; seu gosto pelo pitoresco e pelo excitante, suas elegantes convenções na representação do sentimento momentâneo e na presença total do personagem — o epigrama e o dístico rimado (nas palavras), o ornamento (no gesto e na música). O final do século XVII e início do XVIII constitui o grande período Camp: Pope, Congreve, Walpole, etc, mas não Swift; les précieux na França; as igrejas rococó de Munique; Pergolesi. Um pouco mais tarde: grande parte de Mozart. Mas no século XIX, o que se havia difundido por toda a cultura mais erudita torna-se um gosto especial; adquire sugestões do agudo, do esotérico, do perverso. Limitando a história apenas à Inglaterra, vemos o Camp continuar languidamente no esteticismo do século XIX (Burne-Jones, Pater, Ruskin, Tennyson), desabrochar completamente com o movimento da Art Nouveau nas artes visuais e decorativas e encontrar ideólogos conscientes em “espíritos” irônicos como Wilde e Firbank.

15. Evidentemente, afirmar que todas estas coisas são Camp não significa afirmar que são simplesmente isso. Uma análise completa da Art Nouveau, por exemplo, não equipararia esse estilo ao Camp. No entanto, tal análise não pode ignorar aquilo que na Art Nouveau permite que ela seja experimentada como Camp. A Art Nouveau está repleta de “conteúdo”, até mesmo um conteúdo político-moral; ela constitui um movimento revolucionário nas artes, estimulado por uma visão utópica (algo entre William Morris e o grupo Bauhaus) de uma política e um gosto orgânicos. No entanto, há também uma característica nos objetos da Art Nouveau que sugere uma visão “de esteta” não engajada, não solene. Isto nos refere algo importante a respeito da Art Nouveau — e a respeito daquilo que é a objetiva do Camp, que encobre o conteúdo.

Cartazes Art Nouveau.

16. Portanto, a sensibilidade Camp é uma sensibilidade interessada no duplo sentido no qual é possível entender algumas coisas. Mas não se trata da construção familiar que distingue um sentido literal, de um lado, e um sentido simbólico, do outro. É, ao contrário, a diferença entre a coisa significando alguma coisa, qualquer coisa, e a coisa como puro artifício.

17. Isto aparece claramente no uso vulgar do termo Camp como verbo, to camp, algo que as pessoas fazem. To camp é uma forma de sedução — uma forma que emprega maneirismos extravagantes sujeitos a uma dupla interpretação; gestos cheios de duplicidade, com um significado espirituoso para entendidos e outro, mais impessoal, para leigos. Do mesmo modo e por extensão, quando a expressão se torna substantivo, quando uma pessoa ou uma coisa é “um Camp”, implica uma duplicidade. Por trás do sentido geral “direto” no qual podemos entender alguma coisa, encontramos uma experiência pessoal absurda com esta coisa.

“Ser natural é uma postura muito difícil.”
— An Ideal Husband

18. Devemos distinguir entre o Camp ingênuo e o deliberado. O Camp puro é sempre ingênuo. O Camp que se reconhece como Camp (Camping) em geral é menos prazeroso.

19. Os exemplos puros de Camp não são intencionais; são absolutamente sérios. O artesão da Art Nouveau que faz uma lâmpada com uma cobra enrolada ao seu redor não está brincando, nem está tentando ser agradável. Ele está dizendo, com toda a seriedade: Voilá! Oriente! o Camp autêntico — por exemplo, os números criados para os musicais da Warner Brothers no início da década de 30 (42nd Street [Rua 42]; Gold-diggers of 1933… de 1935… de 1937 [As Cavadoras de 1933… de 1935… de 1937]; etc.) de Busby Berkeley — não pretende ser engraçado. Camping — digamos, as peças de Noel Coward — sim. É improvável que grande parte do repertório operístico tradicional fosse um Camp tão apreciado se os absurdos melodramáticos da maioria dos enredos das óperas não fossem levados a sério por seus compositores. Não precisamos conhecer as intenções pessoais do artista. A obra diz tudo. (Compare-se uma ópera típica do século XIX, a Vanessa, de Samuel Barber, um exemplo de um Camp fabricado, calculado; a diferença é evidente.)

Exemplo de extravagância caleidoscópica de Busby Berkeley em “Rua 42”.

20. Provavelmente, pretender ser campy é sempre perigoso. A perfeição de Trouble in Paradise (Ladrão de Alcova) e The Maltese Falcon (O Falcão Maltês), entre os melhores filmes Camp jamais realizados, decorre da maneira fácil, desembaraçada, em que o tom é mantido. O que não é o caso dos famosos filmes Camp da década de 50 como All About Eve (A Malvada) e Beat the Devil (O Diabo Riu por Último). Esses filmes mais recentes têm seus momentos bonitos, mas o primeiro é tão escorregadio e o segundo tão histérico; eles querem tanto ser campy que perdem continuamente o passo… Contudo, talvez não se trate tanto de contrapor um efeito indesejado a uma intenção consciente, quanto da delicada relação entre paródia e autoparódia no Camp. Os filmes de Hitchcock são um exemplo desse problema. Quando a autoparódia não possui efervescência e em lugar disso revela (mesmo esporadicamente) um desprezo pelos nossos temas e materiais — como em To Catch a Thief (Ladrão de Casaca), Rear Window (Janela Indiscreta), North by Northwest (Intriga Internacional) — os resultados são forçados e pesados, raramente Camp. O Camp bem-sucedido — um filme como Drôle de Drame (Família Exótica) de Carné; as interpretações cinematográficas de Mae West e Edward Everett Horton; partes do Goon Show — mesmo quando revela a autoparódia recendem a vaidade.

21. Além disso, o Camp baseia-se na inocência. Isto significa que o Camp revela inocência, mas também, quando pode, a corrompe. Os objetos, sendo objetos, não mudam quando destacados pela visão Camp. As pessoas, entretanto, reagem ao seu público. As pessoas começam a se fazer Camp: Mae West, Bea Lillie, La Lupe, Tallulah Bankhead em Lifeboat (Um Barco e Nove Destinos), Bette Davis em A Malvada. As pessoas podem até mesmo ser induzidas a Camp sem saber. Lembremos como Fellini fez Anita Ekberg parodiar a si mesma em La Dolce Vita (A Doce Vida).

(À esquerda) Mae West. (À direita) La Lupe.

22. Considerado de um ponto de vista pouco menos rigoroso, o Camp é ou completamente ingênuo ou totalmente consciente (quando fazemos de conta que somos Camp). Um exemplo desse último: os próprios epigramas de Wilde.

“É absurdo dividir as pessoas em boas e más. As pessoas são encantadoras ou enfadonhas.” — Lady Windemere’s Fan

23. No Camp ingênuo ou puro, o elemento essencial é a seriedade, uma seriedade que falha. Evidentemente, nem toda seriedade que falha pode ser resgatada como Camp. Somente aquela que possui a mistura adequada de exagerado, de fantástico, de apaixonado e de ingênuo.

24. Quando algo é apenas ruim (e não Camp), freqüentemente é ruim porque sua ambição é demasiado medíocre. O artista não tentou fazer nada realmente exótico. (“É demais”, “É fantástico demais”, “Não dá para acreditar”, são frases típicas do entusiasmo Camp.)

25. A marca do Camp é o espírito da extravagância. Camp é uma mulher andando com uma roupa feita de três milhões de penas. Camp são as pinturas de Cario Crivelli, com suas jóias verdadeiras, insetos e rachaduras trompe l'oeil no reboco. Camp é o esteticismo extravagante dos seis filmes americanos de Sternberg com Dietrich, todos os seis, mas principalmente o último, The Devil Is a Woman (Mulher Satânica)… No Camp há freqüentemente algo démesuré na qualidade da ambição, não apenas no estilo da obra em si. Os sinistros e maravilhosos edifícios de Gaudí em Barcelona são Camp não apenas por causa do estilo mas porque revelam — mais significativamente na catedral da Sagrada Família — a ambição de um homem de fazer o que leva uma geração, toda uma cultura para realizar.

Marlene Dietrich em 3 filmes de Josef von Sternberg: “Anjo Azul” (1930), “Imperatiz Escarlate” (1934) e “Mulher Satânica” (1935)

26. Camp é a arte que se propõe seriamente, mas não pode ser levada totalmente a sério porque é “demais”. Titus Andronicus e Estranho Interlúdio quase são Camp, ou poderiam ser representados como Camp. O comportamento público e a retórica de de Gaulle, freqüentemente, são Camp puro.

27. Uma obra pode se aproximar do Camp, mas não chegar a ser Camp porque é bem-sucedida. Os filmes de Eisenstein raramente são Camp porque, apesar de todo o exagero, são bem-sucedidos (do ponto de vista dramático) sem excesso. Se fossem um pouco mais “inadequados”, seriam ótimo Camp — particularmente Ivan, o Terrível I e II. O mesmo vale para os desenhos e pinturas de Blake, tão fantásticas e maneiristas. Não são Camp; embora a Art Nouveau, influenciada por Blake, o seja. O que é extravagante de uma maneira inconsistente ou distante não é Camp. Tampouco algo será Camp se não parecer brotar de uma sensibilidade irrefreável, praticamente incontrolada. Sem paixão, temos um pseudo-Camp — o que é meramente decorativo, seguro, numa palavra, chique. Na estéril fronteira do Camp encontra-se uma quantidade de coisas atraentes: as maneirosas fantasias de Dali, a preciosidade da alta costura de La Fille aux Yeux d’or de Albicocco. Mas as duas coisas — Camp e preciosismo — não podem ser confundidas.

28. Além disso, Camp é a tentativa de fazer algo extraordinário. Mas extraordinário, no sentido, freqüentemente, de especial, deslumbrante. (A linha curva, o gesto extravagante.) Não extraordinário simplesmente no sentido de esforço. Os itens do “Acredite se quiser”, de Ripley, raramente são Camp. Esses itens, ou curiosidades naturais (o galo com duas cabeças, a beringela em formato de cruz) ou realizações que são resultados de um esforço imenso (o homem que foi daqui até a China caminhando sobre as mãos, a mulher que gravou o Novo Testamento sobre a cabeça de um alfinete), não possuem a gratificação visual — o encanto, a teatralidade — que imprime em certas extravagâncias a marca Camp. A razão pela qual um filme como On the Beach (Na Praia), livros como Winesburg, Ohio e For Whom the Bell Tolls (Por Quem os Sinos Dobram) são ruins a ponto de ser risíveis, mas não ruins a ponto de serem divertidos, é que são demasiado obstinados e pretensiosos. Não têm imaginação. Há Camp em filmes ruins como The Prodigal (O Pródigo) e Sansão e Dalila, a série italiana em cores com o super-herói Maciste, numerosos filmes de ficção científica japoneses (Rodan, The Mysterians, O Homem-H) porque, em sua relativa falta de pretensão e vulgaridade, são mais exagerados e irresponsáveis em sua imaginação — e, portanto, tocantes e agradáveis.

30. Evidentemente, os preceitos Camp podem mudar. O tempo tem muito a ver com isso. O tempo pode intensificar aquilo que agora parece simplesmente obstinado ou sem fantasia porque estamos demasiado próximos dele, porque se parece demasiado com nossas próprias fantasias cotidianas, cuja natureza fantástica não percebemos. Podemos apreciar melhor uma fantasia enquanto fantasia quando não é a nossa.

31. É por isso que tantos objetos apreciados pelo gosto Camp são antiquados, ultrapassados, démodé. Não é a predileção por aquilo que é antigo enquanto tal. É simplesmente porque o processo de envelhecimento ou deterioração consente o distanciamento necessário — ou desperta uma simpatia necessária. Quando o tema é importante e contemporâneo, o fracasso de uma obra de arte pode nos deixar indignados. O tempo pode mudar isso. O tempo libera a obra de arte da relevância moral, entregando-a à sensibilidade Camp… Outro efeito: o tempo reduz a esfera da banalidade. (A banalidade, no sentido estrito, é sempre uma categoria do contemporâneo.) O que era banal, com a passagem do tempo pode se tornar fantástico. Muitas pessoas que ouvem deliciadas o estilo de Rudy Vallee revivido pelo grupo pop inglês The Temperance Seven, teriam enlouquecido por Rudy Vallee na época do seu apogeu. Portanto, as coisas são campy não quando envelhecem — mas quando passamos a nos envolver menos com elas e podemos apreciar, em vez de nos sentirmos frustrados por isso, o fracasso da tentativa. Mas a ação do tempo é imprevisível. Talvez a interpretação pelo “método” (James Dean, Rod Steiger, Warren Beatty) possa parecer Camp algum dia, assim como Ruby Keeler, agora — ou como Sarah Bernhardt, nos filmes que ela fez no final de sua carreira. E talvez não.

32. Camp é a glorificação do “personagem”. A afirmação não tem nenhuma importância — salvo, evidentemente, para a pessoa (Loie Fuller, Gaudí, Cecil B. De Mille, Crivelli, de Gaulle, etc.) que a faz. O que o gosto Camp aprecia é a unidade, a força da pessoa. Em cada movimento, a idosa Martha Graham é Martha Graham, etc, etc… Isto é claro no caso do grande ídolo sério do gosto Camp, Greta Garbo. A incompetência de Garbo (pelo menos a falta de profundidade) como atriz realça sua beleza. Ela é sempre a mesma.

Greta Garbo.

33. O gosto Camp reage ao “personagem instantâneo” (isto é, evidentemente, muito século XVIII); e, por outro lado, não é estimulado pela sensação de evolução do personagem. O personagem é entendido como um estado de contínua incandescência — uma pessoa como uma coisa única, muito fundamental da teatralização da experiência incorporada na sensibilidade Camp. E contribui para justificar que a ópera e o balé sejam experimentados como ricos tesouros Camp, pois nenhuma dessas duas formas pode fazer justiça à complexidade da natureza humana. Sempre que há evolução do personagem, o Camp se reduz. Entre as óperas, por exemplo, La Traviata (que mostra alguma evolução do personagem) é menos campy do que Il Trovatore (que não mostra nenhuma evolução).

“A vida é uma coisa demasiado importante para falarmos seriamente a seu respeito.” — Vera, or the Nihilists

34. O gosto Camp dá as costas ao eixo bom-ruim do julgamento estético comum. O Camp não inverte as coisas. Não argumenta que o bom é ruim, ou que o ruim é bom. Ele apenas apresenta como arte (e vida) um conjunto de padrões diferente, suplementar. Comumente, valorizamos uma obra de arte por causa da seriedade e dignidade daquilo que realiza. Nós a valorizamos porque consegue ser o que é e, supostamente, realizar a intenção que está por trás dela. Pressupomos uma relação adequada, ou seja, uma relação direta entre intenção e execução. De acordo com estes padrões, valorizamos A Ilíada, as peças de Aristófanes, A Arte da Fuga, Middlemarch, as pinturas de Rembrandt, Chartres, a poesia de Donne, A Divina Comédia, os quartetos de Beethoven e pessoas como Sócrates, Jesus, São Francisco, Napoleão, Savonarola. Em suma, o panteão da cultura erudita: verdade, beleza e seriedade.

36. Mas existem outras sensibilidades criadoras além da seriedade (trágica e cômica ao mesmo tempo) da cultura erudita e do estilo erudito na avaliação das pessoas. E trapaceamos conosco mesmos, enquanto seres humanos, se respeitamos apenas o estilo da cultura erudita, o que quer que, secretamente, possamos fazer e sentir. Por exemplo, existe o tipo de seriedade cuja marca registrada é a angústia, a crueldade, a loucura. Nesse caso, aceitamos uma disparidade entre intenção e resultado. Estou falando, obviamente, de um estilo de existência pessoal e também de um estilo artístico; mas os melhores exemplos se encontram na arte. Pensemos em Bosch, Sade, Rimbaud, Jarry, Kafka, Artaud, pensemos na maioria das importantes obras de arte do século XX, ou seja, da arte cujo objetivo não é criar harmonias, mas forçar ao máximo o veículo e introduzir temas cada vez mais violentos e insolúveis. Esta sensibilidade também insiste no princípio de que uma oeuvre no velho sentido (sempre na arte, mas também na vida) não é possível. Somente “fragmentos” são possíveis… Evidentemente, nesse caso, aplicam-se padrões diferentes aos da cultura erudita tradicional. Algo é bom não porque está realizado, mas porque revela outra espécie de verdade sobre a condição humana, outra experiência daquilo que é ser humano — em suma, outra sensibilidade válida. E em terceiro lugar entre as grandes sensibilidades criadoras está o Camp: a sensibilidade da seriedade fracassada, da teatralização da experiência. O Camp rejeita tanto as harmonias da seriedade tradicional quanto os riscos da identificação total com estados extremos de sentimento.

37. A primeira sensibilidade, a da cultura erudita, é basicamente moralista. A segunda sensibilidade, a dos estados extremos do sentimento, representada em muitas artes de “vanguarda” contemporâneas, ganha vigor por uma tensão entre a moral e a paixão estética. A terceira, o Camp, é totalmente estética.

38. Camp é a experiência do mundo consistentemente estética. Ela representa a vitória do “estilo” sobre o “conteúdo”, da “estética” sobre a “moralidade”, da ironia sobre a tragédia.

39. Camp e tragédia são antíteses. Existe seriedade no Camp (seriedade no grau do envolvimento do artista) e, frequentemente, pathos. O doloroso também é uma das tonalidades do Camp; a qualidade da dor em muitas obras de Henry James (por exemplo, The Europeans, The Awkward Age, The Wings of the Dove) é responsável pela ampla característica Camp de seus escritos. Entretanto, nunca há tragédia, nunca.

40. O estilo é tudo. As idéias de Genet, por exemplo, são muito Camp. A afirmação de Genet de que “o único critério de um ato é sua elegância”[2] praticamente equivale, enquanto afirmação, à de Wilde: “Em questões de grande importância, o elemento vital não é a sinceridade, mas o estilo”. Contudo, o que conta, finalmente, é o estilo no qual as idéias são afirmadas. As idéias sobre moralidade e política em, por exemplo, Lady Windemere’s Fan e em Major Barbara são Camp, mas não apenas por causa da natureza das idéias em si. São essas idéias, afirmadas de uma maneira jocosa, especial. As idéias Camp de Nossa Senhora das Flores são afirmadas de uma maneira demasiado austera, e a obra em si consegue ser extremamente elevada e séria para que os livros de Genet sejam Camp.

41. A questão fundamental do Camp é destronar o sério. O Camp é jocoso, anti-sério. Mais precisamente, o Camp envolve uma nova e mais complexa relação com o “sério”. Pode-se ser sério a respeito do frívolo, e frívolo a respeito do sério.

42. Sentimo-nos atraídos pelo Camp quando percebemos que a “sinceridade” não é suficiente. A sinceridade pode ser simples vulgaridade, estreiteza intelectual.

43. Os recursos tradicionais que permitem ultrapassar a seriedade convencional — ironia, sátira — parecem fracos hoje, inadequados ao veículo culturalmente supersaturado no qual a sensibilidade contemporânea é educada. O Camp introduz um novo modelo: o artifício como ideal, a teatralidade.

44. O Camp propõe uma visão cômica do mundo. Mas não uma comédia amarga ou polêmica. Se a tragédia é uma experiência de hiperenvolvimento, a comédia é uma experiência de subenvolvimento, de distanciamento.

“Eu adoro os prazeres simples, são o último refúgio do complexo.” — Woman of No Importance

45. O distanciamento é a prerrogativa de uma elite; e como o dândi é o substituto do aristocrata em questões culturais, no século XIX, o Camp é o moderno dandismo. Camp é a resposta ao problema de como ser um dândi na era da cultura de massa.

46. O dândi era excessivamente cultivado. Sua postura era o desdém, ou o ennui. Ele buscava sensações raras, não corrompidas pela apreciação popular. (Modelos: Des Esseintes em A Rebours, Marius the Epicurean, de Huysmans, Monsieur Teste, de Valéry.) Dedicava-se ao “bom gosto”. O conhecedor do Camp encontrou prazeres mais criativos. Não na poesia latina e nos vinhos raros e nos casacos de veludo, mas nos prazeres mais rudes, mais comuns, nas artes das massas. O simples uso não corrompe os objetos de seu prazer, desde que ele aprenda a possuí-los de uma maneira rara. O Camp — o dandismo na idade da cultura de massa — não faz distinção entre o objeto singular e o objeto produzido em massa. O gosto do Camp transcende a náusea da réplica.

47. O próprio Wilde é uma figura de transição. O homem que, ao chegar a Londres, envergava uma boina de veludo, camisas de renda, calções de veludo até o joelho e meias de seda negra, jamais poderia abandonar totalmente os prazeres do dândi ao velho estilo; este conservadorismo reflete-se em The Picture of Dorian Gray (O Retrato de Dorian Gray). Mas muitas das suas atitudes sugerem algo mais moderno. Foi Wilde quem formulou um elemento importante da sensibilidade Camp — e a equivalência de todos os objetos — ao anunciar a intenção de “viver” em concordância com seu aparelho de jantar de porcelana azul e branca, ou declarar que uma maçaneta poderia ser tão admirável quanto uma pintura. Quando proclamou a importância da gravata, da flor na lapela, da cadeira, Wilde estava antecipando o esprit democrático do Camp.

48. O dândi no estilo antigo odiava a vulgaridade. O dândi novo estilo, o amante do Camp, aprecia a vulgaridade. Onde o dândi se sentiria continuamente ofendido ou aborrecido, o conhecedor do Camp sente-se continuamente divertido, deleitado. O dândi levava um lenço perfumado às narinas e costumava desmaiar; o conhecedor do Camp aspira o mau cheiro e se orgulha de ter nervos fortes.

49. É uma façanha e tanto, é claro. Uma façanha estimulada, em última análise, pela ameaça do tédio. Não podemos superestimar a relação entre o tédio e o gosto Camp. O gosto Camp, por sua própria natureza só é possível nas sociedades afluentes, nas sociedades ou nos ambientes capazes de experimentar a psicopatologia da afluência.

“O que é anormal na Vida tem uma relação com a Arte. É a única coisa na Vida que tem uma relação anormal com a Arte.” — A Few Maxims for the Instruction of the Over-Educated

50. Aristocracia é uma posição em relação à cultura (bem como ao poder) e a história do gosto Camp faz parte da história do gosto esnobe. Mas como hoje não existem autênticos aristocratas no velho sentido, para patrocinar gostos especiais, quem cultiva esse gosto? Resposta: uma classe improvisada, auto-eleita, principalmente homossexuais, que se constituem em aristocratas do gosto.

51. É preciso explicar a relação peculiar entre gosto Camp e a homossexualidade. Embora não seja verdade que o gosto Camp é o gosto homossexual, existe indubitavelmente uma afinidade e uma imbricação peculiar. Nem todos os liberais são judeus, mas os judeus têm demonstrado uma peculiar afinidade às causas liberais e reformistas. Portanto, nem todos os homossexuais têm gosto Camp. Mas os homossexuais, em grande parte, constituem a vanguarda e o público mais articulado do Camp. (A analogia não é escolhida de modo frívolo, judeus e homossexuais são as proeminentes minorias criativas da cultura urbana contemporânea. Criativas, ou seja, no sentido mais autêntico: eles são criadores de sensibilidades. As duas forças pioneiras da moderna sensibilidade são a seriedade moral judia e o esteticismo e a ironia homossexual.)

52. A razão do florescimento da postura aristocrática entre os homossexuais também parece equivaler-se ao caso judeu. Pois cada sensibilidade atende ao grupo que a promove. O liberalismo judeu é um gesto de autolegitimação. Também o gosto Camp, que definitivamente possui algo propagandístico. Não é preciso dizer que a propaganda funciona na direção exatamente oposta. Os judeus depositavam suas esperanças de integração numa sociedade moderna na promoção do senso moral. Os homossexuais atribuem sua integração à sociedade à promoção do senso estético. O Camp é um solvente da moralidade. Ele neutraliza a indignação moral, patrocina a jocosidade.

53. Não obstante, muito embora os homossexuais tenham sido sua vanguarda, o gosto Camp é muito mais do que gosto homossexual. Obviamente, sua metáfora da vida como teatro é particularmente adequada como justificativa e projeção de um certo aspecto da situação dos homossexuais. (A insistência Camp em não ser “sério”, em brincar, também se relaciona ao desejo do homossexual de parecer jovem.) No entanto, percebe-se que se os homossexuais não tivessem mais ou menos inventado o Camp, outros teriam. Pois a postura aristocrática em relação à cultura não pode morrer, embora só possa persistir de formas cada vez mais arbitrárias e engenhosas. O Camp é (repetindo) a relação com o estilo numa época em que a adoção de um estilo — enquanto tal — se tornou totalmente questionável. (Na era moderna, cada novo estilo, a não ser aquele francamente anacrônico, entrou em cena como um anti-estilo.)

“É preciso ter um coração de pedra para ler sobre a morte de Little Nell sem rir.” — In Conversation

54. As experiências do Camp baseiam-se na grande descoberta de que a sensibilidade da cultura erudita não possui o monopólio do refinamento. O Camp afirma que o bom gosto não é simplesmente bom gosto; que existe, em realidade, um bom gosto do mau gosto. (Genet fala disso em Nossa Senhora das Flores.) A descoberta do bom gosto do mau gosto pode ser bastante liberadora. O homem que insiste nos prazeres elevados e sérios está se privando do prazer; está sempre limitando aquilo que poderia gozar; no constante exercício do seu bom gosto acaba, por assim dizer, atribuindo-se um valor que o exclui do mercado. Nesse caso, o gosto Camp sucede ao bom gosto como um hedonismo audacioso e espirituoso. Torna jovial o homem de bom gosto, quando antes ele corria o risco de se frustrar cronicamente. É bom para a digestão.

55. O gosto Camp é, acima de tudo, uma forma de prazer, de apreciação — não de julgamento. O Camp é generoso. Quer divertir. Só aparentemente é maldoso, cínico. (Ou, se é cínico, não é um cinismo impiedoso mas doce.) O gosto Camp não propõe que é de mau gosto ser sério; não zomba de quem consegue ser seriamente dramático. Ele descobre o sucesso em certos intensos fracassos.

56. O gosto Camp é uma espécie de amor, amor pela natureza humana. Ele se deleita com os pequenos triunfos e as embaraçosas intensidades do “personagem”, não os julga… O gosto Camp se identifica com aquilo que dá prazer. As pessoas que compartilham essa sensibilidade não riem da coisa que rotulam “um camp”, elas a apreciam. Camp é um sentimento terno. (Nesse caso, pode-se comparar o Camp a grande parte da Arte Pop, que — quando não é apenas Camp — representa uma atitude afim, contudo muito diferente. A Arte Pop é mais horizontal e mais seca, mais séria, mais distante, em última análise, niilista.)

57. O gosto Camp se alimenta do amor que penetrou certos objetos e estilos pessoais. A ausência desse amor é a razão pela qual coisas kitsch como Peyton Place (o livro) e o Edifício Tishman não são Camp.

58. A afirmação Camp definitiva: é bom porque é horrível… Evidentemente, nem sempre é possível dizer isso. Apenas em certos casos, os que tentei esboçar nessas notas.

Notas

[1] A sensibilidade de uma época não é apenas seu aspecto mais decisivo mas também o mais perecível. É possível captar as idéias (história intelectual) e o comportamento (história social) de uma época mesmo sem jamais tocar na sensibilidade ou no gosto que informou essas idéias, esse comportamento. São raros os estudos históricos — como o de Huizinga sobre o fim da Idade Média, de Febvre sobre a França do século XVI — que nos falam um pouco da sensibilidade do período.

[2] Sartre comenta a respeito disso em Saint Genet: “A elegância é a propriedade da conduta que transforma a maior parte do ser em aparecer”.

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Jocimar Dias Jr.
Musicais: Utopias (Queer) no Audiovisual

eterno estudante de cinema e audiovisual (atualmente, doutorando). louco por musicais.