Vincente Minnelli: Queerificando os gêneros cinematográficos

Resumo: Este texto busca analisar as possibilidades abertas pela forma como Vincente Minnelli se apropriava da semântica de gêneros hollywoodianos variados, explorados na dimensão camp da comédia musical — apropriações que muitas vezes implicavam em provocações que causavam uma cisão dentro da ordem comum às narrativas hegemônicas de cinema.

A Roda da Fortuna (1953)

Partindo da pesquisa de Matthew Tinkcom (2002), são muitos os relatos existentes sobre a presença forte de trabalhadores homossexuais na unidade do estúdio Metro-Goldwyn-Mayer liderada pelo produtor Arthur Freed e concentrada em musicais, principalmente entre as décadas de 1940 e 50 em Hollywood. Dentro deste cenário, a figura de Vincente Minnelli se destaca como um dos principais diretores desse grupo, que comandou diversos projetos e muitos sucessos como Sinfonia de Paris (1951, dir.: Vincente Minnelli) e Gigi (1958, idem), ambos vencedores do Oscar de melhor filme, e que também era objeto constante das fofocas e especulações na época sobre a orientação sexual dos homens da unidade Freed.

Para além de todos os trabalhos de pesquisa e análise resgatando essa história sobre a sexualidade mantida em silêncio de tantos trabalhadores de musicais na chamada “era dourada” do gênero, é importante pensar numa certa categoria de sensibilidade estética própria que Minnelli e vários outros filmes da unidade Freed ajudaram a expandir num modelo de produção com público e alcance tão vastos — o camp. Susan Sontag se dedicou várias vezes a buscar uma definição ampla e justa para essa sensibilidade camp, e entre seus apontamentos está o seguinte: “[o camp] é uma maneira de ver o mundo como um fenômeno estético. […] não se refere à beleza, mas ao grau de artifício, de estilização”¹. A relação dessa sensibilidade com uma forma de expressão queer, então, acaba se dando por esse olhar do artificial sobre normas vigentes, morais e comportamentais, na sociedade:

Somado ao excesso e à teatralidade, o camp se revela por justaposições incongruentes em um dado texto. […] essa prática reflete e ridiculariza as incongruências presentes nas representações e hierarquias de gênero e sexualidade numa cultura heterossexista. […] Resumindo, justaposições incongruentes realçam a diferença, e o camp celebra essa diferença como uma expressão poderosa de subjetividade queer. (PYSNIK, 2014)

Jack Babuscio também explorava essa relação estabelecendo uma ponte direta entre o camp e uma sensibilidade gay. Dizia, por exemplo, que “por mais que o camp seja amplamente uma questão de percepção individual, existe uma unidade subjacente de perspectiva entre gays que dá a algo ou a alguém um sabor característico camp” (p. 119). Da divisão reproduzida pela sociedade entre o que é “natural” (associado à heterossexualidade e a papéis de gênero) e o que não é (homossexualidade, comportamentos subversivos), constrói-se uma polarização que “desenvolve um conjunto duplo de perspectivas e entendimentos gerais sobre como o mundo é e como lidar com isso; para pessoas gays, uma dessas respostas é o camp” (p. 118).

Portanto, não só a estilização dá conta de dimensionar o que é essa sensibilidade, mas também a ideia de uma apropriação afetuosa, muitas vezes irônica de estruturas vigentes no mundo; quebrar uma concepção séria, naturalizada dessas estruturas é uma forma de enxergar o camp que associa-o diretamente ao queer e à sensibilidade gay. É a essa apropriação num contexto de gêneros cinematográficos que vou me ater no restante do artigo.

Seguindo a abordagem sugerida por Rick Altman (1984), os gêneros possuem dois tipos de organização, um a nível semântico (os elementos icônicos e objetivos que identificam um gênero na sua superfície), outro a nível sintático (as características que moldam uma construção de sentido para os elementos de superfície do gênero). Tomando um exemplo dele, a grosso modo, num certo período do cinema americano o cenário desértico, os caubóis e os tiroteios constituiriam a semântica do faroeste, enquanto que a busca pela ordem num mundo tomado pelo selvagem e pela violência constituiria sua dimensão sintática; tais fundamentos poderiam demorar a se unir historicamente, se confundir, ou se desconstruir ao longo das transformações na indústria. Pensando desta forma, os musicais dirigidos por Vincente Minnelli para a MGM, ao menos em sua maioria, mantinham-se fortes na sintática que os musicais haviam remodelado após a Grande Depressão, de, além da consagração da união heterossexual pelo viés romântico, um ideal de valorização da comunidade e também do universo dos entertainers e sua produção de sonhos, ideais que serviam bem aos materiais temáticos e narrativos com os quais Minnelli trabalhava.

No nível da semântica, a presença de elementos icônicos de outros gêneros cinematográficos às vezes era gritante nesses filmes. O Pirata (Vincente Minnelli, 1948), por exemplo, conta a história de um trovador que se passa por um pirata famoso para conquistar a donzela de uma vila no sul do Caribe. Para além da já bastante difundida leitura queer desse filme e da premissa de troca de identidades, trata-se de um musical que joga com certos elementos semânticos de filmes de aventura, em especial o gênero capa-e-espada, como As Aventuras de Robin Hood (Michael Curtiz, William Keighley, 1938) ou A Ilha do Tesouro (Victor Fleming, 1934), ainda que sempre em torno da ideia da farsa.

The Pirate (1948)

O protagonista interpretado por Gene Kelly, por exemplo, por mais farsante e performático que fosse, conservava o ideal do corpo masculino atlético e heroico que orientava as atrações dos filmes capa-e-espada da época, e Minnelli não privava o espectador de prazeres do gênero como o cenário exótico, as tradições orais misteriosas, entre outras características. O elemento da ironia, claro, interrompia muito qualquer tentativa de uma identificação do espectador com o gênero de aventura propriamente, e era um movimento bastante evidente no filme. O próprio Minnelli confirma a intenção camp em sua autobiografia (citada no texto de Stephen Pysnik, pág. 156–157):

“Era uma trama maravilhosamente bem imaginada, eu achava, um musical sem música. Os Lunts, na produção do Teatro Guild de 1943 [que inspirou o roteiro de O Pirata], jogaram com uma farsa improvável de um jeito provável… o único jeito com o qual uma farsa deveria ser executada. Era um ótimo camp, um elemento que não havia sido intencionalmente usado nos filmes até tal momento… Eu digo intencionalmente.” (MINNELLI, Vincente, “I Remember It Well”, 1974, p. 164)

Uma pergunta a se fazer é: o que a ação de vestir com irreverência a semântica de um gênero, como se fosse um entre os vários ornamentos e decorações filmados, pode revelar sobre essa estrutura que constitui o gênero? Inúmeros filmes podem ser utilizados para ilustrar alguma resposta, mas o histórico de Vincente Minnelli é particularmente interessante no diálogo forte com texturas e imaginários diferentes da indústria hollywoodiana pós-crise de 29, nem tanto como um esforço direto de referenciação, mas como uma experimentação entre formas que pudessem chegar no espetáculo mais expressivo, no sonho cinematográfico mais catártico, que parecia ser o norte de muitos de seus filmes.

Já na sua estreia como diretor de longa-metragens com a MGM, Uma Cabana no Céu (Vincente Minnelli, 1943), chamava bastante atenção como a narrativa musical expunha elementos bastante marcados de um conto moral. Presenças religiosas como anjos e demônios se manifestavam em cena, além de uma longa sequência, à altura do clímax do filme, que era ambientada nas escadarias para o paraíso celestial. A trama se desenvolve sobre a jornada de redenção de um homem negro e pobre viciado em apostas, e a materialização de um imaginário cristão sobre virtude, salvação após a morte e valores familiares se faz de forma frontal, explícita.

O escopo de musical, por outro lado, organiza esses elementos na base do humor; a mão camp de Minnelli faz questão de estilizar tudo aquilo, como que expondo, também, o aspecto de criação de estúdio. Para além da decoração farsesca (as asas de algodão dos anjos, o par de chifres bem pequeno e discreto nos demônios, as piadas), o filme deixa muito explícito seu apreço pela performance na presença cômica de astros como John Bubbles, Duke Ellington e Louis Armstrong, aproveitando também o apelo do longa para o vasto público de afro-americanos nas salas de cinema pelos Estados Unidos.

Uma Cabana no Céu (1943)

Não deixa de haver, porém, um diálogo entre a sintática bem-humorada e comunitária do musical (o filme atribui pouco peso ao moralismo da premissa no fim das contas) e a jornada solene de redenção do pecado, característica do conto moral. A abordagem camp de Minnelli devolve aos personagens uma leveza que aproxima o espectador de sua humildade, deleitando-se tanto quanto eles com os prazeres do jazz por exemplo, apesar da narrativa associar tais elementos ao campo pecaminoso (apesar da presença de tantos negros no elenco, o filme não foge de estereótipos racistas da época). Uma Cabana no Céu compreende o conto moral antes como fábula e narrativa figurativa, do que enquanto discurso e expurgação. Uma semântica de gênero apropriada, ou uma sintática reorganizada pela sintática do musical? Será que não poderia ser também uma visão queer, por várias das ironias estabelecidas, sobre a instituição familiar e a moral cristã?

Um ano depois, seria lançado Agora Seremos Felizes (Vincente Minnelli, 1944), um de seus maiores sucessos. Outro musical, com menos números do que Uma Cabana no Céu, e se apropriando desta vez de características do melodrama. A relação com esse gênero é mais difícil de se discutir porque o melodrama é central nas operações narrativas do filme. Minnelli trabalharia com esse gênero várias outras vezes posteriormente, com atores como Kirk Douglas e Robert Walker, e a importância do melodrama na carreira e na reputação do diretor, pode-se dizer, é tão grande quanto a do musical. Não é de se estranhar: pensando em gênese e etimologia, “melodrama” se refere tanto a drama quanto a melodia (“melos”, em grego, significa som).

Ainda assim, cabe uma análise da confluência que se faz entre as sintáticas e semânticas do musical e do melodrama. Geoffrey Nowell-Smith (1977) caracterizou o gênero melodramático a partir da necessidade dessas histórias de acomodar desejos repreendidos de uma classe média frustrada e passional, acumulando problemas e sofrimento que só poderiam ser devidamente expressados pelo excesso — na encenação, na caracterização dos personagens, na trilha sonora… A resolução prática desses problemas na ação não é uma prioridade no gênero. Como tudo é trabalhado então na manifestação de sentimentos pelo meio do excesso, a subjetividade (ou: a localização do ponto de vista íntimo na ação) é um aspecto essencial para se trabalhar dentro dessas narrativas.

Agora Seremos Felizes (1944)

Agora Seremos Felizes realiza essa operação de formas bastante inusitadas no entroncamento com o musical. Sendo este último, novamente, um gênero cuja sintaxe, naquele período de Hollywood, girava em torno da utopia comunitária, trata-se de um universo mais ligado à fantasia coletiva do que ao sofrimento imprescindível ao melodrama. O que Minnelli faz é colocar o tal do excesso nem sempre numa relação direta com interesses subjetivos dos personagens, muitas vezes concentrando todos eles numa catarse comunitária (por exemplo, a sequência com “Skip to my Lou” e “Under the Bamboo Tree” [foto acima] na sala de estar cheia de convidados). A orientação de todos esses elementos se dá num vai-e-vem, um trânsito constante da fantasia coletiva à passionalidade, facilitado pela trama descomplicada no fluxo dramático.

Sobra mais tempo e espaço para Minnelli organizar a narrativa como a extrapolação da memória individual de uma jovem garota de St. Louis, expandindo tal quadro subjetivo para a relação de sua família com um coletivo, um lugar e um ideal de convívio social. O excesso que expurga os desejos em jogo por vezes é projetado pelos números musicais como um delírio performático das emoções vividas pelos personagens na narrativa. A melancolia do melodrama se mantém pela encenação como uma presença intermitente, como nos ecos simbólicos (a melodia da música-tema que faz os personagens lembrarem de “glórias passadas”), e no fim das contas é o sonho impossível de um coletivo que triunfa sobre os problemas acumulados no drama.

O equilíbrio que Vincente Minnelli alcança entre elementos semânticos e sintáticos do musical e do melodrama é tão harmonioso, no próprio fluxo da mise en scène, que não seria imprudente dizer que o diretor encontrou uma certa “fórmula” que ele viria a retrabalhar a cada novo musical que dirigisse — até porque muitos dos elogios aos seus musicais mais prestigiados se referiam ao quanto filmes como Sinfonia de Paris resolviam muito bem o problema da integração dos números musicais na narrativa e no drama. Isso tudo sem perder a sensibilidade gay, da fantasia colorida e afetada, que permitiria tantas leituras queer de autores como Psynik e Steven Cohan.

De uma maneira geral o cineasta se acomodou nesse modelo (ainda que continuasse a variar as tradições culturais às quais delineava sua habitual estilização), e a partir daí seus diálogos mais marcantes com outros gêneros narrativos se deram por momentos isolados de experimentação, que em alguns casos podem ser interpretados até como paródias, “simulações” de gêneros. No próprio Agora Seremos Felizes, há a sequência do Halloween, “protagonizada” por Tootie, a irmã mais nova da personagem de Judy Garland.

Essa sequência funciona quase como uma outra micro-narrativa dentro do filme. Assume-se um novo tom na encenação e na decoração (mais sombras e contrastes e o reflexo de uma fogueira cujo aspecto alaranjado se mantém na sequência até o final), e também a concepção de uma missão e de um objetivo específicos para a personagem de Tootie, demandados pelas outras criancinhas brincando na rua durante a noite de Halloween, constitui uma pequena aventura à parte dentro do arco maior que é a estória da família da garota. O momento funciona dentro do todo pela forma como a sequência se esforça em simular esteticamente o universo pessoal e encantado de uma criança se aventurando no Dia das Bruxas, operando com a questão da subjetividade que não fogem ao ritual do filme melodramático.

Meet Me in St. Louis (1944)

Mais do que isso, a sequência do Halloween simula a subjetividade infantil pela aproximação com um gênero narrativo isolado, o terror gótico — as abóboras em formatos sinistros, o fogo, a multidão enfurecida e histérica, etc. Toda uma ordem simbólica de horror imaginado do olhar de uma garotinha bem nova, e que se manifesta por uma brincadeira com texturas de luz e cor, fazendo uma simples casa feia do subúrbio, por exemplo, parecer uma mansão assombrada e ameaçadora. Ideias visuais bastante simples, mas que acumulam um efeito fantástico cuja ironia intrínseca parece satirizar (e infantilizar) o medo e a paranoia burguesas. Um momento que pode talvez nos remeter ao que Susan Sontag diz sobre como o camp “rejeita tanto as harmonias da seriedade tradicional quanto os riscos da identificação total com estados extremos de sentimento”².

Outro momento marcante de paródia, desta vez inconfundivelmente camp, é o número musical “The Pirate Ballett”: um delírio da personagem de Judy Garland em O Pirata, no qual Gene Kelly dança como um bailarino, vestido de bandido, enquanto luta contra seus inimigos antes de conquistar a donzela em perigo com gestos de ritual de feitiçaria.

O Pirata (1948)

Como uma alucinação direto dos desejos amorosos da protagonista Manuela, essa sequência explora a fundo a dimensão performática do momento musical. Gene Kelly encarna o ideal de corpo masculino com uma dança cômica e extravagante, assumindo uma consciência da fetichização que um espectador pode fazer de sua figura. Apesar do cenário bastante surreal e expressionista, o momento remete mais ao farsesco (o fetiche como encenação) do que ao onírico, revelando comicamente o limite em que a glorificação do corpo atlético falha em sua seriedade (nas palavras de Sontag, “no Camp ingênuo ou puro, o elemento essencial é a seriedade, uma seriedade que falha”³) e pende para o lado do erotismo vulgar, com o corpo do herói exposto como atração e objeto.

Stephen Pysnik escreveu páginas e páginas (algumas mencionadas aqui) sobre uma leitura queer baseada principalmente nas músicas compostas por Conrad Sallinger, outro artista gay da unidade Freed, para O Pirata. Ao falar do número “The Pirate Ballett”, um comentário sobre questões mais físicas da sequência pode ser destacado na análise feita aqui:

Enquanto a diegese se transforma, a performance começa a super-enfatizar as fantasias eróticas de Manuela sobre Macoco como estuprador/pirata […] A subida de Serafin até o “ninho de corvo” é também uma proeza atlética puramente performativa, com o propósito de atrair o olhar da câmera para longe da cacofonia visual no chão e em direção a seu corpo muscular. (PYSNIK, 2014)

Importante reiterar como a glorificação do corpo masculino atlético é um elemento vital na semântica dos filmes de capa-e-espada daquela época, portanto o gesto de Minnelli sugere descaracterizar algo dado como senso comum pela sociedade consumidora e produtora desse gênero cinematográfico — a de que filmes de aventura são exclusivamente “filmes de homem”. O sonho de Judy Garland se apropria diretamente também das lutas empolgantes desse gênero, porém elas são encenadas como coreografias de balé, movimentos circulares e perfeitos, logo, visivelmente ensaiados e irreais. A combinação que a mise en scène faz do cenário sombrio com as ações profundamente teatrais, e também o fluxo entre sensualidade e ridicularização no corpo de Gene Kelly, devolvem às aventuras capa-e-espada seu aspecto mais fetichista e fantasista (numa espécie de queerificação desse gênero), ao mesmo tempo em que o momento funciona bem como um pequeno ritual de espetáculo — apesar da premissa do delírio de personagem avisar de antemão que a experiência com o gênero seria breve e ilusória dentro da narrativa.

Nem tão camp, mas igualmente provocativo na intertextualidade com outro gênero hollywoodiano, é o número “Girl Hunt Ballett” ao final de A Roda da Fortuna (Vincente Minnelli, 1953), paródia de uma narrativa de detetive que joga com elementos de film noir.

Roda da Fortuna (1953)

Último número musical do filme, “Girl Hunt Ballett” encerra o ciclo de apresentações do grupo de teatro que movimenta a trama. O número apresenta uma micro-narrativa de investigação policial à semelhança dos film noir que povoavam o imaginário pós-guerra daquela década, com o personagem de Fred Astaire interpretando um detetive cínico tentando resolver um crime testemunhado à noite nas ruas da cidade. Elementos semânticos do gênero se espalham numa linha narrativa não muito coerente em termos de verossimilhança, embora a motivação do teatral alivie esse peso de realismo; estão ali a paisagem urbana misteriosa, o anonimato da ameaça, a narração em off do detetive, o jogo de luz e sombra com a fumaça do cigarro tragado pelos personagens, a figura feminina que inicialmente parece uma vítima e depois se revela agente do caos, etc.

A sequência é longa e acompanha com bastante proximidade a “encenação dentro da encenação” que é o fluxo dos eventos e da consciência do personagem detetive, criando uma impressão de organicidade no desenrolar da ação. No entanto, quanto mais o número avança, mais sem sentido e caricata a investigação vai parecendo, com a ação sendo movida por coreografias de balé desconcertantes nos movimentos agressivos de corpos e luzes. Ao final, quando o vilão é divulgado como sendo uma das mulheres com a qual o detetive se apaixonou durante a aventura, a expressão de Fred Astaire não nos remete tanto ao desencantamento existencial — como seria nos processos tradicionais do noir, cuja sintática na década de 50 era marcadamente pessimista — , mas sim à estupidez e à falha individuais desse detetive, uma imagem masculina imponente e grosseira ainda assim incapaz de resolver racionalmente seus problemas enquanto figura de autoridade.

O personagem é colocado numa posição de agente de sua tragédia mais do que como vítima de um esquema opressor entre forças corruptas e mulheres inconfiáveis, e então, ele dança comicamente em reação a tudo isso. Através da apropriação camp, a desconfiança misógina e violenta do noir se revela como curto-circuito vazio em A Roda da Fortuna, e a performance envolvente, simples e bem realizada dos atores oferecem uma nova resposta à estranheza e ao absurdo do mundo, problemas centrais no gênero. Essa teatralidade pode até ser lida como uma reconciliação irreverente com as injustiças da vida, ainda mais no contexto do arco dramático maior do personagem de Fred Astaire.

Pensando nos apontamentos de Sontag, a falha do detetive é como a falha da seriedade do gênero policial dentro da lógica do musical, cuja celebração da performance absorve o cinismo amargo do noir — e não sem negociar, de certa maneira, bases e efeitos: os elementos noir trazem o mistério e a atmosfera sombria ao número, e a farsa musical traz o humor e a extravagância que não deixam de gerar um estranhamento pela maneira como o noir acaba parecendo irreconhecível, deformado pelas cores fortes e coreografias exuberantes.

A Roda da Fortuna (1953)

Na experimentação com todas essas formas e texturas, Minnelli não encontrou somente fluxos intensos e catarses. Os gêneros cinematográficos sempre internalizaram normas da sociedade em relação a sexo, poder e moralidade que se colocam por meio de signos como a femme fatale, o herói viril, o policial violento esclarecido, a casa suspeita habitada por um homem fora de padrões sociais... Quando se brinca com elementos que serviriam de significante a essas presenças simbólicas, reorganiza-se essas estruturas narrativas numa sensibilidade particular que pode equivaler à subversão das normas culturais incubadas ali, excludentes e contraditórias. Tratam-se de corpos que se transformam de acordo com várias mudanças pelo tempo nas instituições e no senso comum popular, e que carregam as contradições de qualquer que seja o momento de sua organização semântica/sintática. À sua maneira, Minnelli usou de artifícios do espetáculo e da própria narratividade clássica hollywoodiana para ressignificar (ou mesmo queerificar) essas estruturas no mundo. As possibilidades que foram abertas revelam um tipo de expressividade muito inteligente e própria — especialmente dentro do contexto de negociação com a normatividade patriarcal em que o diretor se inseria na indústria do cinema.

Notas

¹ SONTAG, Susan. Notas sobre o camp, 1964, p. 2.
² idem, p. 10.
³ idem, p. 7.

Referências bibliográficas

ALTMAN, Rick. “A Semantic/Syntatic Approach to Film Genre”. In: GRANT, Barry Keith. Film Genre Reader. University of Texas Press, [1984] 2003.

BABUSCIO, Jack. “The Cinema of Camp (aka Camp and the Gay Sensibility)”. In: CLETO, Fabio. Camp: Queer Aesthetics and the Performing Subject: A Reader. University of Michigan Press, 1999, p. 117–134.

NOWELL-SMITH, Geoffrey. “Dossier on Melodrama: Minnelli and Melodrama”. In: Screen, vol. 18, n. 2, 1 de julho de 1977, p. 113–118.

PYSNIK, Stephen. “A Musical Camp Reading of The Pirate”. In: Camp Identities: Conrad Salinger and the Aesthetics of MGM Musicals. Durham: Department of Music, Duke University, 2014, p. 156–193.

PYSNIK, Stephen. “Musical Camp: Conrad Salinger and the Performance of Queerness in The Pirate”. In: Camp Identities: Conrad Salinger and the Aesthetics of MGM Musicals. Durham: Department of Music, Duke University, 2014, p. 142–155.

SONTAG, Susan. Notes on “Camp”. In: Partisan Review, 1964; reprodução em Camp: Queer Aesthetics and the Performing Subject: A Reader, 1999. p. 53–65.

TINKCOM, Matthew. “Working Like a Homosexual”: Camp Visual Codes and the Labor of Gay Subjects in the MGM Freed Unit. In: COHAN, Steven (ed.). Hollywood Musicals, The Film Reader. Londres: Routledge, 2002. p. 115–128.

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