Uma leitura musical queer da websérie “Girls in The House” no contexto hipermídia

Bezz
Musicais: Utopias (Queer) no Audiovisual
10 min readAug 27, 2018

Resumo: Com o advento das novas mídias digitais e novos meios de veiculação e difusão de obras audiovisuais, como é o caso do youtube, um novo formato de produção audiovisual tem chamado atenção, as webséries. Uma delas, das brasileiras mais conhecidas, é Girls in The House, que inova na experiência ao mesclar em suas publicações a programação dos episódios regulares da série, spin-offs e videoclipes da protagonista Duny, proporcionando experiência hipermidiática ao espectador.

Fesde a publicação da World Wide Web nos anos 90, é criado o termo “hipermídia”, que posteriormente vai ser reincorporado por estudiosos na área da comunicação. O conceito é bastante simples, a rede mundial de computadores funciona como um sistema de armazenamento e acesso a documentos interligados em hipermídia através da internet. Esses documentos podem se inserir em forma de vídeos, textos, áudios, figuras, entre muitos outros. A ideia de que todos esses documentos estão interligados em hipermídia significa que o acesso de um leva a outro, que por sua vez leva a outro e assim por diante. Além disso, as relações entram todas em convergência quando aqueles que acessam informações publicadas por outros usuários são também aqueles que publicam informações.

No âmbito da Narratologia (TODOROV, 1982) e do audiovisual, este conceito, primeiramente mais técnico, se insere de forma a modificar a experiência vivida pelo público espectador (GOSCIOLA, 2008). Isso significa que enquanto antes as séries, novelas para televisão, cinema e produções audiovisuais em geral respeitavam uma linearidade temporal e lógica imposta tanto pelos realizadores de cada obra quanto pelos meios e plataformas de difusão, hoje, na hipermídia, a experiência audiovisual se insere em rede, tornando, portanto, diferente a forma de produção, difusão e recepção do público.

Mais especificamente sobre a experiência do YouTube, a plataforma inovou na diversificação e democratização das produções audiovisuais e do acesso ao conteúdo. Além disso, em JENKINS (2010), a relação entre o produtor de conteúdo e o espectador entra em convergência, uma vez que o espectador se torna também um tipo de co-produtor. “Os fãs são o segmento mais ativo de audiência midiática, segmento esse que se recusa a simplesmente aceitar o que lhes é dado, mas insiste no direito de se tornarem participantes íntegros” (JENKINS, 2010). Do ponto de vista do espectador, a vantagem da plataforma YouTube como meio de difusão de conteúdo midiático é a de que a interação com o realizador se torna menos verticalizada (LISBOA, FERREIRA E SANTOS, 2018), tornando mais direta a comunicação entre quem cria e quem assiste através dos comentários em cada vídeo e das opções de “gostar” e “não-gostar” disponíveis na plataforma.

No Brasil, em 2015, um estudo realizado pela ThinkGoogle constatou que os vídeos na internet fazem parte da rotina de 69% das pessoas que assistem televisão no país, e que desse número, 95% acessam vídeos através do Youtube. De acordo com o mesmo site, nos dois anos conseguintes a plataforma cresceu 54% e em 2017, 95% da população online acessa a plataforma pelo menos uma vez por mês. Os números são impressionantes e revelam uma urgência pelo acesso ao conteúdo audiovisual por parte da população brasileira. Conteúdo audiovisual esse que se insere no modelo de hipermídia do YouTube com uma experiência diferenciada daquela da televisão e do cinema.

No que se trata de narrativas para YouTube, a websérie se insere como um novo produto sobre o qual ainda há a necessidade de se desenvolver estudos. Vale destacar que a idealização do termo websérie se deu antes mesmo da World Wide Web se consolidar, em 1988, mas só foi se concretizar posteriormente, em 1995 (HERGESEL, 2016). Suas limitações, seu meio de difusão, seu público-alvo e o contexto no qual se insere na sociedade funcionam como pontos para distinguir este formato de outros já conhecidos e estudados. Hergesel (2016), em seu artigo “As webséries enquanto campo de estudo da Narratologia”, ainda defende a necessidade de se estudar as webséries enquanto narrativa midiática.

Hergesel explicita a dificuldade de se determinar dentro de qual tipo de narrativa a websérie se insere. O texto não se preocupa em encontrar respostas mas apresenta os distintos pontos de vista de autores variados sobre o assunto. Há autores que defendem a websérie como narrativa hipermídia, outros como uma narrativa transmídia, outros crossmídia e ainda multimídia. A defesa de cada um não importa dentro desta análise, e o autor ainda se preocupa em alertar que “ainda que crentes na relevância de uma definição, é notável a complexidade do objeto e o fato de ele ainda estar compondo sua iden­tidade” (HERGESEL, 2016, p. 7). Dentro desta análise, de uma forma geral entende-se que independente de qual tipo de narrativa a websérie se enquadre, ela será sempre uma narrativa midiática.

Para este artigo, pretendo analisar um produto em questão, a websérie brasileira Girls in The House, do canal no Youtube RaoTV, do autor Raony Phillips. A análise vai buscar defender o fato de a websérie se caracterizar como uma obra de comédia e suspense musical partindo da premissa de que a experiência do espectador é hipermidiática e transmidiática. A possibilidade de não inclusão em nenhuma dessas categorias também é válida, uma vez que é muito recente a produção audiovisual em hipermídia, de forma que esta ainda não tenha se consolidado e ainda se encontre em constante construção identitária. A base para a pesquisa se dará nos autores previamente citados, levando em consideração os estudos da hipermídia e ainda o público-alvo/público co-produtor da série, majoritariamente jovem e LGBT.

“Girls in the House” como produto musical queer

Uma websérie se caracteriza por uma obra audiovisual com episódios serializados inspirada em séries para a TV, produzida para ser veiculada aos ciberespaços. A primeira característica que a diferencia de séries televisivas é a de que seu objetivo não é comercial, mas sim o de resgatar o público jovem para as narrativas serializadas dentro de uma nova plataforma, que dialogue melhor com este público-alvo. Além disso, acredita-se que a democratização do YouTube no que se refere à produção de conteúdo abriu portas para experimentações artísticas, técnicas e da narrativa que não seriam possíveis dentro de emissoras fechadas de televisão (HERGESEL, 2015).

Partindo desse princípio, tudo é válido e o poder reside sobre o dono do canal no YouTube, figura essa que decide o que será publicado e como se deseja publicar. O diálogo com seu público é mais direto e o acordo entre as duas partes mais transparente. Isso significa que a experimentação é livre.“A maior parte do que artistas amadores criam é terrivelmente ruim, ainda assim uma cultura em ascensão precisa de espaço onde pessoas tenham a liberdade para criar arte ruim, receber feedback e melhorar” (JENKINS, 2010, p. 6).

Dentre todas as diferentes experimentações em Girls in The House, me atento para algumas delas: 1) a não linearidade das publicações do canal; 2) as diferentes obras audiovisuais (spin-offs, videoclipes, jornalismo) publicadas no canal que se interligam em hipermídia; 3) a importância dos spin-offs da série para a popularidade da mesma; e 4) os videoclipes de autoria da personagem Duny para a comercialização da personagem e consequentemente da série. Deixo por último a experimentação musical da personagem Duny pois é ela que contribuirá para a caracterização da série como uma obra musical.

Começando pela não linearidade de publicação no Youtube. Dentro de um canal, é permitida uma organização de conteúdo bastante confusa. Na página “vídeos” é possível encontrar todos os vídeos já publicados pelo canal organizados em algumas opções que o internauta deve fazer: por ordem cronológica ou relevância. Além disso, existe a possibilidade de organização de um canal através de playlists, que permite, no caso do canal RaoTV, a separação dos episódios de Girls in The House por temporadas e ainda do resto do conteúdo do canal, lá inclusos os videoclipes e os spin-offs. Com o recurso das playlists não importa que vídeo tenha sido publicado antes de que vídeo, desde que seja tudo organizado em suas playlists. A começar por aí, todos os episódios de Girls in The House já publicados estão entrelaçados por episódios do spin-off, Disk Duny, dos videoclipes de Duny, entre outros.

O internauta, ao optar por um vídeo, quando na página de visualização, se depara com diversos outros vídeos sugeridos no canto da tela. A vantagem de cada episódio de uma websérie possuir curta duração, se comparados aos episódios de uma série televisiva, é que o consumo de conteúdo se torna mais rápido e diversificado. O internauta possui inclusive a opção de avançar o episódio o quanto quiser, voltar caso deseje rever algo e até mesmo de seguir para outros vídeos se bem desejar, recursos impossíveis na televisão.

É aqui que bem observamos a hipermídia na websérie: é um vídeo que leva a outro e que leva a outro, não necessariamente respeitando uma ordem cronológica. Os vídeos sugeridos são selecionados pela plataforma através de um algoritmo que identifica os vídeos de maior interesse para o internauta baseado em suas buscas prévias. Isso quer dizer que, ao assistir a websérie, podem lhe ser sugeridos outros vídeos fora da continuidade dos episódios, sejam eles os spin-offs ou mesmo os números musicais da Duny. Tudo isso interligado acaba fazendo parte da experiência do internauta para com a websérie.

Sendo assim, torna-se impossível analisar uma websérie isoladamente do resto de conteúdo publicado dentro de um mesmo canal, sobretudo se a maior parte deste conteúdo for ainda relacionado com as personagens da série e os acontecimentos que permeiam o seu público-alvo, no caso de Girls in The House, jovem e LGBT.

Um fato interessante a ser levado em consideração é o de que a popularidade do canal se deu a partir do vídeo “Kim expõe Taylor”, o terceiro episódio do spin-off Disk Duny, quando as publicações do canal já haviam completado dois anos. (GESSWEIN, 2017). Segue abaixo tabela exposta por Gesswein em sua pesquisa.

Gesswein deixa claro em sua pesquisa como o número de acessos ao primeiro episódio da websérie aumentou consideravelmente logo após a publicação de dois importantes marcos. Marco 1: o vídeo “Kim expõe Taylor” e o Marco 2: o anúncio de que a websérie entraria na programação do canal de televisão TNT.

A fórmula do Girls in The House é bastante simples: a websérie combina elementos da cultura pop, piadas escrachadas, uma edição bem executada e apresenta uma série de intertextualidades atreladas a tópicos de tendências online do momento em que os episódios são produzidos (GESSWEIN, 2017, p.8).

Ao relacionar as personagens da série com os acontecimentos do mundo pop do momento, o autor cria identificação do público para com a história, gerando atrativo para o canal.

Visto isso, entende-se que publicações fora da narrativa linear da websérie ainda façam parte do conteúdo da obra como um todo e que interfiram na experiência que o público vai ter, tornando-a ainda mais rica e experimental. Sendo assim, os videoclipes de Duny funcionam quase que como números musicais dentro do universo de Girls in The House, tornando possível categorizar a websérie como musical.

Por último, pretendo analisar um dos videoclipes de Duny: Manequim.

O videoclipe em questão foi até o momento a maior conquista na carreira musical que o autor Raony Phillips tem desenvolvido para sua protagonista Duny. O vídeo foi divulgado no meio do período de publicação da terceira temporada da websérie. A música se encontra disponível no Spotify e na Apple Music, sem falar da quantidade de visualizações no YouTube. A partir do momento em que o universo narrativo se expande e atinge outras mídias, entende-se esta narrativa como transmídia, “que se desenrola por meio de múltiplos canais de mídia, cada um deles contribuindo de forma distinta para a compreensão do universo narrativo” (AERAPHE, 2013, p. 13).

A influência queer no videoclipe começa a partir do momento em que, apesar da certeza sobre o gênero de Duny, nota-se sua não binaridade devido ao fato de ser dublada pelo próprio autor Raony. Para Butler: "O gênero é uma complexidade cuja totalidade é permanentemente protelada, jamais plenamente exibida em qualquer conjuntura considerada" (BUTLER, 2003, p.37). Mesmo dentro da própria série há personagens que duvidem do gênero de Duny.

O videoclipe segue o estilo de videoclipes pop pós MTV, com diversos planos dinâmicos, coreografados e não-realistas, estilo que dialoga diretamente com as influências do público alvo principal do canal. O exagero se marca nas coreografias e nos personagens de manequins dançantes, tirando a personagem da condição de ignorada por aquele por quem tem interesse para aquela que encontra as soluções para os seus problemas dentro de um número musical.

Considerações finais

Neste artigo procurei defender que, para o espectador, a experiência de uma websérie não se completa em si mesma. A análise considerou todas as publicações de um mesmo canal, abarcando todo o universo de Girls in The House produzido e veiculado ao YouTube. Isso só se torna possível com as novas formas de experimentação possibilitadas pelo crescimento do YouTube na última década e com a concretização do audiovisual nas hipermídias. No caso específico da websérie analisada, Girls in The House, o fato de vídeos fora da cronologia das temporadas se incluírem como importantes para a experiência completa do internauta levam a crer que a mesma seja não somente uma comédia e suspense como também uma obra musical.

Referências bibliográficas

AERAPHE, Guto. Webséries: criação e desenvolvimento. Belo Horizonte: [edição do autor], 2013.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero — Feminismo e subversão da identidade. Civilização Brasileira, 2003.

GESSWEIN, Kim. A produção de conteúdo da websérie Girls In The House no YouTube e as suas intersecções com a televisão fechada. Curitiba, PUC-RS, 2017.

GOSCIOLA, Vicente. Roteiro para as novas mídias: do cinema às mídias interativas. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008.

HERGESEL, João Paulo. As webséries enquanto campo de estudo da narratologia. 2016. Disponível em: http://dx.doi.org/10.5902/2316882X16241

HERGESEL, João Paulo. A websérie enquanto processo comunicacional no contexto da cultura da convergência e os alicerces midiáticos necessários para sua roteirização. São Paulo, Universidade de Sorocaba, 2015.

JENKINS, Henry. Cultura da convergência. 2. ed. São Paulo, SP: Aleph, 2010.

LISBOA, Aline; FERREIRA, Flávio; SANTOS, Alice. Ficção de fã no Youtube: do jogo The Sims 4 à web série Girls in the house. Disponível em: http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/tematica/article/view/37950. 2018

THINKGOOGLE. Disponível em: https://www.thinkwithgoogle.com/intl/pt-br/advertising-channels/busca/pesquisa-revela-intimidade-dos-brasileiros-com-o-youtube/ e https://www.thinkwithgoogle.com/intl/pt-br/youtubeinsights/2017/introducao/

TODOROV, Tzvetan. A gramática do Decameron. São Paulo: Perspectiva, 1982.

RAO TV. Disponível em: https://www.youtube.com/channel/UCFzNesgMSlpWPFWLMSJoetQ. Acesso: 12 jul. 2018.

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