O canto queer de “Córki Dancigu” e seu sereísmo LGBTQ+

Resumo: Este artigo visa analisar os aspectos queer e a representatividade LGBTQ+ dentro do filme polonês “Córki dancigu” (Agnieszka Smoczynska, 2015). Como não há bibliografias sobre a obra, o estudo geral será feito através de comparações com “A Pequena Sereia” (Ron Clements e John Muskers, 1989), e, principalmente, com o conto que originou as duas películas, “Den lille havfrue” (1837), de Hans Christian Andersen.

(Córki dancigu, 2015, Agnieszka Smoczynska)

O filme Córki dancigu marca a estreia de Agnieszka Smoczynska na direção de um longa-metragem e é estrelado por Marta Mazurek como “Prateada” e por Michalina Olszanska como “Dourada”. Escrita por Robert Bolesto, ao longo de seus 92 minutos, a película transita entre diversos gêneros, sempre surpreendendo o espectador, podendo ser classificada como uma “comédia-horror-musical”.

O enredo se passa na década de 1980 na polônia comunista. Conta a história de duas irmãs sereias, Prateada e Dourada, as quais encontram uma família de músicos em uma praia e os acompanham até uma casa noturna. Lá, passam a fazer performances sensuais que exploram a beleza exótica das jovens. Inicialmente, elas estão apenas de passagem, pois querem seguir até a América, mas a mais doce se apaixona pelo jovem humano Mietek (Jakub Gierszal) e sofre por não ser uma “garota real”. Mesmo com o rapaz abusando de seus sentimentos, o que causa revolta por parte da irmã, Prateada se doa em vários aspectos pra vê-lo feliz. O final trágico da obra se assemelha muito ao do conto que inspirou a película.

(Córki dancigu, 2015, Agnieszka Smoczynska)

A obra teve inspiração na história de vida da diretora, pois sua mãe administrava uma boate e neste local foi onde “amadureceu, bebeu sua primeira dose de vodka, teve sua decepção sexual, etc”. A película também foi livremente inspirado em “Den lille havfrue” (traduzindo para o português, “A Pequena Sereia”), conto de Hans Christian Andersen escrito em 1837. O autor nasceu no dia 2 de abril de 1805 e na data de seu aniversário foi instituído o “Dia Internacional do Livro Infantil”. De origem pobre, vivia em um único quarto com toda sua família; seu pai trabalhava como sapateiro e sua mãe como “lavadeira”. Hans aprendeu sobre Shakespeare ainda pequeno, pois seu pai era um grande admirador do escritor e conhecia alguma de suas obras de memória. Antes da fama, o jovem Andersen atuou em diversas áreas artísticas, chegando a trabalhar como ator e dançarino no Teatro Real da Dinamarca, em Copenhagen. Mas foi através de sua literatura que conquistou sua popularidade.

A personalidade de Andersen e sua história de vida são refletidas em obras como “Den grimme ælling” (1843), para o português, “O patinho feio”. Segundo estudiosos, esta é uma de suas produções que ele fala sobre como se sente deslocado devido à sua sexualidade, a qual chegou a ser discutida em um artigo escrito em 1901 em uma revista que tratava sobre “ambiguidade sexual”. Alguns falavam que Hans gostava “romanticamente” de mulheres e homens, porém era assexuado e “espiritualmente andrógino”.

Este texto não irá discutir a sexualidade de Hans Christian Andersen, mas tomará como base a possível influência queer de sua personalidade e de sua vida em suas obras que resultaram em diversas adaptações — como é o caso de “Den lille havfrue”, que serviu, claramente, de inspiração para filmes como “A Pequena Sereia” (Ron Clements e John Muskers, 1989) e, a película analisada neste artigo, “Córki dancigu”.

“Den lille havfrue” conta a história da filha mais nova do rei dos mares, uma sereia com a mais bela voz que nutre uma grande admiração pelo “mundo dos humanos” e acaba se apaixonando por um, após salvá-lo de um acidente. Para poder ter pernas e “viver na sua utopia” perto de seu amado, recorre à feiticeira do mar que, em troca, retira sua língua e a deixa impossibilitada de falar. Além de sentir dores como cacos de vidros que cortam os pés a cada vez que andar, necessita fazer com que o jovem também a ame, pois se ele se apaixonar por outra pessoa, ela virará espuma do mar. Assim seria seu fim para todo o sempre, pois como foi ensinada, acredita ser diferente dos humanos, e por isso não tem alma como eles.

Em determinado momento do conto, o rapaz acaba se apaixonando por outra garota, pois acreditava ter sido salvo pela mesma, sem saber quem era a verdadeira heroína. No casamento do jovem, a protagonista teria de matá-lo com um punhal entregue pela feiticeira do mar, recebido em troca dos cabelos de suas irmãs, as quais se preocupavam com a vida da mesma, pois estava prestes a morrer. A filha mais nova do rei dos mares não consegue realizar tal ato e acaba se jogando nas águas concretizando o feitiço, tornando-se espuma do mar. Porém, depois de tanto sacrifício, acaba virando uma “filha do ar”, tendo assim, uma alma como a dos humanos.

O traço trágico, principalmente no final, do conto “Den lille havfrue”, foi descartado na adaptação feita pelos estúdios Disney. Em “A pequena sereia”, por se tratar de um filme de animação para crianças, a obra de Hans Christian Andersen foi alterada e transformada em uma película que esconde o lado sombrio da história.

Tal como sobre a sexualidade do autor de “Den lille havfrue”, este texto não irá questionar se um filme é mais fiel à obra literária que o outro. Levará em consideração as alterações feitas de cada longa-metragem, pois são adaptações, não desmerecendo nenhuma destas, em caráter comparativo apenas.

O filme “A Pequena Sereia” conta a história de Ariel, a filha mais nova do Rei Tritão que, tal como no conto de Andersen, é encantada pelo mundo dos humanos e recorre à bruxa do mar, Úrsula, para conseguir as suas pernas tão desejadas, após salvar e se apaixonar por um jovem rapaz. Na obra, a vilã e feiticeira quer conquistar o reino dos mares e, em troca de sua ajuda, pede a voz da pequena sereia, conhecida como a mais bela de todas. A protagonista da película infantil acaba por ceder, mas terá três dias para receber o beijo do amor verdadeiro, caso contrário voltará a ser sereia e pertencerá a antagonista. A menina consegue e acaba ficando com seu amado no final, diferente de “Den lille havfrue” e “Córki dancigu”.

O nome Ariel, visto apenas no filme infantil, é uma curiosidade maravilhosa: um de seus significados é filha(o) do ar; parecendo uma alusão ao final do conto de Andersen. Outro fato é que o nome é usado para batizar tanto homens quanto mulheres, trazendo uma conotação de androginia à personagem, que além de remeter a Andersen, por ser “espiritualmente andrógino”, causa uma identificação maior por todo público com a protagonista, abrindo várias camadas de leituras LGBTQ+ possíveis.

Úrsula também pode ser destacada. Em uma de suas performances, a música “Poor unfortunate souls”, a vilã fala sobre os comportamentos esperados de uma mulher em uma sociedade machista, principalmente que fique calada e seja submissa ao homem. Outro fator importante para destacar na antagonista é a sua inspiração e como isso reflete em sua aparência e seus números musicais. Segundo estudiosos, foi inspirada na icônica drag queen Divine, a mais reconhecida dos anos 1980, interpretada pelo ator Glenn Milstead, a qual abusava de um estilo bem caricato e obsceno, flertando com o trash e o grotesco da década em que se destacou. E é neste mesmo decênio que temos a trama de “Córki Dancigu”.

(Córki dancigu, 2015, Agnieszka Smoczynska)

Segundo Susan Sontag, “a essência do Camp é sua predileção pelo inatural: pelo artifício e pelo exagero” (SONTAG, 1964, p.2). Tanto pela produção quanto apenas por sua história, “Córki dancigu” (ou como ficou seu título em português, “A atração”) bebe dessa afirmação muito pela sua excentricidade exacerbada. As performances, a trilha sonora, os brilhos da década de 1980, a beleza das protagonistas, entre outros aspectos, trazem a graça e toda a atmosfera fílmica da obra.

O burlesco (as apresentações de caráter erótico e cômico) está presente na trama de “Córki dancigu”. Como na apresentação de “Banananowy Song”, nos primeiros 13 minutos de filme. Mas o destaque maior está para “Bylas serca biciem”, momento em que as sereias são apresentadas ao público que frequenta a casa de entretenimento adulto. O exotismo das personagens e o número musical causam uma leitura de um espetáculo de drag queen, trazendo uma questão queer para a obra.

Mesmo sem a presença de uma vilã de fato, “Córki dancigu” bebe da referência drag queen de “A Pequena Sereia”. Úrsula parece dissolvida entre os espetáculos da casa noturna e entre a personalidade de alguns personagens, que em muitos momentos demonstram atos machistas, os quais no filme infantil são falados e demonstrados pela feiticeira, mas de uma forma mais sutil.

Como exemplo, temos o patriarca da família de músicos e sua relação com o filho e, principalmente, com a esposa, a qual chega a ser agredida em determinado momento. Outro personagem que demonstra essa vertente machista é o dono da casa noturna. Em diversos momentos ele demonstra o fator abusador do “homem sobre os submissos à ele”. Ele chega a abusar das sereias e antes da primeira apresentação das mesmas, em uma espécie de “boa sorte repugnante”, ele abraça todos envolvidos do espetáculo por trás, exceto Dourada, que não se submete ao ato.

Outro fator que pode ser analisado no filme é a exploração do exótico, pois as garotas trabalham e não recebem para isso em meio suas apresentações. Em uma espécie de “Freak Show”, as garotas são vitrines eróticas apenas para imaginário, principalmente, masculino. Pode-se fazer uma alusão ao convívio de LGBTQ+ em sociedade. A característica exótica neste caso é pautada pela sexualidade em si, que torna-se curiosa para a maioria, seja por preconceito, o qual está enraizado em um mundo machista, ou pelo simples fator de querer ter contato com o que é desconhecido, e nem ser feito de forma positiva.

O curioso é que tal contato pode ser atribuído também ao medo de conhecer novas possibilidades. Como é o caso de Mietek, o equivalente ao jovem salvo no conto e na história da Disney, neste momento ele é um “príncipe com uma roupagem de roqueiro”. Nesta versão, o jovem representa, tal como em “Den lille havfrue”, um machismo velado, mas tão nocivo quanto o explícito. O receio de se relacionar com Prateada está ligado ao fato, de como ele diz para a mesma, “de sempre a enxergá-la como um peixe, um animal”.

Mesmo não querendo se relacionar com a doce sereia, Mietek a usa para reforçar seu ego machista como o de seu pai. Prateada faz de tudo para que ele a “aceite”, como muitos LGBTQ+ fazem para receber apenas respeito e seus direitos na sociedade, até mesmo abre mão de sua cauda e consequentemente de sua voz. A presença de Úrsula mais uma vez é dissolvida nas entrelinhas do machismo na película.

Prateada se submete à uma cirurgia para retirar sua cauda para transformar-se em “humana de vez”, pois quando assume a mesma, não tem órgãos sexuais. A cena consagra a parte de horror da película e surpreende o espectador com o lúdico sangrento. A música “Lozko” é cantada pela doce sereia enquanto ocorre sua operação em uma melodia bem melancólica.

(Córki dancigu, 2015, Agnieszka Smoczynska)

Após ter sido operada, Prateada, que está com dificuldades de se locomover, tenta transar com Mietek, que acaba por machucá-la, e ainda assim julgá-la e demonstrar nojo por quem ela é. Nessa cena, pode-se ver que agora a jovem tem uma vagina e uma marca na barriga por conta da cirurgia. Também é após se transformar que a doce garota descobre o sabor das lágrimas como na obra de Andersen.

Tritão, um personagem curioso também, apresenta a mesma marca que a jovem em sua barriga, mas em nenhum momento é explicitado se o mesmo se submeteu à cirurgia. Sabe-se que o mesmo teve um de seus “chifres” arrancados por marinheiros e o outro por ele mesmo. Além disso, é ele quem avisa Dourada sobre o possível perigo de Prateada se apaixonar por um humano, pois se o mesmo se apaixonar por outra pessoa, ela viraria espuma do mar remetendo à “Den lille havfrue”.

“Córki dancigu” tem sua trama instituída em Varsóvia, capital da Polônia, em cujo brasão de armas há uma sereia com uma espada na mão, além de uma estátua que representa tal crença. A lenda que a cidade é protegida por esse ser mitológico traz uma imagem de guerreira para o mesmo. Dourada, a “anti-heroína” e co-protagonista do filme se assemelha neste aspecto de força simbólico da metrópole polonesa. Em Copenhagen, tem-se uma estátua que homenageia Hans Christian Andersen, que demonstra certa doçura e ingenuidade, podendo-se comparar Prateada com a mesma.

Mesmo demonstrando personalidades diferentes as sereias demonstram a irmandade presente também no conto “Den lille havfrue”. A voz de uma complementa a outra. Isso pode ser percebido em diversos momentos da obra, como no início, em que elas interrompem o momento musical da família de músicos com o “Syreni Calling” (ou em português, “Canto da sereia”). A música demonstra a sedução e o mito em volta desses seres mitológicos. Em determinado momento da trama, quando Prateada não pode mais falar nem cantar, Dourada fala que não canta sozinha e em muitos momentos lembra a irmã de que uma necessita da outra para atingir seus objetivos.

Dourada, em muitas vezes, denuncia o machismo na película, mas atua de uma forma controversa. Ela é capaz de seduzir um homem para apenas se alimentar dele, principalmente de seu coração. Não demonstra arrependimento, como se estivesse se vingando de como era tratada. Acaba por não encobrir seu crime, quando é procurada pela polícia.

Na cena em que a policial vai atrás de Dourada, está ocorrendo um espetáculo voltado para o rock’n’roll e sem caráter erótico, com “Czary-Mary” tocando, em que as sereias parecem empoderar-se de si mesmas, revoltadas, como diz na música, com “promessas” que sempre recebem e não são concretizadas. Neste momento, o público da casa noturna se rende à força das protagonistas, e com a “quebra da quarta parede”, parecem tentar seduzir o espectador também.

A policial tem seu número musical junto de Dourada, o qual resulta em uma das cenas mais curiosas do filme. Com a música “Policjantka”, começam a interagir na saída da casa noturna, depois em um carro, com um grande flerte lésbico, até chegar em um quarto, onde a detetive tira sua roupa e entrega um copo de água para que Dourada assuma a sua verdadeira forma. O ato sexual é consumado, demonstrando uma representação da bissexualidade da “anti-heroína” da trama. Cortando para uma sequência perturbadora em que as protagonistas parecem sugar os seios da matriarca da família de músicos.

(Córki dancigu, 2015, Agnieszka Smoczynska)

Ao final da trama, Mietek acaba por se apaixonar por outra mulher. No casamento deles, Dourada, tal como as irmãs da pequena sereia do conto, incentiva a irmã à matá-lo, pois Prateada acabaria virando espuma do mar. A doce garota acaba desistindo e desaparece nos braços do jovem, o qual é morto pela “anti-heroína”, que foge sem ninguém impedir. Uma cena de calmaria no mar é colocada em seguida, demonstrando uma possível leitura de que o contato com os humanos seria mais agitado e perigoso à elas do que para eles, demonstrando os “verdadeiros antagonistas” da película.

Em suma, o filme “Córki dancigu” é uma interessante atração visual e narrativa. Bebe de aspectos queer como espetáculos burlescos e “de uma vertente drag queen”, trazendo o conceito de camp para a película. Traz questionamentos sobre o machismo que domina boa parte da sociedade, além de tratar de assuntos LGBTQ+, mesmo que de forma sutil e implícita. A obra exprime a essência de suas referências com maestria, principalmente do conto “Den lille havfrue”, e mesmo assumindo uma linguagem de horror em muitas cenas, acaba por emocionar o público.

Referências bibliográficas

ANDERSEN, Hans Christian. “Den lille havfrue”. 1837.

SANTOS, Caynnã de Camargo. “´I LOOK DIVINE´: VILANIA, DRAG E HETERONORMATIVIDADE EM ´A PEQUENA SEREIA´. 2016.

SONTAG, Susan. “NOTES ON CAMP”. 1964, p. 02.

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