Liberdade, Beleza, Verdade e Amor: o Camp em “Moulin Rouge!”

Gabriel Alves
Musicais: Utopias (Queer) no Audiovisual
11 min readAug 27, 2018

Resumo: O objetivo do artigo a seguir é fazer uma leitura do Camp no filme “Moulin Rouge!” de Baz Luhrmann (2001), sugerindo assim a possível existência de uma utopia Queer, principalmente através de signos não representacionais. Tal leitura parte dos conceitos de Camp formulados por Susan Sontag em “Notas sobre o Camp” e sua especificação enquanto sensibilidade gay, formulada por Jack Babuscio em seu texto “Camp and the Gay Sensibility”.

A abertura de Moulin Rouge! emulando um palco teatral

Moulin Rouge! Amor em vermelho” é um filme australiano-estadunidense lançado em 2001 e dirigido por Baz Luhrmann. O musical é um jukebox, ou seja, utiliza músicas já existentes para a coposição de sua trilha. A trama principal fala sobre o triangulo amoroso formado por Satine (Nicole Kidman) e Christian (Ewan McGregor), protagonistas da história e o antagonista Duque de Monroth (Richard Roxburgh). Christian é um poeta que se muda para Montmartre, um distrito de Paris, e descobre — de uma forma bem inusitada — que seus vizinhos são artistas integrantes do movimento boêmio. O grupo então o convence de utilizar suas habilidades para escrever um espetáculo, na intenção de vendê-lo a Harold Zidler (Jim Broadbent), dono do cabaré conhecido como Moulin Rouge. O cabaré é o lar de Satine, a cortesã mais famosa e desejada de Montmartre. O triangulo amoroso começa após Henri de Toulouse-Lautrec (John Leguizamo) prometer para Christian um encontro com Satine, sem saber que Harold Zidler já havia combinado com a mesma um encontro com o Duque.

Ao analisarmos o filme, pode ser difícil observá-lo sob uma perspectiva que o encaixe enquanto um produto capaz de oferecer qualquer leitura de utopia Queer, já que o enredo principal trata-se de um triangulo amoroso heterossexual entre Satine, Christian e o Duque. De fato, o roteiro e a mise-en-scène estão apoiados no padrão cisgênero e heterossexual em praticamente todos os momentos do filme e não há (ou, pelo menos, não se nota) qualquer representatividade LGBT aparente. A possível leitura de utopia Queer que quero sugerir está, em sua maior parte, contida em aspectos não representacionais do filme — isto é, nos elementos de sua composição em detrimento do que essa composição irá representar explicitamente — , por isso pode ser difícil de ser percebida na primeira análise, levando em consideração que costumamos nos atentar mais para os signos representacionais de qualquer obra. No entanto, ainda que em momentos bem pontuais, podemos identificar a incorporação de elementos Queer também por esses signos representacionais e, em busca dessa leitura utópica, pretendo analisar o conceito do Camp como sendo o responsável por construir essa utopia tanto no nível representacional quanto — e principalmente — no não representacional.

Quando penso em utopia Queer, levo em consideração o texto de Richard Dyer “Entretenimento e Utopia” para pensar nas possibilidades utópicas dentro de um musical. Segundo ele, o utopismo pode ser dado como certo quando impulsiona aspectos como uma fuga ou satisfação de desejo; quando o entretenimento apresenta uma imagem de algo melhor do que é na vida real (DYER, 2002, p. 20). No que tange às questões LGBT/Queer, tais utopias podem representar a aceitação da nossa comunidade e nossa cultura, já que essa aceitação é correspondente ao oposto positivo do que acontece na realidade: um mundo hostil e opressor. Nesse artigo, tentarei demonstrar como o utopismo Queer pode ser observado em Moulin Rouge! principalmente através do Camp, no nível representacional (figurativo) e no não representacional (abstrato), utilizando como base as definições de Susan Sontag em “Notas sobre o Camp” e Jack Babuscio em “Camp and the gay sensibility (The Cinema of Camp)”.

Para tanto, antes de entrar na discussão sobre o representacional, acho importante esclarecer que nesse momento minha análise pretende explorar pouco o Camp como é conceituado por Babuscio, focando mais na definição de Susan Sontag de Camp como algo altamente estilizado e artificializado (SONTAG, 1964, p. 2); meu olhar está atento em sequências onde exista uma demonstração “superficial” da utopia Queer. Em outras palavras, estou mais interessado em como a utopia aparenta do que como ela se organiza, funciona ou sente, visto que a análise de agora se dará em cima de figuras representacionais criadas ou totalmente vinculadas à cultura LGBT. Acho também importante chamar atenção para o fato de que esses momentos podem ser vistos como dicas explícitas da sensibilidade gay, que permeia a representação abstrata de Moulin Rouge!.

O primeiro momento em que podemos observar a utopia Queer no nível representacional está no encontro de Christian com o grupo dos artistas boêmios, liderado por Henri de Toulouse-Lautrec. Christian está prestes a começar a escrever uma história de amor quando um dos componentes do grupo boêmio — o ator argentino que sofre de narcolepsia — atravessa o teto de Christian. A partir desse evento o grupo é introduzido e junto deles os primeiros signos representacionais de elementos Queer: Toulouse-Lautrec, que se apresenta como homem cis, está caracterizado como uma freira (embora não esteja numa forma de freira tradicional). Na mesma sequencia ainda haverá outro participante do grupo de Boêmios que pode ser lido como um elemento representacional da cultura Queer; o personagem Audrey (David Wenham), que está travestido totalmente, inclusive utilizando-se do estilo drag. Aqui a minha ideia de utopismo Queer se baseia no fato de que a expressão de gênero é bastante oprimida na nossa sociedade (principalmente em 1899, época em que o filme se passa), no entanto isso não parece ser um problema para os Boêmios — que inclusive incorporam em seu lema “Verdade, Beleza, Liberdade e Amor” alguns aspectos que podem ser lidos como os ideais da causa LGBT, mas falarei disso mais tarde com o restante do não representacional.

À esquerda Toulouse-Lautrec travestido de freira e à direita Audrey

Um número musical importante para o representacional é o momento em que Harold Zidler tenta enganar o Duque sobre o paradeiro e a conduta de Satine. Os dois performam “Like a virgin”, de Madonna, enquanto Zidler se “traveste” de noiva (similar ao caso de Toulouse-Lautrec) ao colocar uma toalha na cabeça como o símbolo de um véu. Os dois entram num jogo de gato e rato, enquanto Zidler incorpora a imagem de noiva inocente e virgem — a imagem que ele tenta vender como explicação para o sumiço de Satine — enquanto o Duque o persegue. Zidler é uma figura levemente irônica[1] desde sua primeira aparição, no número que apresenta o Moulin Rouge (sua caracterização; a maquiagem que ele utiliza), mas é nesse número que ele expressa totalmente a sua ironia ao performar utilizando códigos que são associados ao gênero feminino (noiva; negação da masculinidade).

Harold Zidler travestido de noiva enquanto performa “Like a Virgin”, de Madonna.

O Duque, apesar de continuar a performar seu papel de gênero (que representa um homem cis, mesmo que não incorpore códigos reconhecidos como masculinos — por exemplo, a virilidade), está perseguindo outro homem no nível representacional, ainda que isso queira dizer “outra coisa” — neste caso, Zidler, de forma não representacional, é posto como uma mulher. Logo, num nível não representacional, o Duque persegue uma mulher enquanto o “contrário” nos é mostrado no nível representacional. Outras duas análises podem ser feitas nesse número no que diz respeito ao representacional: é o único número performado apenas por homens cujo coro também é composto por homens que apresentam uma coreografia inspirada em passos de balé.

Harold Zidler e o Duque no fim da performance.

Embora eu possa pontuar essas aparentes manifestações de utopismo Queer no nível representacional, a verdadeira utopia acaba sendo suprimida nesse nível graças aos demais elementos representacionais que reforçam os padrões de gênero e sexualidade, embora os elementos não representacionais reforcem a ideia de sensibilidade gay inclusive nesses momentos, como o caso do lema dos boêmios e o coro de dançarinos no número de “Like a virgin”. O verdadeiro triunfo desses momentos está em fortalecer os significados do não representacional, como veremos.

No nível do não representacional iremos encontrar a utopia Queer, inserida de forma significativa, em Moulin Rouge!. Richard Dyer sugere em seu texto “Entretenimento e Utopia” que os signos não representacionais são extremamente importantes na construção de códigos afetivos, responsáveis por atuar no nível da sensibilidade. Ao observarmos esses signos no filme é possível notar que um aspecto da cultura Queer é utilizado por várias das instâncias não representacionais e acabam caracterizando o que Jack Babuscio chama de fruto da sensibilidade gay: o Camp. Em busca de facilitar a nossa análise, gostaria de dividir o não representacional em duas categorias: a primeira categoria parte da observação semiótica dos elementos diegéticos e como eles funcionam para criar a utopia Queer a partir do que Jack Babuscio define como Camp. A segunda observa a incorporação de elementos representacionais extradiegéticos, que passam a ser ressignificados como elementos não representacionais (por exemplo na utilização de ícones gays do mundo real, que adquirem significados representacionais diferentes dentro da diegese).

Segundo Jack Babuscio quatro elementos são bases importantes para a formação do Camp: ironia, esteticismo, teatralidade e humor. A partir dessas definições faremos uma análise sobre o espetáculo que é o Moulin Rouge!, tentando estabelecer conexões que evidenciem o camp enquanto elemento Queer dentro do filme tanto nos números musicais quanto nos momentos falados.

A ironia, de acordo com Babuscio, acontece quando elementos contrastantes ou incongruentes se encontram. Ele exemplifica com o que, segundo ele, seria a utilização mais comum desse aspecto: a ideia de masculino/feminino. Ele também define que a ideia de homossexualidade enquanto desvio moral está no centro do aspecto irônico, já que a relação entre duas pessoas do mesmo gênero é vista como a maior das incongruências (BABUSCIO, 2004, p.120). Como já foi dito, o filme incorpora a ironia no nível representacional principalmente durante o número de “Like a virgin”. No nível não representacional podemos observar a presença da ironia em quase todos os aspectos do filme, por exemplo a sua narrativa tragicômica construída a partir de algumas referências do mundo da ópera como “La Bohéme” (Giacomo Puccini, 1896) e “La Traviata” (Giuseppe Verdi, 1856), enquanto observamos o fato de que a Paris de 1899 está repleta de referências posteriores, principalmente no caso dos números musicais, que são criados a partir de músicas Pop.

O esteticismo, cuja definição de Babuscio se aproxima da definição de Sontag, podemos perceber um grande nível de estilização, tanto nos figurinos das cortesãs quanto na construção de cenários, sendo incrivelmente detalhados e extravagantes. Tanto os primeiros números musicais performados no cabaré (“Zidler’s Rap Medley” e “Sparkling Diamonds”) quanto nos últimos (“Hindi Sad Diamonds Medley”, “Come What May” e “ Coup d’État/Finale”) transmitem muito bem a estética exuberante e burlesca que o filme adota. A montagem acelerada antes da aparição de Satine e os momentos em que a imagem se torna lenta (evocando também a questão da ironia) tentam evidenciar, de forma semiótica, toda a energia posta em tela.

À esquerda “Zidler’s Rap Medley” e à direita “Hindi Sad Diamonds Medley”

A teatralidade também é um dos elementos que mais oferece leituras para esse filme, principalmente através da performance de Nicole Kidman como Satine. O filme, desde a abertura, sugere essa teatralidade ao evocar as cortinas vermelhas que se abrem para o espetáculo prestes a começar. Fazendo isso o filme pode sugerir uma camada extra para a diegese, também sugerindo a teatralidade em todos os momentos e não apenas nos momentos em que Satine performa como atriz, seja se apresentando no Moulin Rouge ou enganando o Duque. Logo, todos os elementos em tela podem ser teatrais e, se assim forem, Satine vai um nível além por trazer essa teatralidade para uma diegese já teatral. Além disso vale citar “Sparkling Diamonds”, o primeiro número de Satine, onde ela encarna Marilyn Monroe (Diamonds are a girl’s Best friend) e Madonna (Material Girl), dois ícones na cultura gay.

Segundo o Raymond Knapp em seu livro “The American Musical and the performance of personal identity”, a leitura Queer de Moulin Rouge vai além do que já citei:

Pouco coincidentemente, muitos dos exageros de Moulin Rouge! envolvem características definidoras de caráter associadas à homossexualidade: a dicção afeminada e cínica de Toulouse-Lautrec e do duque, a bobice assexuada de Zidler, a briga hipersensível entre os boêmios […] e sua resposta boquiaberta ao enorme “talento” de Christian, […] a presença tanto da lua que canta opera e da Fada Verde. (KNAPP, 2006, p.110)

Para além dessas definições podemos analisar outros significados que se relacionam com a causa LGBT, por exemplo a primeira dica que o filme dá: o lema dos Boêmios “Verdade, Beleza, Liberdade e Amor”, que representa muito bem alguns ideais da causa LGBT, afinal de contas tudo que queremos é sermos nós mesmos, livres para amar. Junto disso podemos pensar no próprio Moulin Rouge enquanto um elemento não representacional — isto é, se observarmos quais qualidades abstratas o cabaré representa, podemos ver um “lugar onde a fantasia é real, onde um[2] pode ser qualquer coisa que quiser”. Essa é a descrição que o trailer do filme faz da casa noturna e o que poderia ser mais representativo para uma pessoa LGBT do que um lugar onde ela pode ser quem ela quiser? Harold Zidler reforça tal interpretação em seu primeiro número (“Zidler’s Rap Medley”), cantando “lá fora pode estar chovendo, mas aqui dentro nos entretemos!” e “lá fora pode ser trágico, mas aqui sentimos o que é mágico”[3]. Outro momento igualmente importante seria o confronto entre Zidler e Satine, onde ele a diz “nós somos criaturas do submundo, não podemos nos dar ao luxo de amar”, algo que também ecoa na comunidade LGBT num nível não representacional.

Outra forma de reconhecimento está nas figuras não representacionais extradiegéticas. Em outras palavras, trata-se de elementos que são reconhecidos como ícones gays no mundo real mas dentro da diegese não assumem esse papel. É o caso da aparição de Kylie Minogue como a fada do absinto, os números musicais que envolvem Madonna, Marilyn Monroe, Diana Ross e Elton John, por exemplo.

Kylie Minogue caracterizada de Fada do Absinto

Moulin Rouge! vai muito além do que sua trama majoritariamente cis-hétero sugere. É um espetáculo visual e sublime que, em suas diversas camadas, demonstra a sensação da liberdade, beleza, verdade e principalmente, do amor.

[1] Aqui pensando em ironia como descrito por Jack Babuscio, que se refere à capacidade de apresentar duas forças opostas ao mesmo tempo.

[2] A fala original do trailer é “[…] onde ele poderia ser quem ele quisesse” se referindo ao personagem Christian.

[3] Tradução livre de “Outside, it may be raining, but in here it’s enterteining!” e “Outside, things may be tragic, but in here we feel it’s magic

Referências Bibliografícas:

BABUSCIO, Jack. Camp and the Gay Sensibility. In: GRIFFIN, Sean; BENSHOFF, Harry M.. Queer Cinema: The Film Reader. Nova Iorque: Routledge, 2004. p. 121–136.

DYER, Richard. Entertainment and Utopia. In: DYER, Richard. Only Entertainment. 2. ed. Nova Iorque: Routledge, 2002. Cap. 5. p. 19–35.

KNAPP, Raymond. The Movie Musical. In: KNAPP, Raymond. The American Musical and the Performance of Personal Identity. Pricenton: Princeton University Press, 2006. p. 102–110.

YANG, Mina. Moulin Rouge! and the Undoing of Opera. Cambridge Opera Journal, [s.l.], v. 20, n. 03, p.269–282, 12 jul. 2018.

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