“Priscilla, a Rainha do Deserto”: representação queer e a questão da misoginia gay
Resumo: Priscilla, a Rainha do Deserto (Stephan Elliott, 1994) causou controvérsia, sendo considerado conservador e misógino por alguns autores. O presente texto busca entender de onde vem essa interpretação, bem como se ela realmente possui fundamento.
Priscilla, a Rainha do Deserto (The Adventures of Priscilla, Queen of the Desert) é um filme de 1994, dirigido por Stephan Elliott. O filme é uma comédia dramática que reinterpreta e queerifica o road movie. Tick (Hugo Weaving) é uma drag queen de Sidney, conhecida como Mitzi del Bra, que é chamada por sua esposa para fazer uma performance em Alice Springs. Ele convida sua amiga Bernadette (Terrence Stamp), uma mulher trans cujo marido faleceu recentemente, e Adam Whitely (Guy Pearce), uma drag queen mais nova chamada Felicia Jollygoodfellow, para participar da performance. O filme segue as personagens enquanto atravessam o deserto australiano, usando das ideias de crescimento e epifanias pessoais que são comuns ao gênero do road movie para apelar não apenas à uma audiência gay, mas ao público mainstream também.
O filme está inserido no movimento que foi chamado “Glitter Cycle” nos anos 90, quando artistas australianos adotaram a cultura popular para não ficarem confinados apenas aos círculos intelectuais. A adoção de uma estética camp dentro desse contexto de democratização cultural condiz muito com a busca por filmes mais comerciais, que pudessem engajar o público. Assim, artificialidade e estilização estão presentes no filme desde o início, com a performance em drag de Tick/Mitzi. A música escolhida, “I’ve never been to me” (Charlene), expõe uma dúvida do personagem em relação à sua própria identidade. A performance é glamourosa e ultra feminina, mas termina com um bêbado jogando uma lata de cerveja na cabeça de Mitzi. Esse ato de agressão serve para reiterar a posição marginalizada da personagem, o que ajuda a estabelecê-la como “artista inadequada”, e justifica a sua jornada através do deserto em busca de um público verdadeiramente receptivo e de conhecimento pessoal.
Outros dois personagens se juntam a ela: Bernadette — uma mulher transgênero solitária e melancólica que perdeu o marido quando ele sufocou ao tentar descolorir o cabelo — e Adam — um garoto mimado que mente para a mãe para conseguir que ela compre um ônibus para a viagem, dizendo que talvez isso o ajude a superar essa “fase” pela qual está passando. Alienada da família depois da cirurgia, Bernadette quer ser reconhecida e amada como mulher, mas pensa em si mesmo como sexualizada e ao mesmo tempo, indesejável — nas suas palavras: “um símbolo torto de status”. Ela inicialmente recusa o convite para participar da viagem, mas acaba cedendo. Por sua vez, Adam tem um temperamento difícil e briga constantemente com Bernadette, referindo-se a ela por seu nome de batismo e se recusando, repetidamente, a tratá-la como legitimamente mulher.
Após batizar o ônibus, o grupo segue pelo deserto australiano, um ambiente que se mostra imediatamente hostil. O carro é vandalizado quando param numa pequena cidade e (devido a uma aposta perdida) Mitzi e Felicia saem pela cidade em drag. Esse ato, bem como a decisão de frequentar o bar apesar da ameaça sempre presente de homofobia, é um ato transgressor, de não conformação e que desafia a heteronormatividade, levando à uma reação violenta da população local.
O ônibus é pichado com a frase “AIDS fuckers go home!”, mas o camp evita que esse momento se torne muito sério. Esse episódio é recuperado de maneira simbólica e estilizada logo em seguida, quando seguem pelo deserto com Adam/Felicia sentado no teto do ônibus, vestido com um figurino prateado maravilhoso contrastando com o cenário, parodiando “La Traviata” e Maria Callas, em uma performance triste porém, de certa forma, triunfante sobre um símbolo do seu próprio ostracismo. Além da exuberância dos figurinos, o ônibus também é aproveitado plasticamente dentro da estética do filme ao ser pintado de lavanda, oferecendo mais um elemento de contraste visual com a beleza monótona do deserto.
A jornada das três é uma tentativa de se afastar dessa posição marginalizada que ocupam, mas ela acaba sendo reiterada por momentos de violência homofóbica: o grupo é continuamente antagonizado durante a viagem — em dado momento quando o ônibus quebra, um casal que poderia resgatá-los os abandona à beira da estrada. Porém, nem tudo é ruim, e graças à ajuda de aborígenes (que surgem numa sequência bastante bizarra, e para quem performam Gloria Gaynor), as queens conseguem a ajuda de um mecânico, Bob (Bill Hunter), a última pessoa a se juntar ao grupo na sua viagem. Um hippie velho abandonado pela esposa Cynthia (Julia Cortez), ele se sente atraído por Bernadette.
A violência escala principalmente quando Felicia, ignorando o aviso de Bob e das outras queens, decide ir a um bar e flertar com um dos mineiros. Ao perceber que não se trata de uma mulher “de verdade”, ele se sente enganado e torna-se extremamente violento. Com a ajuda dos outros homens do bar, ele agride Felicia, mas Bernadette chega a tempo de impedir que a estuprem. A princípio, a reação de Bob, que estava presente no bar, é passiva, fingindo não conhecer Felicia ao vê-la. Mesmo quando por fim tenta impedi-los, Bob consegue apenas oferecer uma resistência passiva, sendo Bernadette aquela dentre todos que se mostra capaz de força e violência.
As personagens são mostradas como pessoas isoladas e inadequadas, ambos incapazes de se adequar aos papeis de gênero tradicionais: no caso de Bernadette, por ser uma mulher trans de aparência “masculina”; no de Tick, essa inadequação provém de uma incapacidade de conciliar sua sexualidade com o seu papel como pai e marido. Ambos os personagens entendem o conceito de família como uma unidade repressora e não conseguem negociar a sua identidade com o papel que devem ocupar, como exemplificado na conversa que tem no restaurante. Enquanto Bernadette aceita sua posição, Tick sente vergonha de sua sexualidade. Isso permeia a sua relação com o seu filho, o que resulta nele tentando esconder a sua profissão do menino. Ele vai tão longe nessa tentativa de performar masculinidade que chega a se fantasiar com roupas tradicionalmente masculinas.
A aceitação do seu filho é rápida e natural, pois Benji (Mark Holmes) já sabe sobre a identidade de seu pai: sua mãe, Marion (Sarah Chadwick), é uma mulher prática que se recusa a esconder essas características de seu filho. Isso ajuda Tick a entender que a sua homossexualidade não o torna necessariamente inapto como pai, e lhe dá a confiança necessária para realmente assumir a sua responsabilidade em relação a criança (Marion pede que cuide do menino por uns tempos). O comportamento do menino também tem um efeito positivo em Adam/Felicia, ajudando-o a amadurecer.
O filme encerra com a separação do grupo: Bernadette e Bob ficam em Alice Springs, trabalhando para Marion e tentando estabelecer um relacionamento sério, enquanto Tick e Adam voltam para Sidney acompanhados por Benji. A última cena é uma performance drag bem sucedida em Sidney, um retorno para casa, dessa vez com o apoio familiar (Benji está assistindo dos bastidores). A remoção de sua peruca e de seus peitos, significadores femininos, restabelece a identidade masculina do personagem Tick.
É importante notar também que o filme, embora faça uso do artificio do flashback, não tenta justificar a homossexualidade ou a transexualidade dos personagens, subvertendo e satirizando a ideia de que haja uma justificativa. As experiências relatadas tangenciam o assunto, e essa abordagem mais simpática à experiência gay ajuda a desestigmatizar essa figura. No caso de Adam, o filme brinca com o estereótipo da homossexualidade como nascente de uma experiência traumática (como abuso sexual infantil) somente para subvertê-lo no último momento. No caso de Bernadette, a sua identidade de gênero simplesmente precede seu relato — o flashback a mostra como criança trocando seu caminhão por uma boneca.
O deserto enquanto paisagem é simbólico, e recupera um imaginário Judaico-Cristão, representativo da jornada espiritual de um indivíduo buscando resolver suas questões existenciais, um tema repetido no cinema e imaginário australiano (LE GUELLEC-MINEL, 2017). O filme usa e ao mesmo tempo subverte esse símbolo, através do camp e da comédia. Enquanto Tick está viajando para reencontrar a família que abandonou e Bernadette tenta lidar com o luto, os motivos de Adam para participar da viagem são completamente absurdos (seu sonho é escalar Kings Canyon vestido em drag). Além disso o filme justapõe o sublime ao mundano: ao invés de uma grande epifania, após chegar ao topo da montanha os personagens imediatamente se cansam e decidem ir para casa. Assim, esvaziam o grande gesto de significado e o tornam puramente estético.
Uma crítica importante e que precisa ser feita é que, apesar de o filme trabalhar questões de identidade de gênero e desafiar ideias de masculinidade, ele ainda reflete um tipo de misoginia: as representações feitas das mulheres que encontram durante a jornada são bem problemáticas, talvez justamente por buscarem se alinhar com a cultura hétero. As mulheres do filme são, muitas vezes, figuras caricatas que não só competem com as drag queens, mas também se opõem à elas.
A mulher de Bob, Cynthia, é um estereótipo racista de mulher asiática, uma noiva sob encomenda que mal fala inglês. É apresentada como dominante na relação dos dois, brincando com a ideia de esposa emasculadora. Ela engana Bob para viver na Austrália mas acaba infeliz com o casamento ao ter que morar no interior. Uma stripper com uma compulsão por se apresentar e que atira bolas de ping pong da vagina, ela finalmente o deixa após ele impedir sua apresentação para os homens da cidade.
Shirl (June Marie Bennet), outra mulher que eles encontram ao parar em uma cidade de mineiros, é particularmente agressiva e tenta impedir que os três sejam servidos em um bar. A personagem homofóbica é codificada como butch ou lésbica pelas suas roupas. Ela tenta expulsar as drags, mas Bernadette responde a ela com sarcasmo e a ridiculariza por sua aparência masculinizada. Esse ato foi visto por uma autora, Susan Barber (em artigo de 1997) como um policiamento da identidade feminina, um posicionamento conservador do filme em relação ao empoderamento feminino e lésbico.
Essa humilhação imediatamente aproxima as drags dos homens presentes no bar, que riem de Shirl. Dessa forma, a mulher é apresentada como apropriadora do lugar de fala masculino, e é imediatamente “colocada no seu lugar”. Isso reforça a hegemonia masculina dentro do filme e permite uma leitura mais conservadora dele, comodificando a cultura queer e conseguindo assim uma melhor aceitação comercial. Dito isso, é difícil acreditar, dentro do contexto do filme, que a personagem esteja sendo humilhada meramente por essa “masculinidade”, sendo mais provável que nesse momento em particular a personagem seja punida por aceitar — e se associar com — uma ideia tóxica e homofóbica de masculinidade. Além disso, a escolha de uma mulher masculinizada para essa função tem provavelmente o intuito de satirizar a violência e ainda expor a transfobia presente mesmo dentro da comunidade LGBT. Essa interpretação se apoia também na fala da própria Shirl, que antes de desmaiar reitera “All I see are female impersonators”, negando, mais uma vez a feminilidade de Bernadette.
Embora exista essa leitura da misoginia no filme e a crítica seja válida, essa análise pode ser excessivamente trans-exclusionária. Ao enfatizar a mudança no tom de voz de Bernadette (que fica mais grave), a autora associa isso à personagem recuperando um privilégio masculino, e assim nega a sua identidade como mulher — de acordo com essa ótica, ela passa a ser apenas um artifício patriarcal para o policiamento feminino. A crítica da representação feminina dentro desse filme não deve excluir a personagem daquilo que a qualifica como mulher. Mesmo que interpretada por um ator cis e heterossexual, a personagem tem significância na sua busca por amor, apreciação e reconhecimento da sua forma de feminilidade.
O filme faz uso da ambivalência e ironia camp para questionar a masculinidade e a hegemonia masculina, mas nunca abandona completamente essa identidade — apenas a articula de “maneira a acomodar o homem gay” — e, em determinados momentos, a retórica do filme se alia à valores conservadores e repressores, diminuindo o papel das mulheres no filme. Ainda assim, o filme tem qualidades, principalmente na forma como apresenta o papel da mulher trans e na forma como cria e desenvolve os personagens em geral. O filme pode não ser completamente transgressor, mas interpretações que o veem simplesmente como misógino e conservador são excessivamente duras, já que a jornada pessoal permite que aconteça uma identificação com os personagens, contribuindo para a visibilidade das minorias homossexuais e ajudando a criar uma representação convincente da comunidade LGBT. Embora faça pouco para subverter as representações tradicionais da masculinidade australiana ou para romper com as ideias preexistentes de identidade e gênero, a obra permite um debate interessante sobre elas.
Referências biliográficas
BARBER, Susan. “The Adventures of Priscilla, Queen of the Desert”. Film Quarterly, Oakland, v. 50, n. 2, p.41–45, maio 2013. Acesso em: 10 jul. 2018.
LE GUELLEC-MINEL, Anne. “Camping it out in the Never Never: Subverting Hegemonic Masculinity in The Adventures of Priscilla, Queen of the Desert”. LISA/LISA, e-journal, v. 15, n. 1, 5 Setembro 2017. Acesso em: 10 jul. 2018
SONTAG, Susan. Notes on “Camp”.(1964)
STRYKER, Susan; WHITTLE, Stephen. The Transgender Studies Reader. New York: Routledge, 2006.
SMITH, Nathan. “The Adventures of Priscilla, Queen of the Desert: Why It Still Survives”. Out Magazine. Disponível em: <https://www.out.com/movies/2014/10/10/adventures-priscilla-queen-desert-why-it-still-survives>. Acesso em: 10 out. 2014.