The ‘Camp’ King: a trajetória de Simba além do que o sol toca em “O Rei Leão”

Yago Romero
Musicais: Utopias (Queer) no Audiovisual
9 min readAug 27, 2018

Resumo: Em O Rei Leão (The Lion King, Rob Minkoff, Roger Allers, 1994), o leão Simba é preparado para ser o rei responsável pela ordem do ciclo da vida. No segundo número musical da animação da Disney, “O que eu quero mais é ser rei”, o herdeiro confronta Zazu, que o informa que deve casar-se com Nala, iniciando uma programação heteronormativa sobre as crianças que implica em uma sequência de ‘chamamentos’ aos padrões heterossexuais, nos quais dilemas relacionados à opressão, à vergonha e à identidade traçam o perfil emocional da trajetória de Simba, em significados na utopia musical e potencializados pela estética ‘camp’ na animação.

Simba em “O que eu quero mais é ser rei”

O modo de vida dos animais das Terras do Reino (Pride Lands) depende do respeito à cadeia alimentar: um reinado de responsabilidade que Mufasa (James Earl Jones) ensina seu filho e herdeiro, Simba (Jason Weaver), a perpetuar. Entretanto, uma postura monarca e imponente é dissonante da grande curiosidade e energia que o jovem leão tem de descobrir em si mesmo o poder que é preparado para exercer. Simba convive com chamamentos à heterossexualidade durante diversos conflitos chave do filme, permitindo a observação da programação de gênero diluída na sua trajetória. Nesta leitura serão analisadas algumas características, a partir da óptica de Judith Butler sobre imposição e performance de gênero, que nos permitem afirmar que Simba e Nala (Laura Williams) são preparados para executar comportamentos e interações sexuais esperados dos mesmos, mas imergem nos elementos do cinema musical formas que permitem a Simba resistir às permissões e interdições que Zazu (Rowan Atkinson) quer impor sobre o leão.

No número “O que eu quero mais é ser rei”— “I just can’t wait to be king”, canção produzida por Hans Zimmer, composta por Sir. Elton John, com letras de Tim Rice — , Zazu informa a Simba de sua responsabilidade imutável de casar-se com Nala. Os dois leões mostram-se avessos à ideia de se casarem, pois são amigos. O conflito com o perfil heteronormativo nesse momento se dá, em primeira análise, na leitura infantil de compreender a responsabilidade matrimonial enquanto ordem — o que não impossibilita, é claro, uma segunda leitura queerificada a partir da transgressão de Simba e Nala (esta, de forma coadjuvante), por se colocarem definitivamente contra uma ordem heteronormativa e, deste modo, confrontarem as estruturas de poder. Judith Butler chama atenção para a intrincada relação entre sexualidade e poder quando afirma que:

Uma das maneiras pelas quais o poder é ocultado e perpetuado é pelo estabelecimento de uma relação externa ou arbitrária entre o poder, concebido como repressão ou dominação, e o sexo, concebido como energia vigorosa mas toldada, à espera de libertação ou auto expressão autêntica (BUTLER, 2003 p. 141).

No número, justamente por divagar sobre sua possibilidade de mudar certas regras a serviço do seu desejo, os argumentos de Simba para Zazu parecem desafiar tais estruturas, estando recheados de elementos de uma utopia musical (DYER, 2003) e de uma linguagem camp (categoria estética que pode ser traduzida como afetação). Nas palavras de Susan Sontag, uma arte camp “frequentemente é uma arte decorativa que enfatiza a textura, a superfície sensual e o estilo em detrimento do conteúdo” (SONTAG, 1964, p. 3), e tal ênfase nas texturas e padrões pode ser vista, por exemplo, quando o número recontextualiza a savana ao redor em um ambiente (re)colorido, conectado diretamente ao imaginário de Simba e seus mais férteis sentimentos e ânimos em ser rei.

Mudança no padrão de cor (colour pattern) da animação

A corporalidade de Simba, atrelada à sua interação com o espaço, ilustram o componente queerificante da sua identidade — em geral, a forma como a sua imagem será capaz de impor autoridade (uma figura patriarcal masculina), porém experimentando em si mesmo nuances que permitem uma leitura multigenerificada, ou aquém de uma expressão de gênero propriamente dita. Segundo Sean Griffin e sua pesquisa acerca de aspectos queer nas animações:

Os discursos materiais de poder que definem a identidade são subvertidos ao serem esgotados de maneira que seus diversos níveis alcancem extremos absurdos e paródicos, expondo a construtividade do gênero, sexualidade e do sexo em si. […] [Nas animações, a] habilidade de personagens supostamente masculinos se transformarem ou se vestirem de maneira convincente como personagens femininos começa a questionar a estabilidade de gênero (GRIFFIN, 2004, p. 107).

Zazu impõe em Simba o arquétipo de um Rei Leão (ter juba grande, colocar-se de forma adequada, impor ordens, etc), o que inicia os conflitos de Simba com certa vergonha e decepção ao tentar se afastar do que é esperado sobre si:

[…] A frustração gay neste cenário torna-se um profundo reservatório emocional no qual um adulto queer se esboça, para bem ou para mal. O roteiro da sexualidade e da emoção estão associadas a heteronormatividade de forma muito próxima a vergonha, a negação e o não reconhecimento. (HALBERSTAM, 2005, p. 221)

O afastamento de Simba das expectativas é perceptível em pequenos gestos no número, como o momento que simula uma juba com um arbusto vermelho: ele está, ao mesmo tempo, brincando com as fronteiras de seu (futuro) reinado e as alterações que espera de seu corpo (para que rei possa ser). Simulando a juba, ele atribui ao arbusto uma função “não natural” — uma função de peruca —, e com isto o jovem leão transita entre diferentes formas de “performar” um leão macho de forma caricata e parodiada, debochando de maneira camp das imposições e interdições heteronormativas (BABUSCIO, 2004).

A juba paródica e artificial de Simba

Na conversa entre Zazu, Simba e Nala, o pássaro demonstra indignação a ser questionado, lançando mão de seus principais versos(“Simba! Tá na hora de termos uma conversa…”), enquanto Simba ocupa-se apenas de refutá-lo (“Para começar, reis não precisam de conselhos”). Estes argumentos serão repetidos, principalmente, em momentos futuros do filme, nos quais Nala e a figura (espectral) de Mufasa direcionam Simba ao seu destino, seu modo heteronormativizado, e de certo modo, envergonhado de sua trajetória de afastamento da responsabilidade a qual foi incutido desde sua infância.

Mesmo que de forma coadjuvante, a presença de Nala enquanto personagem feminina recusando e debochando das imposições de Zazu no número parece reverberar a presença constante das leituras feministas e da luta feminina nas pautas queer contra a heteronormatividade. Ainda assim a masculinidade de Simba está em destaque, e pode-se afirmar que esta focalização justifica-se na afronta à monarquia, já que um rei homem com uma postura queer agride o sistema misógino na esfera de poder desenvolvida pelo protagonismo masculino.

Nala compartilha do deboche momentâneo a Zazu

Além das possibilidades que Simba articula, o que é mais pertinente para esta leitura é o rechaço do leão em relação à educação que recebe — o movimento de, ainda criança, reagir de forma consistente enquanto constrói a sua maturidade. Nos versos “Todos se movam para a esquerda/Todos se movam para a direita/A qualquer lado que você olhar eu estou nos holofotes”, é possível inferir que Simba acredita estar exatamente no centro da decisão, no âmago de qualquer possibilidade, acreditando no total apoio social, no total amparo às suas decisões sobre si, sobre seu corpo e sobre as expressões do seu poder como rei e, como conseguinte, da sua sexualidade. Essa visão de Simba ultrapassa qualquer limite imposto por Zazu, que é pisoteado pelo aglomerado de animais que seguem e amparam Simba. O leão confia em seus sentimentos, e no poder nele conferido (novamente o paralelo entre o reinado e a identidade) presente não só nesse número, mas também em outros momentos do filme.

Outros números além de “O que eu quero mais é ser rei”, como “Hakuna Matata” e “Esta noite o amor chegou” (“Can You Feel the love tonight”), também podem ser lidos como chamamentos à heteronormatividade, e compõem a jornada de Simba em seu dilema entre a vida alternativa e o seu destino ao posicionamento de soberano heteronormativo.

O número “Hakuna Matat”a é a introdução de Simba a uma nova filosofia de vida — esquecer-se do passado e viver sem problemas. Para Gael Sweeney, (2013), além de Timão (Nathan Lane) e Pumba (Earnie Sabella) constituirem a configuração de um primeiro casal abertamente gay em animações da Disney, eles afastam Simba de todo caos vivido por ele antes de ser adotado. A partir da experiência de viver a filosofia de “esquecer-se do passado”, Simba se afasta, por toda sua adolescência, da Pedra do Rei enquanto reina seu tio Scar (Jeremy Irons). A procura por comida faz Nala encontrar Simba e relembrá-lo sobre sua responsabilidade para a então filosofia de Mufasa (“Lembre-se de quem você é”) como o principal chamamento à heteronormatividade:

Para Timão, Nala é um tipo diferente de perigo: a balada romântica “Esta noite o amor chegou” [“Can you feel the love tonight?”] sublinha a função de Nala de retorná-lo para o seu “modo” principal e assumir a heteronormatividade. A descoberta de Simba sobre a sexualidade é simultânea àmemoria de quem ele realmente é: o Rei Leão. (SWEENEY, 2013, p. 148)

A melodia de “Esta noite o amor chegou” é reproduzida em flauta antes do número “O que eu quero mais é ser rei”, quando Zazu explica às crianças que elas estão destinadas a se casar. A presença sutil e discreta desta música nesse momento do filme elucida as evidências do tato heteronormativo dos sentimentos desses dois personagens, e sua interação a ser retomada na próxima repetição dessa melodia.

Ao fim de “O que eu quero mais é ser rei”, o comportamento dos animais na grande utopia de Simba, dos movimentos mais naturais aos mais artificiais (como o empilhamento de animais à la Busby Berkeley), agem em congruência aos argumentos contra a normatividade de Zazu que literalmente não suporta essa conduta do leão.

Empilhamento de animais em referência a cinematografia de Busby Berkeley

Ainda que se siga a meia verdade em crer que o cinema de animação é voltado para um público infantil, as questões levantadas pela linguagem destes produtos representam críticas que vão além do entretenimento segmentado. A utopia composta por diversos elementos do musical de animação atribuindo a abundância e energia (Dyer, 2003) contextualizam discursos acerca do convívio com as esferas de poder e expressões direcionados a leituras cada vez mais transgressoras, e consequentes da resistência diária em se construir na arte um espaço seguro para as identidades queer.

Referências Bibliográficas

BABUSCIO, Jack. “Camp and the gay sensibility”. In: BENSHOFF, Harry, GRIFFIN, Sean. Queer cinema: the film reader. New York: Routledge, 2004.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. (Tradução: RODRIGUES, Carla). Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 13, n. 1, p. 179, jan. 2005.

DYER, Richard. “Entretenimento e Utopia” (Tradução: Camila Vieira da Silva). Revista ECO-Pós, v.19, n. 3, 2016.

GRIFFIN, Sean. “Pronoun Trouble, The Queerness of animation”. In: BENSHOFF, Harry, GRIFFIN, Sean. Queer cinema: the film reader. New York: Routledge, 2004.

HALBERSTAM, Judith (ver também HALBERSTAM, J. Jack). “Shame and White Gay Masculinity.” Social Text 84–85, Vol. 23, N. 3–4, Fall-Winter, 2005.

SONTAG, Susan. “Notas sobre o camp”. In: ______. Contra a interpretação. Trad. Ana Maria Capovilla. Porto Alegre: L&PM, 1987.

SWEENEY, Gael. “‘What do you want to me to do? Dress in Drag and Do the Hula?’ Timon and Pumbaa’s Alternative Lifestyle Dilemma in The Lion King”. In: CHEU, Johnson (ed.). Diversity in Disney Films: Critical Essays on Race, Ethnicity, Gender, Sexuality and Disability. London: McFarland & Company, 2013. p. 129–146.

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