A questão transexual em “Mulan”: entre a transgressão de gênero e a conformação aos padrões

Resumo: Este artigo pretende analisar a animação Mulan (Tony Bancroft, Barry Cook, 1998) sob o escopo de uma possível representatividade transexual. Para tal, é realizada uma comparação com outras animações da Walt Disney Inc. em que procura-se estabelecer em qual discurso os traços não-binários de gênero se apresentam e as singularidades da obra perante as outras peças fílmicas da mesma empresa.

Introdução

As quebras dos padrões heteronormativos de gênero não são uma característica exclusiva da contemporaneidade. Desta maneira, não é incomum encontrar representações desses comportamentos não-binários em obras ao longo da história. Isso não é diferente nas animações da Walt Disney Company. Em que discurso, entretanto, esses traços aparecem nas peças infantis da empresa americana? Normalmente, eles seguem um padrão de atribuir tais marcas aos antagonistas. Essa antagonização é bastante problemática e segregativa, pois corrobora um discurso maior.

Contudo, em Mulan (Tony Bancroft, Barry Cook, 1998), essas quebras heteronormativas estão atreladas à própria protagonista e sua jornada. Então, seria Mulan um exemplo de obra representativa ou apenas mais um exemplo de confirmação e fortalecimento dos papéis de gênero dentro da filmografia da Disney? O objetivo deste artigo é discorrer, através de uma estrutura comparativa, sobre esse questionamento. Porém, para tratar da questão supradita, é necessário compreender uma problemática na representatividade trans nos filmes da Disney.

“Moças más”

Os heróis e heroínas da franquia de filmes da Disney são, de acordo com Amanda Putnam (2013), “hiper-heterossexuais” e seguem impulsos heteronormativos como “se apaixonar, casar e, como entendemos, viver felizes para sempre, normalmente dançando e cantando com olhares apaixonados durante o pôr do sol”. Além disso, esses papéis principais carregam marcantes características físicas e sociais de gênero: enquanto as princesas são jovens, com corpos esculturalmente sensuais, com habilidades praticamente inatas de dança e música, os príncipes encantados possuem ombros largos, mandíbulas protuberantes e postura “máscula”. Ou seja, os príncipes são extremamente “masculinos” e as princesas claramente “femininas”, em todos os aspectos.

Percebe-se que essa hiper-heterossexualidade por parte dos heróis é contrastada com a notável quebra delas nos vilões. Enquanto as performances de gênero encontram-se demarcados nos protagonistas, elas são subvertidas pelos antagonistas. Os vilões são afeminados em suas falas, vestimentas e/ou escolhas narrativas, e as vilãs carregam traços masculinizados.

Amanda Putnam afirma em “Mean Ladies: Transgendered Villains in Disney Films” (2013) que percebeu tal padrão de antagonismo transgênero quando sua filha solicitou que elas assistissem uma das animações da empresa norte-americana, porém a criança apontou uma restrição: queria um filme sem uma “moça má”. Putnam percebeu, então, que o termo que sua filha utilizou não se referia exclusivamente às vilãs — bruxas, madrastas, etc. — mas a personagens com características transgêneras, as quais eram restritas aos antagonistas.

Todavia, como Putnam afirma: “com certeza, a Disney criar personagens transgêneros não é um problema. Fazê-lo apenas reflete uma visão mais inclusiva” (2013, p. 148). A problemática encontra-se quando as características trans são exclusivas dos antagonistas, o que cria e promove um padrão normativo bastante nocivo. “Quando gênero é retratado de uma maneira socialmente dita como ‘inatural’, estigmas preconceituosos podem ser incitados” (2013, p. 148). Como a autora corrobora (2013, p. 155):

“A quebra dos papéis de gênero ocorre em vários filmes da Disney, não só na série das Princesas, mas também nos de temática animal. Especificamente, diversos personagens femininos vilanescos são masculinizados de maneiras distintas, como a madrasta e as meias-irmãs em Cinderela ou Úrsula em A Pequena Sereia. […] As quebras de papel de gênero, entretanto, aparecem em vilões masculinos também, através da atribuição de características femininas: como Jafar, em Aladdin; Scar, em Rei Leão; e Ratcliffe, em Pocahontas, por exemplo. Esses também se tornaram vilões transgêneros e, fatalmente, minha filha os agrupou como ‘moças más’ também.”

Portanto, com a visibilidade que os filmes da Disney possuem, a crítica se faz necessária. Se toda quebra dos papéis de gênero — como um homem usando rabo-de-cavalo, por exemplo — for lidado como algo mau, somente provocará um fortalecimento dos papéis de gênero heteronormativos. Os vilões da Disney devem ser maus, esse é o papel deles, mas não porque são “homens afeminados” ou “mulheres masculinizadas”.

Mulan

Percebe-se, então, um padrão no discurso da Disney sobre seus personagens: os protagonistas são hiper-heterossexuais e os antagonistas quebram com esses padrões. Em Mulan (1998), entretanto, a situação foge desse padrão. A obra é uma adaptação de um poema popular chinês em que uma jovem mulher se traveste com indumentária masculina para se unir ao exército no lugar de seu pai doente.

Enquanto no poema Mulan se traveste em busca da aprovação de seus pais, no filme a motivação está mais atrelada a uma crise identitária por parte da protagonista. Sendo assim, de acordo com Gwendolyn Limbach (2013, p. 115): “com essa adaptação, a Disney não somente aflora um lado jovial americano à história, como também reorganiza a trama sob a ótica ocidental dos contos de fadas”.

A história começa quando o exército huno atravessa a Grande Muralha da China, iniciando uma guerra. Com isso, o imperador chinês convoca um homem de cada família para combater os invasores. Sendo seu pai doente o único homem disponível em sua família, Mulan crê que ele viria a falecer em combate, o que a faz tomar seu lugar. À primeira vista, toda a situação parece levantar um discurso progressista do papel da mulher e sugere uma quebra da hiper-heterrosexualidade características das princesas da Disney.

Todavia, Limbach aponta que:

“O travestimento coloca a questão, quando se pauta em artefatos indumentários na designação de gêneros (garotas usam rosa e garotos azul, por exemplo), como se interpreta um gênero que viola tais designações? […] Ao invés de problematizar os limites entre gêneros, Mulan continua diferenciando os conceitos “axiomáticos” do que é feminino e do que é masculino” (LIMBACH, 2013, p. 116).

Percebe-se, então, como Mulan, apropria-se da desconstrução dos limites de gênero provocada pelo travestimento somente para fortalecer os já estabelecidos papéis de gênero levantados pela heteronormatividade. Além disso, o filme normaliza a história da personagem travestida através do progresso narrativo. Como Limbach diz: “Mulan sempre tem uma razão para explicar seu travestimento, seja para resguardar a vida de seu pai ou para provar que ela pode ser bem sucedida” (LIMBACH, 2013, p. 122). Ou seja, sempre há uma justificativa para a transgressão. Para mais, tal rompimento não ocorre para que ela adquira um poder cultural negado pelo seu gênero, tampouco para um descobrimento pessoal e sexual. Toda a questão é demonstrada, primeiramente, como piedade paternal e, posteriormente, para encontrar seu papel na sociedade.

Regressando à história, Mulan é apresentada quando está prestes a passar pela avaliação da casamenteira local. Tal avaliação consiste no julgamento de habilidades que uma esposa deve possuir e compõe o ritual de passagem para a vida adulta da mulher na sociedade chinesa, pautada, portanto, pelo casamento — algo que confirma os impulsos heteronormativos. As exigências da avaliação são todas as características já recorrentes às princesas das outras animações da Disney: delicadeza, refinamento, postura, graça e traços físicos femininos esculturais, como uma cintura fina, por exemplo. Ou seja, sob o escopo fortemente estabelecido pelas outras protagonistas da Disney, Mulan então começa o filme falhando em seu papel como princesa. É nesse contexto que ocorre a convocação para o exército e o ato de se travestir é apresentado na narrativa.

Nessa situação, Mulan assume a identidade de Ping e chega ao acampamento do exército onde começará o treinamento junto dos outros soldados. Toda essa passagem apenas fortalece os papéis de gênero. “Se a noiva é a personificação do artefato cultural da mulher no filme, o soldado é o do homem” (LIMBACH, 2013, p. 119). Ao longo da preparação dos soldados, inúmeras vezes são utilizadas expressões que fortalecem claramente os papéis de gênero, como: “seja homem” ou “não seja tão garotinha”.

Ainda de acordo com Limbach:

“Enquanto narrativas de cross-dressing são normalmente utilizadas para abrir possibilidades de estruturas de poder alternativas, o filme nega essa possibilidade por constantemente delinear os limites de masculino e feminino. Mesmo que Mulan seja vista como homem por seus companheiros de exército (por um tempo), ela é constantemente designada como mulher para a audiência” (LIMBACH, 2013, p. 119).

Nesse cenário, além disso, é introduzido o interesse amoroso de Mulan pelo responsável por seu treinamento: o capitão Li Shang, o qual reafirma toda a questão dos príncipes extremamente masculinos.

Após o fim do treinamento, os soldados partem para enfrentar os hunos. Ao longo da batalha, Ping atira um foguete em um pico, que provoca uma avalanche garantindo a vitória chinesa. Contudo, é ferido e acaba sendo levada para tratamento, o que revela sua identidade como mulher. Nesse momento, ocorre mais uma confirmação dessa designação de gênero: enquanto Ping era visto como herói, Mulan é tratada como traidora e é condenada a morte. Contudo, Li Shang poupa sua vida e a abandona na montanha enquanto parte com os soldados para receber as honras do imperador.

Abandonada na montanha, Mulan percebe que o vilão Shan Yu e alguns capangas haviam sobrevivido e partiam rumo à capital. Assim, ela segue atrás dos ex-companheiros para alertá-los do perigo iminente. Quando os alcança, ela é desacreditada. Porém, durante a cerimônia de congratulação da tropa, Shan Yu surge e captura o imperador dentro do castelo. É, então, que outra vez o travestimento surge como solução narrativa: Mulan, acompanhada de três soldados, invadem o castelo e se vestem como concubinas para distrair os capangas de Shan Yu, para que Li Shang consiga salvar o imperador.

Como Limbach afirma, esse caso de transgressão possui um tom de paródia, o que novamente confirma os papéis de gênero. À medida que uma mulher se vestir de homem evoca poder, o contrário é tratado como comédia. “Enquanto Mulan precisa se passar por homem para resguardar a honra familiar e não ser morta por traição, os homens não tentam realmente se passar por mulher, eles se mantem apenas como homens em roupas de mulher”. Ou seja, a piada por detrás dessa cena é pautada por um humor segregativo e não como uma justiça poética.

Com o imperador resgatado, resta a Mulan o papel de enfrentar o antagonista. Ela o derrota com a ajuda de Mushu e, em seguida, encontra com seus companheiros. Nesse momento, o imperador surge e inicia em tom de punição a listar todas as irregularidades cometidas por Mulan, porém finaliza com “mas ela salvou a nós todos” e a oferta um cargo em seu conselho, o qual Mulan nega. O imperador, desta maneira, entrega a espada de Shan Yu e a protagonista retorna para casa.

Já em casa, Mulan entrega a espada do líder huno para seu pai e, em seguida, recebe a visita de Li Shang, que finaliza o arco narrativo amoroso despertado durante o treinamento. A confirmação se dá quando ela oferece para ele “ficar para o jantar”. Contudo, a entrega da espada, juntamente do encontro com Li Shang e o retorno para casa apenas ratificam o papel de gênero e principalmente os impulsos heteronormativos constantes nas animações da Disney.

Conforme conclui Limbach:

“O desejo pela casa, a entrega de sua espada para seu pai e, finalmente, a chegada de Shang para cumprir o papel de príncipe encantado servem para colocar um agente limiar e redesignar Mulan como totalmente feminina. Então, o ápice de seu desenvolvimento, de acordo com a Disney, não é quando ela recebe a espada de seu inimigo como troféu pelo imperador, mas sim quando Shang vem e ‘fica para o jantar’. A história de Mulan começa com transgressão e conclui com a total confirmação desses valores” (LIMBACH, 2013, p. 125–126).

Portanto, como questionado no início do artigo, nos termos de Limbach, Mulan não funciona como um exemplo de obra representativa trans e é apenas mais um exemplo de confirmação e fortalecimento dos papéis de gênero na filmografia da Disney. Apesar de, desta vez, os comportamentos que quebram com os padrões heteronormativos estejam alinhados aos protagonistas, tais comportamentos são inseridos em um discurso que ainda marginaliza tais traços. Ou seja, a Disney utiliza de fatos de significância progressista para reafirmar sua própria mensagem tradicional de papéis de gênero.

Referências bibliográficas

PUTNAM, Amanda. “Mean Ladies: Transgendered Villains in Disney Films”. In: CHEU, Johnson. Diversity in Disney films: Critical essas on race, ethnicity, gender, sexuality and disability. Carolina do Norte: McFarland & Company, Inc., 2013.

LIMBACH, Gwendolyn. “‘You the Man, Well, Sorta’: Gender Binaries and Liminality in Mulan”. In: CHEU, Johnson. Diversity in Disney films: Critical essas on race, ethnicity, gender, sexuality and disability. Carolina do Norte: McFarland & Company, Inc., 2013.

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