Paraíso (Queer) Perdido: notas sobre o camp, o brega e as performances drag

Resumo: O recém-lançado Paraíso Perdido (Monique Gardenberg, 2018) é recheado de elementos camp. Cenários, figurinos, personagens e a incrível trilha sonora romântica brega tornam o filme um verdadeiro paraíso queer. Este texto pretende analisar esses elementos, focando em Angelo (Julio Andrade) e principalmente, na drag queen Imã (Jaloo) e suas deliciosas performances.

Assista ao trailer do filme

Paraíso Perdido, escrito e dirigido por Monique Gardenberg (Ó, paí, ó) é cativante desde o primeiro minuto. Na cena de abertura, o público é saudado pelo “tremendão” Erasmo Carlos, que convida o espectador a entrar na boate que dá nome ao filme anunciando que o Paraíso Perdido é “o lugar para aqueles que sabem amar”. E o amor é definitivamente o tema central do filme, é o laço que liga cada uma das personagens.

Para entrar no clima do filme e entender um pouco da trama e da relação entre as personagens e depois podermos mergulhar de vez na análise dos elementos queer e camp presentes, convido o leitor a dar play na playlist do Spotify (que contém as músicas originais, não as versões do filme, infelizmente) e ler a sinopse oficial extraída do site da Vitrine, distribuidora do longa.

Dono da boate Paraíso Perdido, o patriarca José (Erasmo Carlos) faz de tudo para garantir a felicidade de seu clã: os filhos Angelo (Júlio Andrade) e Eva (Hermila Guedes), o filho adotivo Teylor (Seu Jorge) e os netos Celeste (Julia Konrad) e Imã (Jaloo). Unida pela música e por um amor incondicional, a excêntrica família encontra forças para lidar com seus traumas cantando clássicos da música popular romântica e atrai a curiosidade do misterioso Odair (Lee Taylor), um policial que cuida da mãe surda, uma ex-cantora (Malu Galli).

Antes de destrinchar os elementos queer e camp presentes no filme, é importante definir esses conceitos, algo não muito fácil por serem palavras sem tradução direta para o português e que carregam um certo nível de subjetividade. Guacira Lopes Louro faz um bom resumo do que é o queer na sinopse de seu livro “O corpo estranho: Ensaios sobre sexualidade e teoria queer”:

Queer é tudo isso: é estranho, raro, esquisito. Queer é, também, o sujeito da sexualidade desviante - homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis, drags. É o excêntrico que não deseja ser integrado e muito menos tolerado. Queer é um jeito de pensar e de ser que não aspira ao centro e nem o quer como referências; um jeito de pensar que desafia as normas regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da ambiguidade, do entre lugares, do indecidível. Queer é um corpo estranho que incomoda perturba, provoca e fascina (LOURO, 2004).

Já o camp é um conceito ainda mais complicado de se definir. Em “Notes on Camp”, Susan Sontag pontua logo na primeira nota que “Camp é um certo tipo de esteticismo. É uma maneira de ver o mundo como um fenômeno estético” e ainda afirma na nota número 8 que “Camp é uma visão do mundo em termos de estilo — mas um tipo particular de estilo. É o amor pelo exagerado, por aquilo que está “off”” (está “fora”, desligado). Jack Babuscio enxerga o camp como algo além de uma categoria estética, um estilo, mas um termo capaz de descrever os elementos criados a partir de uma sensibilidade gay, definida por ele em seu texto “Camp and The Gay Sensibility” como “uma energia criativa refletindo uma consciência que é diferente do mainstream” (p. 118), do padrão. Babuscio aponta como os quatro elementos básicos do camp: a ironia, o esteticismo, a teatralidade e o humor.

Imã (Jaloo) e Pedro (Humberto Carrão) no camarim da boate

Tendo em mente esses conceitos, podemos pensar nas características que fazem de Paraíso Perdido um filme queer com elementos camp, a começar pela ambientação, pelos cenários, em especial o da boate. A direção de arte de Valdy Lopes, juntamente com a fotografia de Pedro Farkas, criam um ambiente colorido, reluzente, cheio de brilho, com toques de kitsch (esse especialmente no camarim de Imã). Os exageros presentes no cenário da boate, com cores saturadas e o uso de luzes coloridas e iluminação neon criam um ambiente campy. Achei interessante me deparar no texto de Sontag, quando ela define Art Nouveau como camp, com a afirmação de que nessa arte “tipicamente transformam uma coisa em outra coisa: elementos para iluminação na forma de plantas florescentes” (nota 8) e ao rever o trailer do filme encontrar uma luminária que é exatamente em forma de uma planta florescente — apesar de não ser uma luminária Art Nouveau.

Figurinos de Angelo (Julio Andrade)

Esses excessos, muitas vezes lidos como algo cafona ou brega, dão uma identidade visual para o filme, e são um pano de fundo perfeito para as músicas românticas e os figurinos de Cássio Brasil. Segundo Sontag: “A marca do Camp é o espírito da extravagância. Camp é uma mulher andando com uma roupa feita de três milhões de penas” (nota 25). Extravagância é o que vemos nas roupas das personagens que se apresentam na boate. Angelo (Julio Andrade) tem figurinos maravilhosos, desde um felpudo casaco de pele até uma camisa de couro de cobra verde (usado com uma cintilante camisa verde por baixo) e uma camisa florida combinando com uma jaqueta vermelha com estampa de onça. É interessante e incomum ver um personagem heterossexual vestindo roupas tão extravagantes. Outra personagem com figurinos deslumbrantes é Imã (Jaloo). Vestidos de tule, renda, materiais metalizados, bordados, brilho, cores fortes, perucas de todo tipo e até uma inspiração em Marilyn Monroe compõem o visual da drag. Jaloo aparece “montado” praticamente o filme todo. Até quando não está in drag seu figurino é andrógino, puxado mais para algo socialmente lido como feminino (e motivo de conflito com seu interesse amoroso).

Alguns dos looks de Imã (Jaloo)

Se o amor é o tema central de Paraíso Perdido, a música é o coração. Com direção musical de Zeca Baleiro, a trilha sonora, formada majoritariamente por canções populares românticas brasileiras dos anos 1970 e 1980, conduz a trama e é responsável por criar a empatia do espectador com a história — até mesmo em mentes mais conservadoras que possam ter problemas com cenas de sexo entre casais homossexuais.

Suzanne Woodward aponta em seu texto “Taming Transgression” a importância da música na espectatorialidade de um filme, afirmando que a “música provê continuidade através dos planos e cenas, construindo coerência e unidade” (p. 117) e citando a autora Claudia Gorbman, diz que a música vai além, “funcionando para embalar o espectador em um estado de despreocupação (menos crítico, menos desconfiado)” (p. 58). Talvez esse seja um dos motivos pelos quais as velhinhas do Estação saíram achando o filme lindo.

Teylor (Seu Jorge) e Imã (Jaloo) interpretam “Tortura de Amor”, de Waldick Soriano

A trilha sonora conta com 20 músicas, sendo que 13 delas são interpretadas pelos atores com novos arranjos no palco da boate para uma plateia diegética. Outras músicas tocam diegeticamente ao fundo das cenas, às vezes com os atores cantando junto, como é o caso de “Minhas Coisas”, na voz de Odair José, que Julio Andrade acompanha criando um dos melhores momentos de Angelo no filme. Odair, ídolo da canção popular brasileira da década de 1970, autor da infame “Pare de tomar a pílula”, é inclusive homenageado por Monique Gardenberg que usa o nome do artista para batizar dois de seus principais personagens: José, o patriarca e Odair, o policial contratado como segurança.

Para justificar minha ideia de que a trilha sonora de Paraíso Perdido pode ser lida como queer e camp, trago uma citação da introdução do “Almanaque da música brega”, intitulada “O que é brega e o que não é…”:

Sempre que nos referimos a uma determinada música ou artista como brega, colocamos ali não só um rótulo, mas também um bocado de experiência pessoal, expectativa e um pouco de preconceito. O rótulo brega, para alguns, designa algo de mau gosto, malfeito, de pouca inteligência ou mesmo esforço intelectual.(…) O rótulo brega pode ser transitório e dirigido a alguém em determinados momentos e outros não. Temos assistido, nos últimos tempos, a vários artistas que, durante os anos 1970 e 1980, eram incluídos na lista de artistas bregas e que hoje passaram a patamar de cults. Na realidade, a música desses artistas não mudou. O que se transformou foi a maneira como o público vê seu trabalho. O brega tornou-se mais aceito e transformou-se definitivamente em um estilo musical palatável e bem-humorado (CABRERA, 2007).

Ora, se o ser queer é estranho, aberrante, desviante da norma, como já definido anteriormente, então podemos enxergar um claro paralelo com esse tipo de música. O sofrimento romântico é retratado nas letras das canções brega de forma exagerada e, colocado junto à melodia dessas músicas, criam um estilo bem-humorado, até ironicamente engraçado — você ri e chora do sofrimento. Sendo o humor, a ironia e o exagero características do camp, porque não dizer que as canções brega têm um quê de camp? Busco no texto de Susan Sontag a seguinte citação (nota 31):

É por isso que tantos objetos apreciados pelo gosto Camp são antiquados, ultrapassados, démodé. Não é a predileção por aquilo que é antigo enquanto tal. É simplesmente porque o processo de envelhecimento ou deterioração consente o distanciamento necessário — ou desperta uma simpatia necessária. (…) O tempo libera a obra de arte da relevância moral, entregando-a à sensibilidade Camp. (…) as coisas são campy não quando envelhecem — mas quando passamos a nos envolver menos com elas e podemos apreciar, em vez de nos sentirmos frustrados por isso (SONTAG, 1964).

Paraíso Perdido faz exatamente isso: ressignifica um estilo musical tido como antiquado, fora de moda (se é que já esteve), e faz com que o público o aprecie. Cabrera exalta esses artistas brega, muitas vezes subestimados e rotulados de cafonas, os chamando de “artesãos da música”. “Eles lapidam suas rimas e seus arranjos com os sofrimentos da alma e do corpo, destilando em palavras os anseios do coração e alcançando, com isso, um público ávido por canções honestas e verdadeiras.” As personagens do filme fazem uso das canções para expressar no palco seus sofrimentos, angústias e anseios. As músicas cantadas por Angelo, por exemplo, fazem total paralelo com a história dele. “Nada mais importa agora/você foi embora, eu fiquei tão só” (trecho de “De que vale ter tudo na vida”, originalmente cantada por José Augusto) expressa bem a maior dor de Angelo: a perda da mulher amada que o abandonou.

Angelo (Julio Andrade) canta “Não Creio em Mais Nada”, de Paulo Sérgio

Pode-se dizer que os novos arranjos modernizaram um pouco as músicas, deixando-as menos datadas e até menos “brega”, e assim tornando-as menos camp. Mas essa pequena falha é redimida, pois os arranjos são realmente bons, e as interpretações dos atores/cantores são fortes e precisas. Não enxergo a escolha por novos arranjos como uma decisão deliberada para agradar o público atual, mas sim para trazer a personalidade das personagens ao que elas estão cantando. Além disso, as músicas que aparecem tocando ao fundo de cenas com seus intérpretes originais mantém o arranjo “brega”.

Mas o que mais faz Paraíso Perdido ser um filme queer é a presença, ou melhor, onipresença de Imã. Se o amor é o tema central e a música é o coração, Imã é a alma do filme. Com sua ternura e resiliência, a personagem encanta e cativa o público. É Imã quem tem mais números musicais (seis dos 13 interpretados por atores), além de ser a figura maior e central no pôster de divulgação. E é de Imã o primeiro número musical do filme.

Poster do filme Paraíso Perdido

Em frente a uma cortina roxa e iluminada por uma luz avermelhada, com um vestido de tule em tons de rosa, peruca castanha e franjinha, ela canta “Impossível Acreditar Que Perdi Você”, de Márcio Greyck. Logo rola uma troca de olhares entre ela e Pedro (personagem de Humberto Carrão) e em seguida a canção diz “venha me dizer sorrindo que você brincou/e que ainda é meu, só meu o seu amor”. Uma clara relação entre os dois já é estabelecida. Num primeiro momento não fica claro como Imã se identifica. Mas outro trecho da música — “eu já não consigo mais viver dentro de mim/e viver assim é quase morrer” — pode ser lido como um desabafo de Imã por sua necessidade de performar outro gênero, que viver apenas como homem não lhe é suficiente.

Algumas cenas à frente, depois que Imã é agredido na rua e Odair (personagem de Lee Taylor) o trata no feminino, ainda de vestido ele responde: “Pode não parecer, mas eu adoro ser homem”. Imã não é, portanto, uma pessoa trans, é um artista drag. Segundo a definição de Jaqueline Gomes de Jesus:

Transformista ou Drag Queen/ Drag King: Artista que se veste, de maneira estereotipada, conforme o gênero masculino ou feminino, para fins artísticos ou de entretenimento. A sua personagem não tem relação com sua identidade de gênero ou orientação sexual (JESUS, 2012, p. 10).

E apesar de se identificar como homem, as outras personagens (e até mesmo a direção de Monique) ainda a tratam de forma ambígua. José, ao contratar Odair para ser segurança de Imã diz: “Ela é como um filho pra mim”. Na cena da sala de espera do hospital, depois da segunda agressão, Monique Gardenberg utiliza um plano/contra-plano com homens de um lado e mulheres do outro, colocando Imã no lado das mulheres. Um detalhe sutil, porém muito significativo.

Gosto também da cena em que Imã está dançando toda “rebolativa” em uma academia de boxe enquanto vários machos truculentos treinam em volta. Se a boate é um espaço queer por excelência, a academia é “queerificada” pela presença de Imã, mesmo ele estando out of drag. Sobre a arte drag, Igor Amanajás pontua:

Por excelência, essa forma artística foi vista por muitos e por um longo tempo como uma não-arte ou até como uma forma banal, descartável e, no mal sentido da palavra, popular. Designados a se restringirem aos guetos em que a comunidade LGBTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) frequenta, os artistas drag queen hoje alcançam um espaço mais expandido, seja nos meios de comunicação e propaganda em massa ou no cenário artístico (AMANAJÁS, 2015, p. 1–2).

Levando em conta tudo o que foi dito até agora, fica claro que a arte drag é camp, pois é um produto majoritariamente queer, antes visto como marginal. É cheia de excessos e também cheia de humor e ironia, mesclando masculino e feminino. Assim como a música brega foi ressignificada em Paraíso Perdido, a arte drag tem se tornado cada vez mais mainstream. É só parar para pensar no sucesso do reality show RuPaul’s Drag Race (RuPaul Charles, 2009-presente) e da cantora Pabllo Vittar.

Imã não tem um “nome de drag”, ou melhor, usa seu próprio nome, que é tão andrógino quanto ela. Segundo Sontag, “O andrógino é seguramente uma das grandes imagens da sensibilidade Camp. Exemplos: as figuras lânguidas, esguias, sinuosas (…), os corpos delgados, fluidos, assexuados” (nota 9). Assim como sua personagem, Jaloo também é uma figura andrógina de corpo esquio e delgado. Nascido Jaime Melo Junior, criou Jaloo a partir da junção dos dois primeiros nomes. Em sua página oficial do facebook, informa seu gênero como Plural (neutro) e em entrevista para o site Glamurama, fala de Jaloo na terceira pessoa “porque ele é um projeto”. Seria então a persona Jaloo de um gênero neutro performada pelo homem Jaime, assim como Imã performa sua feminilidade in drag?

Eva (Hermila Guedes) e Milene (Marjorie Estiano ❤)

Em um diálogo com Angelo, quando os dois estão escutando “Tango para Tereza” na voz de Angela Maria, Imã questiona sua capacidade de interpretar a música pelo fato de o interlocutor ser uma mulher. Angelo então explicita que o tango está sendo cantado por uma mulher para outra mulher. Nem preciso explicar porque “Tango para Tereza” se torna naturalmente uma música queer (apesar de Angela Maria ser uma mulher heterossexual). Queria fazer um parênteses aqui para destacar a relação lésbica presente no filme. Na cadeia, Eva (Hermila Guedes), que é mãe de Imã, se apaixona por Milene (Marjorie Estiano ❤) e depois pede ajuda de Odair para tirá-la da cadeia. Eva acaba se envolvendo também com o policial e abre margem para uma discussão sobre poliamor, presente num diálogo entre Imã e Odair em que ela pergunta se ele acha possível alguém amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Essa discussão não vai pra frente, mas é interessante ver como essas relações são tratadas com naturalidade e não viram tabu dentro da família.

É durante a cena de “Tango para Tereza” também em que o roteiro dá uma pequena derrapada e acaba colocando um discurso um tanto problemático na boca dos dois personagens queridos. Ao ver Imã com dores após ser agredido, Angelo diz: “As pessoas não te odeiam por aquilo que você é, mas por aquilo que elas não conseguem ser” e ela responde “Se desse nos jornais com foto e tudo, se estivesse lá: dois enrustidos são presos por espancar cantor travesti, eu queria ver o que ia acontecer, eu queria ver”. É muito estranho colocar na boca de Imã essa fala que perpetua a ideia errada de que o homofóbico é assim porque tem medo da própria homossexualidade, culpabilizando os LGBT+ pela homofobia que os vitimiza.

Odair (Lee Taylor) e Imã (Jaloo) têm um breve diálogo sobre poliamor

Para finalizar, quero destacar mais duas performances musicais de Imã. A primeira é quando ela canta uma versão em português de “You’re So Vain” de Carly Simon. Essa é uma das canções fora do repertório de músicas populares românticas brasileiras do filme, mas que pode muito bem ser lida como um “brega internacional”. Ao ser traduzida, ganha uma roupagem única e bem-humorada. “You’re so vain”, cuja tradução literal seria “Você é tão vaidoso”, se torna “Você não vem”. Na diegese do filme essa versão é feita por Pedro, professor de inglês e interesse amoroso de Imã. Com um tubinho rosa-choque todo brilhante, batom pink e peruca loira platinada lisíssima, a drag canta:

“Você entrou na boate como se entrasse no seu lindo iate
O seu cabelo caiu sobre um olho só e sua echarpe da cor de abacate
Você então se olhou no espelho, oh! dançou pra si como num mundo à parte
E todas as minas crentes que eram suas, eu também

Você não vem, você tão vaidoso assim, não, você não vem
Não pense que é pra você essa canção, não é, não é não”

A letra é engraçada, e a rima de iate com abacate é genial. A original já tinha uma ironia clara (mantida na tradução) com a locutora dizendo “você é tão vaidoso que deve estar pensando que essa canção é sobre você, mas não é” — quando na verdade é e ela está cantando justamente pra ele! Essa performance marca um momento divertido e de cumplicidade e aproximação entre Imã e Pedro. No começo do filme, Pedro está confuso com seus sentimentos, chega a empurrar Imã na rua, não gosta de ser visto ao lado dele in drag. Ao longo do filme ele passa a aceitar seus sentimentos por Imã e se entregar. Em certo momento descobrimos que ele tem uma filha, que é mostrada no filme, mas é um fato jogado meio aleatoriamente no roteiro, sem uma grande repercussão. Pedro tem uma certa evolução, mas não é um personagem muito bem desenvolvido — nem dá tempo, são MUITOS personagens e muita trama pra um roteiro de pouco mais de duas horas dar conta totalmente.

Imã (Jaloo) canta “Amor Marginal” de Johnny Hooker

O clímax da paixão entre Imã e Pedro chega durante a performance da canção mais moderna da trilha sonora. “Amor Marginal”, de Johnny Hooker (outro artista LGBT+ atual de destaque) ganha uma roupagem sensual, intensa e orgástica na interpretação de Jaloo, que parece transar com a música. Com um visual todo metálico, vestido dourado bem cavado, unhas e boca douradas e peruca platinada, Imã canta quase o tempo todo de olhos fechados. Começa a passar as mãos pelo corpo, chega a tirar uma das alças do vestido deixando um mamilo à mostra, enquanto é assistida por Pedro. Até que a cena no palco começa a se intercalar com a cena de sexo entre Imã e Pedro, filmada através de um espelho (e com direito a lambidas e bundinha, mas nada super provocativo, a não ser por se tratar de um sexo entre dois homens). Se fosse criticar alguma coisa, além da atuação estranha de Carrão especificamente nessa cena (que caras e bocas são essas?), seria o fato de reiterar a ideia de que o gay afeminado é o passivo e o masculinizado é o ativo. Fora isso, a cena é linda. O sexo banal surgido desse amor marginal vira poesia. Quando a transa termina, termina também a música, em um suspiro de Imã no palco.

No final não sabemos se a relação entre Imã e Pedro foi pra frente. Na verdade, o filme em si não tem um final fechadinho. Ele termina em um momento emocionante e de expectativa de reencontro entre amores do passado, entre uma mãe e uma filha. É um final bonito, poético, delicado ao som de “Todo Sujo de Batom” na voz de Julio Andrade. Confesso que todas as três vezes que vi o filme o final me arrepiou e encheu meus olhos de lágrimas. Lágrimas de alegria. Deixa um gostinho de quero mais, pelo menos eu fiquei com vontade de continuar acompanhando a história dessa família. Mas uma coisa é certa: nunca faltou e nunca vai faltar amor! É legal ver num filme um personagem LGBT+ ser aceito, amado e protegido por toda a sua família. Em nenhum momento a sexualidade de Imã é vista como problema por eles. O ambiente da boate é seu Paraíso, um lugar seguro. O verdadeiro inferno é lá fora.

Celeste (Júlia Konrad), José (Erasmo Carlos) e Imã (Jaloo) cantam “Quem Tudo Quer Nada Tem”

Monique Gardenberg trouxe à vida personagens fascinantes, em uma história novelesca embalada por uma trilha sentimental nas vozes de um elenco competente. Paraíso Perdido, mesmo recheado de elementos queer em seu cenário, figurino e personagens, conquista um público variado, desde o saudosista que carrega a antiga canção popular romântica nacional na memória afetiva, até aqueles que, como eu, acabaram descobrindo essas canções através do filme.

Referências bibliográficas

AMANAJÁS, Igor. “Drag queen: um percurso histórico pela arte dos atores transformistas”. Revista Belas Artes, São Paulo, 16a ed. ago. 2015. p.1–2.

BABUSCIO, Jack. “Camp and The Gay Sensibility”. In: BENSHOFF, Harry; GRIFFIN, Sean. Queer Cinema, The Film Reader. New York: Routledge, 2004.

CABRERA, Antonio Carlos. Almanaque da música brega. São Paulo: Matrix. 2007.

GORBMAN, Claudia. Unheard Melodies: Narrative Film Music. Bloomington: Indiana University Press, 1987. p. 58

JESUS, Jaqueline Gomes de. “Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos”. Brasília: Publicação online, abr. 2012. Disponível em: http://www.sertao.ufg.br/up/16/o/ORIENTA%C3%87%C3%95ES_POPULA%C3%87%C3%83O_TRANS.pdf?1334065989. Acesso em 12 de jul. 2018.

LOURO, Guacira Lopes. O corpo estranho: Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

SONTAG, Susan. “Notes on ‘Camp’”. In: Camp: Queer Aesthetics and the Performing Subject: A Reader. Edinburgh University Press, 1999. p. 53–65.

WOODWARD, Suzanne. “Taming transgression: Gender-bending in Hairspray (John Waters, 1988) and its remake”. New Cinemas: Journal of Contemporary Film, Volume 10, Numbers 2 & 3, 2012.

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Guilherme Bianco
Musicais: Utopias (Queer) no Audiovisual

Vejo séries. Muitas séries. E cozinho. E leio. Às vezes escrevo. Estou tentando escrever mais. Mas estou sempre vendo séries.