Dizzee, o Alien Queer de “The Get Down”

Resumo: The Get Down é uma série que busca recontar a história do Hip-Hop e do bronx nos anos 70 sob a perspectiva dos jovens que habitavam o bairro. Abordaremos, nesse artigo, a perspectiva LGBT tendo em vista a narrativa do personagem Marcus Kipling, o Dizzee, e no resgate negro e LGBT que a série faz no cenário da subcultura Nova Yorquina do final dos anos 70.

Dizzee (Jaden Smith) no ateliê de Thor (Noah Le Gros). (Primeira temporada parte 2 episódio 5)

A série The Get Down teve estreia mundial em agosto de 2016, com uma temporada dividida em duas partes, foi o maior investimento da NETFLIX com orçamento de mais de 11 milhões por episódio. Um dos motivos de não ter sido renovada para uma segunda temporada, alto investimento com uma resposta que não era à altura, afinal é uma série com 90% do elenco negro ou latino, e mesmo estando em uma era de valorização étnica ainda há a comparação com produções brancas. Se trata de uma série musical, que busca recontar a história do hip-hop no Bronx no final dos anos 70 nos Estados Unidos, dirigida por Baz Luhrmann (Moulin Rouge, O Grande Gatsby) ao lado de Stephen Adly Guirgis, roteirista e dramaturgo conhecido tanto no circuito da Broadway quanto no Off-Broadway. Um diferencial dessa produção foi que ela contou com o auxílio de pessoas que viveram na época retratada, como o DJ Grandmaster Flash, o que contribuiu ainda mais para a autenticidade da série e na retomada de um tema ( o Hip-Hop, Disco, Graffiti) sob a perspectiva dos atores principais do movimento.

Situada em 1977, The Get Down mistura ficção e realidade para construir a sua trama, em um bairro considerado pobre, o Bronx, e habitado principalmente por negros e latinos, em uma Nova York à beira do colapso com altos índices de violência e aumento gradativo de uso de drogas. Foi um ano de revoltas que eclodiram na popularização de movimentos marginalizados como o Grafitti e com surgimento do Hip-Hop.

Temos como arco principal da série o romance dos personagens Ezequiel Figuero, interpretado por Justice Smith, um jovem que perdeu os pais para o tráfico e mora com os tios, inteligente e com enorme talento para compor; e Mylene Cruz, interpretada por Herizen F. Guardiola filha de um pastor assíduo da igreja Pentecostal, mas que sonha com um futuro na música. A narrativa da série acompanha Ezekiel que monta o grupo Get Down Brothers junto a Shaolin Fantastic e os irmãos Dizzee (Jaden Smith), Ra-Ra (Skylan Brooks) e Boo-Boo (T. J. Brown Jr.),e a jornada de Mylene para se tornar uma cantora profissional de sucesso.

Apesar de se assemelhar, no arco principal, à narrativa de duplo foco de filmes musicais, estudada por Rick Altman, que divide heteronormativamente os focos entre o masculino e feminino, em que cada gênero tem valores e objetivos opostos, a série trabalha magistralmente os personagens coadjuvantes que acrescentam muito à narrativa com a complexidade de suas tramas.

Trataremos, nesse artigo, de um personagem em específico, o amigo de Ezequiel, Marcus Kipling, apelidado pelos amigos de Dizzee. O personagem é interpretado por Jaden Smith, e como a maioria dos outros personagens da série é um jovem negro em busca de construir uma identidade, de se afirmar, e ser reconhecido. Dizzee é o mais “tranquilão” do grupo, tem como grande paixão o grafitte, usa o pseudônimo de Rumi411. Rumi é a figura de um Alien de cartola inventado por Dizzee, como um alter ego, esse personagem sempre parece estar indo à ópera mas ele nunca chega lá, e ele sabe que quando chegar à ópera, mesmo que tenha uma cartola e esteja muito bem vestido, não importa, ele ainda vai aterrorizar todo mundo lá, e que eles vão matá-lo. Esse alter ego diz muito sobre a personalidade do Dizzee, e ao longo da série isso vai ficando ainda mais claro.

Esse Alien, figura de outro planeta, que não se enquadra nas normas pré-estabelecidas socialmente, reflete a personalidade do personagem, que, ao se entender como estranho, incompreendido, e até perigoso na visão dos outros tem, não só a ver com o fato dele ser negro, pobre e artista como também com a sua sexualidade, que seria uma razão de perseguição e estranhamento. Nas suas falas e na sua arte, nos graffites, pinturas ou versos, Dizze sempre aborda o tema da liberdade, de fugir das regras e fazer o impossível.

Podemos pensar na figura desse personagem como camp sob a perspectiva de Susan Sontag no aspecto que tange questões, por exemplo, de indumentária, Dizzee faz uso de um figurino alegórico, que parece ter sido customizado pelo próprio personagem. A figura do Rumi pode ser vista como camp, da predileção pelo inatural, da fuga do padrão hegemônico , pela sua percepção diferenciada de mundo e como isso perpassa para os seus Graffites. Dizzee, entretanto foge aos estereótipo de homem gay afeminado, é como se ele não precisasse definir uma sexualidade em específico, e pudesse transitar pelas duas livremente, sem a pressão de uma personalidade ligada à orientação sexual.

No quarto episódio da primeira parte, Dizzee conhece Thor (Noah Le Gros) que o ajuda a escapar da polícia enquanto grafitava-”Esqueça a segurança, seja notório”- no trem, nesse momento, há o primeiro indício da sexualidade do personagem em questão, a admiração que ele demonstra ao encontrar Thor e o clima que fica entre os dois deixa pistas de o que vai se iniciar naquele momento não é uma amizade qualquer.

No episódio seguinte nos é apresentado um graffiti feito por Thor no trem que diz “Você tem asas, aprenda a voar”, que poderia ser interpretado como um incentivo à Dizzee assumir sua sexualidade e não ter medo de ser quem ele é. Temos a todo o momento Thor como uma espécie de encorajador para Dizzee se libertar. No sexto episódio eles tem uma conversa nos trilhos do trem, onde se conheceram, sobre libertar o Alien da cartola, e fazê-lo ressurgir em uma nova forma, em que ele possa ser livre e que todos possam vê-lo, que ele não fique para sempre grafitando em túneis, nesse contexto Thor chama Dizzee para uma festa, em que “aliens” e “fênix” podem ser livres. Enquanto caminham para fora do túnel Thor proclama a seguinte frase “Que nosso estilo selvagem veja luz algum dia”, essa cena é muito potente, e faz referência tanto a marginalidade do graffiti como também à marginalidade da homossexualidade, a saída do túnel pode ser lida com uma analogia à saída do armário que ocorreria nas cenas seguintes.

Thor (Noah Le Gros) e Dizzee (Jaden Smith) caminhando no túnel onde se encontraram pela primeira vez. (Primeira temporada parte 1 episódio 6)

Ainda no sexto episódio, nos é apresentada uma das sequências mais icônicas da série, Dizzee vai à festa que Thor o convidou. Lá ele se depara com uma realidade que não imaginava ser possível, Drag Queens, Gays, lésbicas, pessoas fantasiadas, dançando livremente e se expressando de forma autêntica. Essa festa remonta um típico estilo de baile que era muito comum ao longo dos anos 70 e 80 nos Estados Unidos, onde aconteciam festas e competições de looks e de Voguing entre Drag Queens, era um lugar onde essas pessoas, que eram excluídas na sociedade, renegadas e marginalizadas, viravam rainhas (Queens), se montavam e desfilavam, onde podiam ser quem realmente eram ou quem gostariam de ser.

A série se inspirou no documentário “Paris is Burnig” não só para produzir o cenário e indumentária, como também reutilizou parte da trilha sonora do filme (“Love Is The Message”do MFSB na cena da festa LGBT). Essa cena contextualiza o momento vivido, que por muito tempo foi apagado da história do audiovisual, o disco e os anos 70 são retratados constantemente como um período protagonizado por brancos e hetéros, quando na verdade quem foi o grande precursor desses espaços foi o público negro e LGBT.

Trecho do documentário “Paris is Burning” (1990)

Tais apagamentos podem ser vistos em filmes como “Flashdance”(1983) e “Embalos de Sábado à Noite”(1977) em que os protagonistas são casais hétero e brancos, e não há menção nenhuma ao público gay nem negro, simplesmente como se eles não fizessem parte dessa cultura. The Get Down faz um excelente trabalho em resgatar a representatividade dessas culturas, negra e LGBT, nesses espaços, colocando-as como protagonistas. Há de se reconhecer o trabalho de pesquisa que os produtores da série tiveram para produzir um conteúdo que representasse de fato aqueles que são os verdadeiros atores dessa história.

Mas, voltando à cena da festa, esse é o momento em que Dizzee se permite, e se vê confortável para adentrar esse novo mundo, recheado de possibilidades que ele nem imaginava, no qual é normal as pessoas não se sentirem confortáveis com suas carcaças “originais” e então se transvestem para chegar mais perto do seu verdadeiro eu. Ele pergunta à amiga de Thor se são meninos ou meninas e ela responde: “Os dois. Meninos vestidos de menina, meninos com meninas presas dentro deles, meninos virando meninas, meninas que se cansaram de ser meninos”. A partir de então ele se permite a experimentar os seus desejos.

Incentivado pela amiga de Thor- seriam novamente héteros forçando homossexuais a se assumirem- em uma cena incrivelmente bem decupada, na qual há montagem paralela de diversos casais dançando juntos, se lambendo, e se tocando, vemos os dois se aproximando, e no clímax da música todos os beijos se encontram paralelamente na montagem. Apesar de não mostrar explicitamente o beijo entre os dois, fica subentendido que aconteceu, e a potência que essa sequência com o plano de fundo da música “Telepathy” da Christina Aguilera trazem um sensação de epifania. Assim que os dois se separam do beijo começa a tocar “Set Me Free” uma das principais músicas da série, cantada por Mylene, que fala sobre liberdade.

Dizzee (Janden Smith) e Thor (Noah Le Gros) na boate (Primeira Temporada parte 1 episódio 6).

Podemos, ainda, analisar essa sequência sob a perspectiva de Richard Dyer de sensibilidade utópica, na qual temos a narrativa com as problemáticas e o número musical como fuga com resolução dos problemas. Essa apontaria para brechas ou inadequações do capitalismo e da sociedade contemporânea, na qual o entretenimento forneceria alternativas ao capitalismo fornecidas pelo próprio capitalismo. Ou seja uma a cobra que come o próprio rabo, e se retroalimenta. O capitalismo, a indústria do audiovisual, criaria esse tipo de série que promove o resgate LGBT/racial como forma de entretenimento líquido, para apaziguar os ânimos revolucionários, e gerar assim a falsa sensação de dever cumprido. Segundo as categorias de sensibilidade utópica de Dyer essa sequência musical poderia se enquadrar como número de Comunidade, é uma cena que traz o sentimento de pertencimento, que todos ali lutam pelas mesmas causas, tem os mesmos objetivos, e constituem uma mesma comunidade, ao mesmo tempo que também experimenta a categoria de Intensidade dos personagens em questão, que vem como um sentimento genuíno, “autêntico”, direto e sem contenção. Entretanto, é importante comentar o apagamento que há no beijo entre eles. É uma linda cena, de fato, mas por que não mostrar explicitamente o beijo? Nem nessa cena nem em nenhum outro episódio em que eles aparecem juntos na segunda parte da série. Não podemos esquecer das escolhas que são feitas pelos cineastas, e que nada é por acaso quando se trata do audiovisual. Então porque dar todo esse espaço para o casal e ocultar o beijo deles? Já seria “demais” ela ser toda composta por atores negros ou latino-americanos?

É importante, eu penso, tensionar a especificidade cultural e histórica do entretenimento. Os tipos de performance produzidos pelo entretenimento profissional são diferentes em audiência, performers e acima de tudo intenção, em relação aos tipos de performance produzidos em sociedades tribais, feudais ou socialistas. Não é possível aqui fornecer o argumento detalhado histórico e antropológico para respaldar isto, mas espero que as diferenças sejam auto sugeridas quando digo que o entretenimento é um tipo de performance produzido para o lucro, performado perante uma audiência generalizada (o“público”), por um grupo treinado, pago, que não faz nada além de produzir performances que tem o único objetivo (consciente) de fornecer prazer.o narrativo desse personagem na primeira parte série.(DYER, 2002, p.19)

Sob as perspectivas analisadas anteriormente nesse artigo, The Get Down traz consigo um importante papel de resgate tanto da cultura negra no Hip-Hop, no disco e no Graffiti como também a presença LGBT em todos esses espaços. A série, por mais que cometa alguns deslizes, como o citado acima, foi muito feliz na sua proposta e na sua execução. É triste ver que uma série potente e importante quanto essa não seja renovada para uma próxima temporada, que poderia aprofundar ainda mais as questões abordadas e trazer ainda muitas outras.

Referências bibliográficas

SONTAG, Susan. “Notes on ‘Camp’”. In: Camp: Queer Aesthetics and the Performing Subject: A Reader. Edinburgh University Press, 1999. p. 53–65.

DYER, Richard “Entertainment and Utopia”. In: Olny Enterteiment. Nova Iorque. Taylor and Francis e-Library, 2005. P 19–35.

JORDAN, Chris. Gender and Class Mobility in Saturday Night Fever and Flashdance (1996).

ALBINO, Airan. O negro conta sua própria história em The Get Down, 2016. Disponível em: http://www.nonada.com.br/2016/08/o-negro-conta-sua-propria-historia-em-the-get-down/

GONZAGA, Rafael. The Get Down — 1°Temporada, Crítica, 2017: https://www.omelete.com.br/series-tv/criticas/the-get-down-1a-temporada-critica

Filmografia

“The Watermeloon Woman” (Cheryl Dunye, 1996).

“Paris is Burning” (Jennie Livingston, 1990).

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