O “Problema” de Jujuba: O Relacionamento Lésbico em “Hora de Aventura”

Resumo: O artigo busca expor as dinâmicas do relacionamento das personagens Marceline (Olivia Olson) e Princesa Jujuba (Hynden Walch) na série Hora de Aventura (Pendleton Ward, 2010–2018) como românticas e homoafetivas e criar um panorama de desenvolvimento do relacionamento, a partir de uma leitura pessoal e queer da narrativa.

Na animação para televisão Hora de Aventura, duas personagens recorrentes e importantes para a trama são Princesa Jujuba e Marceline, ambas mulheres fortes, independentes e com personalidades complexas e bem desenvolvidas. Além da narrativa particular de cada uma, a forma com que as duas se relacionam durante a série se deu de forma peculiar, sendo facilmente interpretada como de cunho romântico. Desta forma, irei demonstrar, a partir de pontos chave da narrativa, como Hora de Aventura consegue desenvolver o relacionamento romântico entre as duas personagens de forma não explícita, mas não menos efetiva.

A primeira interação entre as duas personagens é de caráter hostil, como visto no episódio “Go With Me” (2.20) — interessante por si só, já que Marceline sabota todas as tentativas do Finn (Jeremy Shada) de cortejar a princesa. Além disso, Marceline a refere pelo primeiro nome, desconhecido até então, indicando uma antiga intimidade entre as duas.

É no episódio “What Was Missing” (3.10), que essa rixa é retomada. O enredo revolve no roubo dos itens mais preciosos de cada um dos personagens, que são escondidos atrás de uma porta, que só abrirá se ouvir a verdade. Desde o início do encontro, Marceline e Jujuba se provocam, como esperado. É no momento que Marceline começa a cantar a música “I’m Just Your Problem” que a perspectiva do relacionamento muda.

A música começa com comentários agressivos direcionados à Princesa Jujuba, mas rapidamente toma conotações sexuais, como a do verso “Eu vou beber o sangue do seu lindo rosto rosa”[1]. Neste momento, Jujuba critica sua música e Marceline fica extremamente defensiva. A partir de então, é possível observar que a reação da porta mágica muda por ela ter assumido uma sinceridade não presente nas ofensas anteriores.

Os números musicais de Marceline que serão analisados neste artigo se encaixam na categoria de transparência dos musicais, apontada por Richard Dyer em sua obra “Only Entertainment” (2002). Ou seja, é através da música que a personagem consegue expressar honestidade e revelar seus maiores desejos.

Toda a letra dessa primeira música é incrivelmente intensa e Marceline demonstra um sentimentalismo nunca visto anteriormente, já que a personagem é caracteristicamente fria e indelicada. Nessa cena, pode-se notar o rancor e a dor em Marceline quando ela canta “Eu não sou doce o suficiente pra você? É por isso que você sempre me evita? Deve ser uma grande inconveniência pra você. Bem, eu sou só o seu problema. É como se eu nem fosse uma pessoa, eu sou só o seu problema. Eu não deveria provar nada pra você. Me desculpa por existir. Eu esqueço o que me colocou na sua lista negra, mas eu não deveria ser quem faz as pazes com você. Então, por que eu quero?”.

Os insultos rapidamente se transformam em uma declaração de amor, assim como relata Dyer em seu livro, quando exemplifica a “transparência”. Jake (John DiMaggio), Finn e Jujuba ficam surpresos por ver essa vulnerabilidade atípica, que reforça a importância de Jujuba para a vampira, apesar do grande conflito passado. Tal conflito pode ser facilmente interpretado como um término de namoro. Parece improvável que uma discussão entre duas amigas tenha causado tanto sofrimento e remorso e tenha resultado em um número musical tão poderoso quanto este.

No fim do episódio elas se reconciliam, pelo menos momentaneamente, e são vistas cantando juntas e olhando profundamente uma para a outra.

Por fim, os itens mais inestimáveis dos personagens são recuperados e é revelado que o de Princesa Jujuba é uma camiseta que Marceline deu a ela outrora. Fica nítida, então, a reciprocidade dos sentimentos de Marceline por parte da princesa.

O episódio é bem claro com suas intenções, mesmo não sendo explícito. De fato, uma das pessoas que estava por trás do storyboard desse episódio e quem escreveu as músicas foi Rebecca Sugar, que é abertamente queer e defende tal representatividade nos desenhos infantis, como demonstra sempre em sua animação Steven Universo (Rebecca Sugar, 2013-). Além dela, outros membros da equipe de Hora de Aventura demonstraram seu apoio ao casal em redes sociais durante os anos, como a animadora Natasha Allegri, que tem ilustrações publicadas da união.

Depois que esse episódio estreou, a repercussão e apoio dos fãs ao relacionamento, nomeado Bubbline, foi enorme através de fanarts, ilustrações feitas por fãs, e fanfictions, narrativas escritas pelos fãs e que incorporam personagens de uma certa obra. Esse movimento certamente foi relevante e, a partir de então, fica evidente a reaproximação das personagens, que frequentemente são vistas juntas.

O subtexto também é cada vez menos sutil e no episódio “Sky Witch” (5.29), é nítida a atração sexual entre Marceline e Jujuba. O episódio tem início com Jujuba acordando em seu quarto, usando a camiseta que Marceline a deu; ela, então, cheira a camiseta de maneira deliberada.

E, ao abrir o guarda-roupa, ainda podemos ver claramente uma fotografia dela e de Marceline.

Marceline chega ao castelo e implora à Jujuba que a ajude a recuperar sua pelúcia de infância, Hambo. Pelo passado de Marceline, explorado em outros episódios, é fácil entender porque o ursinho significa tanto para ela, sendo sua última lembrança feliz de uma infância extremamente perturbada e traumática. É ainda uma ligação com a sua maior figura paterna, Simon (Tom Kenny), que perdeu suas memórias, sua identidade e sanidade.

A pelúcia foi roubada justamente por seu poder sentimental. Para recuperá-la, Jujuba a troca pela camiseta dada por Marceline e, no final do episódio, a bruxa que o roubou afirma “A ressonância psíquica no Hambo é nada comparada a isso”.

Os sentimentos de Jujuba quanto a Marceline foram suficientes para que a bruxa pudesse acordar um demônio de um sono de mil anos. A proximidade entre as duas durante o episódio diz muito por si só também. São muitas trocas de olhares, contato físico e uso de apelidos carinhosos, que serão constantes agora no relacionamento.

Estabelecido o interesse romântico e sexual entre as duas, no episódio “Varmints” (7.02), as duas se reconciliam definitivamente, quando Princesa Jujuba pede desculpas, e, em momentos de extrema delicadeza, explica o porquê de ter afastado a outra, e seu laço se fortalece ainda mais. Na abertura do episódio, Marceline, cantarolando “I’m Just Your Problem” novamente, entra casualmente, de madrugada, no quarto da princesa, chamando ela pra sair.

O episódio constantemente reforça, verbalmente e visualmente, a profundidade do sentimento e da intimidade entre as duas.

Tais demonstrações excepcionais de carinho permanecem na mini-série “Stakes”, centrada na Marceline e no seu amadurecimento.

O seu relacionamento com Princesa Jujuba se demonstra essencial na sua jornada de autodescoberta e aceitação e vemos no fim da mini-série uma Marceline que compreende e expressa melhor seus sentimentos e está pronta para assumir um relacionamento. O número musical “It’s Spring Again”, no episódio “Take Her Back” (7.11), expressa o desejo de Marceline de envelhecer ao lado da princesa. O número ocorre em um sonho, logo após outro, em que Simon alcança seu “final feliz” com o amor de sua vida; sendo possível interpretar o seguinte como o final feliz que Marceline enxerga para si, junto de seu respectivo amor. A letra da música faz referência a sua história com Jujuba e pronuncia o retorno do amor delas: “É primavera novamente e o jardim está cheio de pequenas flores. Você costumava chamá-las de ervas e matou todas elas”.

“Stakes” termina com a seguinte fala de Marceline: “Bonnie, obrigada por me ajudar a crescer. Agora nós podemos viver juntas pra sempre”.

Depois da mini-série, um episódio marcante foi “Broke His Crown” (8.01), que nada mais é do que Marceline levando a namorada para conhecer o pai.

O episódio é repleto de subtextos incrivelmente palpáveis, como a Jujuba chamando a Marceline de girlfriend, em tom de brincadeira nada convincente. Quando Simon pergunta a Marceline se tem um namorado, a resposta dela é um estrondoso “HÁ! Não… Eu…” e vemos a princesa olhando e sorrindo de relance ao ouvir a conversa.

Além disso, o episódio traz conotações extremamente sexuais como o diálogo:

“Marceline: Você apertou o botão errado?
Jujuba: Não. Eu nunca aperto o botão errado.
Marceline: É, você sempre sabe que botão apertar.

Depois disso, vemos as duas personagens sempre juntas, como se fossem inseparáveis uma à outra; e agem claramente como se fossem namoradas, inclusive usando o pronome “nós” para falar em nome da outra.

Os episódios mais recentes de Hora de Aventura estão cada vez menos ambíguos a respeito do relacionamento de Princesa Jujuba e Marceline. O último número musical de Marceline demonstra isso. No episódio “Marcy & Hunson” (10.07), ela canta sua música mais romântica até então, “Slow Dance With You”, que é claramente direcionada a uma garota, como a autora da música já confirmou nas redes sociais. Além disso, sua acompanhante nos vocais é uma fantasma com a voz de Princesa Jujuba, dublada pela mesma atriz.

Em “Seventeen” (10.05), as duas são exibidas de mãos dadas, enquanto cantam parabéns no aniversário de Finn.

Esse momento acontece logo depois de Marceline ter se jogado em frente da princesa para protegê-la de um ataque. Esse forte senso protetor entre as duas é característica distinta das narrativas de romance e pode ser observado várias vezes durante a série.

As táticas verbais e visuais usadas pela série para indicar a construção do relacionamento são várias, como demonstradas. A informação visual se dá como essencial e, ao tratar-se de uma animação, os detalhes são ainda mais cruciais, já que cada um foi pensado cautelosamente. São muito importantes as expressões faciais das personagens, incluindo os olhos cintilantes, o rubor, os sorrisos; as trocas de olhares; o repetido contato corporal e até mesmo pequenos detalhes como a troca de vestuário entre as duas, como visto abaixo:

Um ponto importante de se notar é a frequência desse subtexto lésbico. Pode-se observar em obras como “The Same Thing We Do Every Night”: Signifying Same-Sex Desire in Television Cartoons” de Jeffery Dennis (2003) que conotações homossexuais sempre estiveram presentes nas animações, mas esparsas em poucos episódios, sem conexão e nunca levadas a sério. Em Hora de Aventura, a ambiguidade nunca está presente para propósitos cômicos e o que em primeira instância poderia ser interpretada como somente amizade platônica entre duas garotas, se tornou a cada episódio um claro relacionamento lésbico. É reconfortante ver também como o relacionamento delas se torna central em vários episódios, tendo importância e impacto no enredo.

Pesquisas têm demonstrado um acréscimo de personagens LGBT+ nos programas de televisão, que, no entanto, ainda são constantemente mal retratadas e estereotipadas [2]. Outro diferencial da série analisada é, portanto, ter personagens centrais e complexas que são queer e não são definidas por sua sexualidade. É importante ter um casal lésbico bem construído em um desenho popular como Hora de Aventura. “A televisão ainda é a forma mais ampla de difusão de conteúdo cultural, que atrai mais capital e atenção da mídia” (PULLEN, 2014, p. 146) e um canal como o Cartoon Network, que vai ao ar em centenas de países, tem um alcance enorme, principalmente entre o público jovem.

Tendo em vista que a animação é historicamente vista como um produto infantil e que Hora de Aventura de fato foi inicialmente pensada para um público infanto-juvenil, surgem complicações de natureza moralista. Como apontado por Sean Griffin em “Pronoun Trouble: The Queerness of Animation”, sempre houve um discurso que acusa de perversão das crianças a presença de conteúdo homossexual, mesmo que implícito, em animações. Esse conteúdo, no entanto, é essencial para o público infanto-juvenil, uma vez que “diferente dos heterossexuais, adolescentes lésbicas e gays são a única minoria social que precisa aprender a lidar com uma identidade estigmatizada sem apoio direto e exemplo dos pais e família” (RYAN, FUTTERMAN, 1998, p. 9).

Personagens queer legitimam a realidade de crianças e adolescentes que se sentem invisíveis e atacadas. Quando adolescente, Hora de Aventura foi essencial para mim nesse quesito e, através da identificação, me proporcionou aceitação e um senso de pertencimento. Os fãs, ao se verem nessas personagens, encontram formas de expressar sua sexualidade e criam uma comunidade online, que proporciona apoio mútuo.

Estamos vivendo um momento que deve ser celebrado, em que as animações vêm quebrando barreiras de representatividade queer, direcionando seu diálogo para o público infanto-juvenil e reconhecendo sua importância. O que começou em 2011, com uma música em Hora de Aventura, se tornou uma tendência entre os desenhos estadunidenses e teve significantes sucessores como, dentre outros, A Lenda de Korra (Michael Dante DiMartino, Bryan Konietzko, 2012–2014), Gravity Falls (Alex Hirsch, 2012–2016), Clarêncio, o Otimista (Skyler Page, 2014–2018) e, claro, Steven Universo, que recentemente sediou o primeiro casamento “lésbico” em uma animação para televisão.

Notas

  1. Traduções de minha autoria.

2. COOK, Carson. “A Content Analysis of LGBT Representation on Broadcast and Streaming Television”. UTC Scholar, Honors Theses, 2018.

Referências bibliográficas

DYER, Richard. Only Entertainment. London: Routledge, 2002.

DENNIS, Jeffery. “The Same Thing We Do Every Night”: Signifying Same-Sex Desire in Television Cartoons”. Journal of Popular Film and Television, 2003.

PULLEN, Christopher. Queer Youth and Media Cultures. Palgrave Macmillan, 2014.

GRIFFIN, Sean. “Pronoun Trouble: The Queerness of Animation”. In: BENSHOFF, GRIFFIN. Queer Cinema: the film reader. New York: Routledge, 2004, p. 105–118.

RYAN, Caitlin; FUTTERMAN, Diane. Lesbian and Gay Youth: Care and Counseling. New York, NY, US: Columbia University Press, 1998.

--

--