Sobre Dyke Hard e a escassez de representatividade para mulheres lésbicas e bissexuais

Mallu Correa
Musicais: Utopias (Queer) no Audiovisual
11 min readAug 27, 2018

Resumo: Este artigo tem como objetivo fazer uma reflexão sobre o contexto da indústria cinematográfica carente de obras que contenham mulheres protagonistas que sejam lésbicas ou bissexuais, discutir essa falta de representação e analisar o musical Dyke Hard (Bitte Anderson, 2014), que tem uma enorme importância em relação a representatividade destas minorias no audiovisual.

Cena final de Dyke Hard

A quantidade de obras audiovisuais com protagonismo LGBT (Lésbicas, gays, bissexuais e transexuais) sempre foi inferior àquelas que retratam relacionamentos e personagens heterossexuais. Segundo o GLAAD, grupo de defesa de gays e transgêneros, no ano passado, dos 109 filmes lançados pelos maiores estúdios de Hollywood, apenas 14 incluíram personagens LGBT’s em seu enredo e, em metade dessas obras, tais personagens apareciam por menos de cinco minutos. Esse número, no entanto, é ainda mais reduzido quando se fala em representar mulheres lésbicas ou bissexuais nas telas.

Quando falamos sobre filmes que contenham relacionamentos lésbicos na narrativa, é fácil se lembrar de obras de sucesso como Carol (Todd Haynes, 2015), Azul é a cor mais quente (Abdellatif Kechiche, 2013), Minhas mães e meu pai (Lisa Cholodenko, 2010) ou Desobediência (Sebastian Lelio, 2017). Todos esses filmes, porém, tratam-se de verdadeiras exceções, por isso são sempre lembrados pela comunidade. Além disso, a maioria deles, acaba caindo no mesmo estereótipo dado a relações lésbicas: a de produto para o homem cisgênero heterossexual. É comum encontrarmos um filme sobre lésbicas em que contenha uma cena sexual que dura vários minutos e que normalmente não acrescentam absolutamente nada a história. Além do mais, também é muito frequente que, em tais narrativas, as mulheres acabem separadas de alguma forma, ou por alguma tragédia, ou por um homem.

Ilustração de Pantera Negra e Mulher-Maravilha

É fato que representatividade importa, os filmes que vem saindo das grandes empresas na indústria cinematográfica protagonizados por minorias estão sendo extremamente essenciais, não só em questão de qualidade da obra, mas principalmente pelo fato de que milhares de pessoas que se sentiam excluídas de alguma forma estão podendo se sentir identificados em uma tela para milhares de pessoas, como é o caso de Pantera Negra (Ryan Coogler, 2018) e Mulher-Maravilha (Patty Jenkins, 2017), ambos tendo como protagonistas pessoas que por muito tempo foram diminuídas, deixadas de lado ou que simplesmente não existiam nas narrativas do tipo super-herói. Pantera Negra foi o primeiro filme do gênero com elenco majoritariamente negro, isso fez com que muitas crianças que não se sentiam contempladas com os filmes de super-heróis fossem ao cinema, comprassem HQ’s, se vissem de alguma forma representadas. O mesmo aconteceu com Mulher-Maravilha, que teve em sua direção uma mulher, fez com que pelo menos um filme com uma super-heroína não tivesse a personagem exposta, sexualizada e feita para vender para homens; colocou a protagonista como uma mulher forte, que sabe seu lugar no mundo e deu a milhares de mulheres a chance de se encontrarem em uma personagem no cinema.

Tendo isso em vista e fazendo um recorte queer em filmes feitos por grandes estúdios, é de se esperar que o público LGBT queira (e cobre) uma representatividade em tela. Heróis que se apaixonam um pelo outro, romances com finais felizes com um casal LGBT, filmes de gênero, filmes para o povo, que admitam a existência da homossexualidade e a coloquem em tela grande para todos verem. Mulheres sempre tiveram um papel coadjuvante no cinema, sempre eram o par romântico do herói, a mãe do herói ou uma mulher extremamente atraente — que está sempre dentro dos padrões de medidas — que seduz o inocente mocinho. Segundo o “Preconceito de Gênero sem Fronteiras: Uma pesquisa sobre Personagens Femininos em Filmes Populares em 11 países”, feita pelo Geena Davis Institute on Gender in Media, a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Fundação Rockefeller, de 5800 personagens com falas e nomes em tela, apenas 30,9% eram do sexo feminino, com esse número caindo para 23% em filmes de ação ou aventura. Quando se trata de mulheres que se envolvem com outras mulheres, isso instantaneamente começa a ser focado apenas em filmes de pequenas produtoras ou feitos especialmente para premiações, pois as grandes empresas claramente ignoram ou invisibilizam a existência de tais relacionamentos.

Para retratar esse cenário conturbado em relação a falta de protagonismo, resolvi focar especialmente na dificuldade que mulheres lésbicas ou bissexuais encontram para achar um objeto audiovisual em que possam se identificar sem cair nos mesmos estereótipos formados de gênero e sexualidade, sem serem vistas como um produto vendido apenas para satisfazer fetiches ou vontades masculinas e sem cair na mesmice de histórias que relacionamentos lésbicos estão fadados ao fracasso: pela parceira que morre tragicamente ou pela garota que acha o “homem certo” e decide ficar com ele no final. Tudo isso são estratégias de roteiro feitas para satisfazer o público que se incomoda com o fato de um casal homossexual protagonizar qualquer obra e ainda assim poder dizer que “cumpriu seu papel com a representatividade”.

Cena sexual de uma integrante da banda com um fantasma

Tendo em vista toda essa abordagem, propus analisar o musical Dyke Hard, de 2014, da diretora estreante Bitte Anderson. O filme fala sobre uma banda composta apenas por mulheres lésbicas que passa por diversas dificuldades para conseguir uma vaga em uma competição de bandas, que tem como prêmio um contrato com uma produtora. O filme não é para todos os públicos, existe uma grande dificuldade de se prender na narrativa por conta de seu teor “trash”. O filme é assumidamente uma obra LGBT, bem como considerado um “filme B”, ou seja, filmes que, em sua essência, foram feitos com pouco orçamento, sem a intenção de alcançar um grande público e com um maior leque de possibilidades sobre o que fazer e encenar, por não terem a obrigação de corresponder a alguma expectativa de público. Além de tudo, o filme também é um musical, gênero cinematográfico que divide opinião entre os telespectadores: há quem ame e há quem odeie.

O filme pode fazer surgir sentimentos e visões totalmente diferentes a partir do que é exposto em tela. Por um lado, ele representa um show de horrores, com atuações que só conseguem ser aproveitadas se quem está assistindo se propor a receber interpretações totalmente exageradas. Números musicais que exigem estômago, visto que alguns deles incluem um “fantasma sexual” e uma prisão com uma diretora extremamente egocêntrica e pervertida. Além disso, o filme também possui um arco narrativo sobre vingança que é extremamente desmoderado e uma pequena participação de um casal gay em que um de seus integrantes é um condenado a segurança máxima. Apesar da temática LGBT, o filme acaba caindo em vários estereótipos concedidos a mulheres lésbicas, como sexualidade em pauta a todo tempo e uma grande quantidade de cenas desnecessárias de sexo. Por outro lado, o filme tem seu mérito, como a representação de uma personagem bissexual, a não-hiperssexualização das personagens, que não estão dentro de um padrão “aceitável” por heterossexuais, a enorme representatividade que o filme tem, tendo como protagonistas mulheres negras, asiáticas e de meia idade, dando espaço para uma minoria dificilmente representada nas telas poder se enxergar, tanto como mulher racializada, tanto como mulher dentro da comunidade LGBT.

Riff em sua última cena

Apesar de extremamente caricatas e exageradas, as atuações vistas em Dyke Hard não são de todo ruim, isso porque elas acabam caindo em um conceito que se denomina “Camp”, que é, basicamente, uma interpretação supérflua que contenha alguma ironia ou denúncia. As atuações no filme são propositalmente ruins, podendo ser interpretadas como uma crítica a como a sociedade enxerga a comunidade lésbica: demasiadamente sexual, com dispensável rivalidade feminina e — de certo modo — extremamente grotesca. Segundo o livro organizado por Steven Cohan, Hollywood Musicals, define-se camp como:

Uma postura irônica em relação à normalidade de gênero, parodiando-a através de um estilo excessivamente estilizado e teatralizado, que inverte ou rompe as relações de forma a conteúdo, de superfície a profundidade, certamente, mas também de margem a centro. Uma consequência histórica de um período de regulação sexual — que, coincidentemente ou não, ocorreu ao mesmo tempo que o auge do musical de Hollywood — o camp foi o estilo autoreflexivo de homens gays que, passando por héteros, mantinham uma “cara de hétero” para não permitir que pessoas de fora entrassem na brincadeira, ainda que simultaneamente dessem piscadelas para aqueles que eram iniciados num reconhecimento compartilhado da brincadeira. Como escreve Jack Babuscio, “o camp reside largamente nos olhos de quem vê”, porque ele “nunca é uma coisa ou uma pessoa em si, mas sim, uma relação entre atividades, indivíduos, situações e homossexualidade “(BABUSCIO, 1984, p. 40–41 apud COHAN, 2002, p. 103).

Logo, não se pode dizer que Dyke Hard é um filme ruim (apesar de seus variados problemas), o filme funciona mais como uma crítica do que como um estereótipo em si.

Além de todas essas questões, Dyke Hard também é muito útil para abordar vários conceitos estudados pela comunidade lésbica. O título do filme já indica sua essência: “dyke”, em inglês, em uma tradução indireta, é como se fosse o nosso “sapatão”, ou seja, um termo utilizado para ofender, mas que foi apropriado pela comunidade de uma maneira positiva e como símbolo de resistência e orgulho. O filme também aborda o embate relacionado ao que seria uma “musicalidade lésbica”. Christina Belcher, em “I Can’t Go to an Indigo Girls Concert, I Just Can’t”: Glee’s Shameful Lesbian Musicality”, explica que, por um lado, há o sentimentalismo atribuído ao country feminista dos anos 1970. Nestas músicas,

A vergonha lésbica surge como uma resposta a uma falta de desejo sexual ou atos sexuais, e a musicalidade lésbica vem figurar essa frigidez. Em outras palavras, a musicalidade lésbica parece vergonhosa porque impede a sexualidade das mulheres, forçando a separação dos corpos e levando-os para fora do contexto da “cama”. (BELCHER, p. 412–413)

Em contraposição ao country lésbico, em que as mulheres e seus relacionamentos entre si acabam sendo reproduzidos como sentimentais demais e afastados do âmbito sexual, o Dykecore punk ou punk rock lésbico daria vazão a uma vertente, notadamente de lésbicas urbanas, onde a agressividade e o conteúdo sexual estariam mais explícitos:

O seriado The L World apresenta os gêneros musicais the riot dyke ou dykecore punk, que são associados a sensualidade e ao prazer de maneira a criticar o estereótipo da musicalidade lésbica acústica orientada para o country. O dykecore também enfatiza a subcultura urbana e normativamente figurada, e assim, indiscutivelmente, promove noções anti-queer de “progresso” além do passado destinado a lésbicas. (BELCHER, p. 419)

Dyke Hard vai pelo caminho dessa segunda vertente, exibindo mulheres lésbicas e bissexuais que fazem música punk e que tem a sexualidade mostrada e reforçada a todo momento, tirando essa visão de que a comunidade lésbica faz uma arte voltada apenas para sentimentalismo e não em seus próprios desejos.

Pôster Dyke Hard

Infelizmente, essa obra é uma exceção na indústria, que jamais ousaria em abordar tantas temáticas minoritárias em um filme blockbuster, por exemplo. A dificuldade em achar um filme musical que tivesse como protagonistas mulheres que se relacionam com mulheres, sejam elas lésbicas ou bissexuais, diz muito sobre a indústria cinematográfica na qual estamos inseridos. Onde um filme só pode abordar tais questões desde que seja visto por um público extremamente limitado e não seja bem distribuído, dificultando ainda mais o público LGBT que procura uma obra representativa.

Atualmente, mesmo que em pequena escala, vem sendo feita muita coisa boa para o público LGBT, séries como Sense8 (Lilly e Lana Wachowski, 2015–2018), Faking it (Dana Min Goodman, Julia Wolovpor e Carter Covington, 2014–2016) e Everything Sucks! (Ben York Jones e Michael Mohan, 2018–2018) tiveram enorme reconhecimento do público em razão de conter personagens gays, lésbicas, bissexuais e transexuais. No entanto, infelizmente, é pouca a aceitação da grande massa em relação a essas obras audiovisuais, visto que todas essas séries foram canceladas tendo no máximo duas temporadas. Alguns filmes lançados recentemente (e bem avaliados pela crítica) também mostram que o cenário pode estar mudando, como Moonlight (Barry Jenkins, 2017), Me Chame Pelo Seu Nome (Luca Guadagnino, 2017) e Com Amor, Simon (Greg Berlanti, 2018). Mas, novamente, caímos no mesmo precipício de vermos a comunidade sendo representada por homens e, sempre, para homens. No artigo “Anura: visibilidade lésbica e a falta de mercado representativo”, Bárbara de Almeida Martino fala sobre essa falta de espaço para mulheres, incluindo no próprio movimento LGBT:

Mulheres lésbicas são peças fundamentais no estudo de gênero pois tendem a ser livres das amarras sociais, quebram o estereótipo de gênero e não seguem a heteronormatividade. Mas, ainda assim, têm pouca visibilidade dentro da comunidade LGBT (Lésbicas, Bissexuais, Gays e Transsexuais). Somos esquecidas e deixadas à margem. O movimento LGBT é extremamente machista e o único espaço exclusivo feminino (lésbicas) sofre com isso. (MARTINO, 2017, p. 7–8)

Nomi e Amanita, de Sense8

A partir disso, concluo que ainda falta muito para alcançarmos plena igualdade no audiovisual, o ideal não é simplesmente cobrar filmes que contenham um casal lésbico, o ideal é juntar mulheres, é fazer filmes, é contar histórias a partir das nossas próprias, é não deixar isso nas mãos de um homem, é saber falar do que é nosso e mostrar pro mundo a nossa existência a partir da nossa perspectiva. Existem milhares de narrativas que podem ser contadas, várias pessoas querendo participar de tais projetos e principalmente, um enorme público ansiando por isso. É nosso dever, como propagadoras de ideias e como contadoras de histórias, de mostrar todos os lados, todas as pessoas, todos os credos e todos os gostos. Isso é diversidade.

Referências Bibliográficas

BELCHER, Christina. “I Can’t Go to an Indigo Girls Concert, I Just Can’t”: Glee’s Shameful Lesbian Musicality. Journal of Popular Music Studies, Volume 23, Issue 4, 2011, p. 412–430.

COHAN, Steven (ed.). Hollywood Musicals, The Film Reader. Routledge, 2002.

FRANÇA, Naia. O cinema e a lesbianidade: a visibilidade e a representação da luta pela arte. Disponível em: http://anallogicos.com/index.php/2016/10/19/o-cinema-e-lesbianidade/, 2016.

GUADAGNUCCI, Julia. A (in)visibilidade das mulheres lésbicas no cinema. Disponível em: https://avozdasmina.wordpress.com/2016/06/13/a-invisibilidade-das-mulheres-lesbicas-no-cinema/, 2016.

G1: Grupo sediado nos EUA pede personagens LGBT em 20% dos filmes até 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/grupo-sediado-nos-eua-pede-personagens-lgbt-em-20-dos-filmes-ate-2021.ghtml, 2018.

MARTINO, Bárbara de Almeida. Anura: visibilidade lésbica e a falta de mercado representativo. UNB, Departamento de Desenho Industrial, Brasília, junho de 2017.

MARTINS, Helena. Pesquisa mostra que mulheres são sub-representadas e estigmatizadas no cinema. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2014-09/pesquisa-mostra-que-mulheres-sao-sub-representadas-e-estigmatizadas-no-cinema, 2014.

PÉCORA, Luísa. Número de protagonistas mulheres caiu em 2017, diz estudo. Disponível em: http://mulhernocinema.com/numeros/numero-de-protagonistas-mulheres-em-filmes-campeoes-de-bilheteria-caiu-em-2017/, 2018.

SANTOS, César Gabriel Belém dos; FREITAS, Ricardo Oliveira de. Além do arco-íris: Os avanços da representatividade midiática LGBTQ pela tela da Netflix. Universidade do Estado da Bahia, Salvador, BA, setembro de 2017.

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