Willy (Queer) Wonka: um estudo sobre o personagem de “A Fantástica Fábrica de Chocolate” de Tim Burton

Pablo Félix
Musicais: Utopias (Queer) no Audiovisual
11 min readAug 27, 2018

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Resumo: O objetivo deste artigo é tratar a construção do personagem Willy Wonka com uma visão queer, tendo como principal referência o filme A Fantástica Fábrica de Chocolate (Tim Burton, 2005). Faz parte da proposta, ainda,estabelecer ligações com a versão anterior para cinema (dirigida por Mel Stuart em 1971) e o livro de Roald Dahl de 1964, no qual as duas obras fílmicas foram baseadas. O visual camp do personagem e do filme também serão observados.

A Fantástica Fábrica de Chocolate (Tim Burton, 2005)

A história do livro Charlie and the Chocolate Factory, escrito por Roald Dahl e lançado em 1964, é de conhecimento mundial. Já até ganhou duas versões para o cinema, Willy Wonka & the Chocolate Factory, de 1971, dirigida por Mel Stuart, e Charlie and the Chocolate Factory, de 2005, dirigida por Tim Burton, ambas lançadas no Brasil sob o título de A Fantástica Fábrica de Chocolate.

Em suma, a narrativa de todas as versões é semelhante, havendo diferenças pontuais em cada uma. A maior destas, porém, está na obra de Tim Burton, que adiciona um elemento de grande relevância, além de fazer modificações sobre o final original: o realizador mostra a infância de Willy Wonka, dado que não era presente em nenhuma anterior. No filme de Burton, o personagem era proibido de comer doces quando criança por seu pai, um dentista rigoroso. Após comer a primeira guloseima, o pequeno Willy desenvolve um amor incondicional pelo chocolate e decide virar doceiro, iniciando no futuro a sua própria fábrica de chocolate.

Posters dos filmes Willy Wonka & the Chocolate Factory e Charlie and the Chocolate Factory

Assim, o Willy Wonka de Johnny Depp mostra-se diretamente ligado à infância do personagem, tanto que não consegue ouvir e nem falar a palavra “pai”. O adulto Wonka exibe, também, uma postura infantilizada — ele implica com as crianças, faz um show de bonecos infantis em sua primeira aparição, tem elementos extremamente lúdicos e irreais em sua fábrica que podem ser ligados à imaginação acriançada, e não reage bem ao receber um “não” — como é visto quando Charlie rejeita assumir o papel de herdeiro da fábrica. A figura de Wonka é bastante singular. O corte de cabelo dândi vitoriano, as vestimentas chamativas com cores características e o próprio jeito de portar-se dado a ele por Depp, faz com que o personagem do filme de 2005 ganhe nuances andróginos — o próprio nome do confeiteiro já contribuia para essa determinação, Willy é um nome que não se apresenta socialmente ligado a nenhum gênero sexual. No livro The Queer Child, or Growing Sideways in the Twentieth Century, a autora Kathryn Bond Stockton lê o personagem de Depp como uma “criança queer crescida”.

[…] o filme faz a criança queer crescida (chamada Willy) sentar-se para jantar com a criança inocente (nomeada Charlie) de uma forma que deveria fazer os conservadores estremecerem […]. (STOCKTON, 2009, p. 238)

A interpretação de Depp e componentes da história tornam possível analisar Willy Wonka com uma orientação sexual não-hétero ou, até mesmo, assexual. Depois do doceiro dizer aos visitantes que o chocolate desencadeia a liberação de endorfinas — que dão uma sensação de estar apaixonado, por exemplo, a Sra. Beauregarde (Missi Pyle) tenta iniciar um flerte com o Willy que, visivelmente, não se mostra confortável com a situação. E ainda o enredo sugere a compreensão que ele não pode se procriar por algum motivo. Afinal, por que busca um herdeiro de uma maneira tão não habitual recorrendo a Bilhetes Dourados e uma visita a sua fábrica?

Charlie encontra o Bilhete Dourado

Charlie desempenha um papel importante na resolução do maior impasse da vida de Wonka. Por causa do pobre garoto, o chocolateiro se reconcilia, no fim da história, com o pai que não o deixava comer doces na tenra idade. Entretanto, desde o início da narrativa, o personagem de Depp se mostra uma pessoa reclusa e oprimida por sua trajetória familiar. Claramente, isso afetou em seu comportamento, construindo inclusive uma sensibilidade gay em Wonka, visto que seus modos e sua fábrica aludem a diversos traços de uma personalidade “colorida”:

Eu defino a sensibilidade gay como uma energia criativa que reflete uma consciência que é diferente do mainstream; uma consciência intensificada de certas complicações humanas de sentimentos que surgem do fato da opressão social; em resumo, uma percepção do mundo que é colorida, moldada, dirigida e definida pelo fato da não-heterossexualidade de alguém (BABUSCIO, 2004, p. 118).

Como Charlie conecta Wonka com o pai, Wonka conecta o garoto com o chocolate e a fábrica, apresentando ao menino o ambiente cheio de cores, formas divertidas e peças que não existem no mundo real. A sensibilidade gay do confeiteiro refletiu na criação do local lúdico em que faz os melhores e mais incomuns doces, local este repleto de elementos camp:

O termo “camp” descreve os elementos de uma pessoa, situação ou atividade que expressam ou são criados por uma sensibilidade gay. Camp nunca é uma coisa ou pessoa em si, mas sim uma relação entre atividades, indivíduos, situações e a não-heterossexualidade. (BABUSCIO, 2004, p.118)

Algo curioso, além do mais, é que essa conexão entre Charlie e a fábrica de Wonka iluminada de itens camp é premeditada no filme de Burton. Antes mesmo do garoto conhecer a fábrica, há um instante que pode ser lido como uma antecipação desse contato. Stockton remete a esse momento em seu texto:

E o que exatamente é — sorte, coincidência ou brincadeira visual? — o par de homens efeminados, passeando com seus cachorros, passando por Charlie pouco antes deste encontrar o dinheiro com o qual comprará o doce que traz um Bilhete Dourado? (STOCKTON, 2009, p. 239)

Homens passeando com cães próximo a Charlie

Wonka e Wilde

Em seu livro The Queer Child, or Growing Sideways in the Twentieth Century, Stockton explicita um interessante paralelo entre a aparência de Willy Wonka e Oscar Wilde, célebre escritor do século XIX e representante do esteticismo¹. Wilde era um indivíduo famoso por seu estilo, tido como um “exímio cavalheiro”, vestia-se sempre de forma característica, com casacos de veludo, cetim, grandes fivelas nos sapatos, cartola, e outras roupas específicas. Além disso, o comportamento do dramaturgo também era especial, seu bom humor, maneira de falar e excentricidade eram conhecidos. Pode-se ler Wilde como uma figura camp, assim como traçar um diálogo entre o camp e o esteticismo. Jack Babuscio faz isso no seu texto Camp and the gay sensibility:

Camp é estético de três formas relacionadas: como visão da arte; como visão da vida; e como tendência prática nas coisas ou pessoas: “É através da Arte, e apenas através da Arte, que podemos nos proteger dos perigos sórdidos da existência factual” (Wilde). […] A epigrama de Wilde aponta para um aspecto crucial esteticista do camp: a oposição à moralidade puritana. (BABUSCIO, 2004, p. 120)

Johnny Depp como Willy Wonka (à esquerda) e Oscar Wilde (à direita)

Ademais, o também poeta era simpatizante às ideias feministas e trazia em suas obras personagens gays, algo inaceitável na sua época. Além do mais, paralelamente a seu casamento, Wilde manteve casos homossexuais, o que era crime na Inglaterra do século XIX, país em que vivia, e isso lhe rendeu a prisão quando descoberto. À época, Oscar Wilde foi chamado, de modo pejorativo, de queer —termo que seria revalorizado e reapropriado posteriormente pelos movimentos LGBTQ+.

O próprio Willy tem um visual wildeano: cartola, um longo casaco aveludado e roxo, um tom sutil de batom e um corte de cabelo de pajem. E ele fala com as crianças de uma maneira que Wilde falaria: “Você é baixinha”, ele [Wonka] a repreende. “Somos crianças”, responde uma delas. “Isso não é desculpa”, responde ele, “eu nunca fui tão baixo quanto você.” (STOCKTON, , 2009, p.239)

Outros paralelos entre a interpretação de Johnny Depp e figuras famosas já foram traçados. O rosto pálido, a voz tímida e a própria fábrica, fez com que existissem ligações entre o personagem, Michael Jackson e Neverland, por exemplo. Todavia, tanto o ator quanto Burton negam o cantor como referência.

Os Oompa-Loompas

Na primeira versão do livro de Roald Dahl de 1964, os Oompa-Loompas eram descritos como pigmeus negros africanos. Em 1973, a descrição anterior foi revisada por Dahl e as características foram reescritas — agora eles eram brancos. Nessa versão, já eram nativos do país fictício Loompaland, um lugar em que estes corriam grande perigo com animais gigantes que os comiam e em que não conseguiam encontrar facilmente seu maior objeto de desejo, o cacau. Willy Wonka diz, tanto no livro quanto nos filmes, que visitou o tal país e ofereceu cacau para os pequenos seres para que estes fossem morar e trabalhar em sua fábrica.

A versão do livro difere, contudo, das dos filmes a partir daí. Na história original, os homens, mulheres e crianças Oompa-Loompas teriam ido para fábrica de chocolate e trabalhavam lá utilizando as roupas que usavam na floresta. No cinema, em ambas as obras, eles mostram uniformidade, todos têm características parecidas tanto físicas quanto de vestimenta. Mel Stuart, em 1971, os retrata como pequenos homenzinhos de pele laranja e cabelo verde que vestem sempre roupas brancas. Já na versão de 2005, Tim Burton dá a eles cabelo preto, pele marrom — características do ator queniano Deep Roy que interpretou todos os Oompa-Loompas da obra — e roupa própria por ocasião, mas que todos usam igual.

Oompa-Loompas de 1971 e Oompa-Loompas de 2005

Analisando apenas as obras fílmicas, os pequenos homenzinhos do filme de Mel Stuart e Tim Burton exibem diferenças que vão além do visual e físico. Em 2005, os Oompa-Loompas sempre aparecem nos números musicais em maior número do que na versão de 1971. Ainda, as coreografias das encenações apresentam características contrastantes. Enquanto, no primeiro filme, os homens laranjas efetuavam passos simples, sendo remetidos a alguns movimentos circenses, no segundo, eles mostravam grandes performances, misturando simplicidade com ações mais elaboradas, formando até mesmo desenhos produzidos por seus próprios corpos.

No livro, os Oompa-Loompas têm comportamento notório e são descritos como travessos. No filme de 2005, o humor ácido das pequenas figuras é perceptível em todos os números musicais. No filme, apenas eles são responsáveis pelas músicas dentro da fábrica. Todas as canções são interpretadas após a “eliminação” de uma criança, contendo na letra referências e críticas a esta. As canções são cheias de ironias e acidez que refletem ao humor dos Oompa-Loompas — e também de Wonka. Além disso, há adequações na coreografia ao ambiente e situação em que ocorreu a “eliminação”, utilizando diferentes passos de dança, figurinos e elementos na performance.

Logo no primeiro número musical, a canção “Augustus Gloop”, pode-se analisar tais elementos que estarão presentes ainda nos outros números. O primeiro garoto a encontrar o Bilhete Dourado é igualmente o primeiro a sofrer um acidente na fábrica caindo dentro do rio de chocolate e sendo sugado por um cano. Após o acontecimento, os Oompa-Loompas aparecem e começam pela primeira vez a performar para a “ocasião especial”. Inúmeros homenzinhos com roupas vermelhas brilhantes e penteados cheios de gel fazem movimentos sincronizados. Eles cBantam sobre o que aconteceu ao menino alemão e como irão “salvá-lo” da situação de uma maneira que aparentemente não será confortável a ele. Em certo momento, até vestem uma touca amarela de mergulho e dançam dentro do rio de chocolate.

“Nós temos que reconhecer
modificado deve ser
As engrenagens vão girar
para triturar e martelar

O porcalhão descomunal
vai ser amado afinal
Pois que irá desmerecer
um bom bocado de glacê…”

A grande quantidade de Oompa-Loompas nas apresentações em 2005, seus aspectos similares e formas nas coreografias mostram referências, inclusive, de números musicais produzidos por Busby Berkeley em seus filmes, em que havia grande quantidade de mulheres com aparências parecidas e que realizavam passos sincronizados em tela formando desenhos apenas com a forma humana.

Oompa-Loompas durante a canção Augustus Gloop e frame de Footlight Parade (1933), de Berkeley

Outro ponto interessante a se analisar é, além de exercer o papel de colonizador, Willy Wonka acaba transformando os Oompa-Loompa em um retrato de si mesmo e de seu exotismo. As figuras viram não só trabalhadores da fábrica de chocolate, mas, acima de tudo, uma extensão dela. É notável a influência do chocolateiro e de sua personalidade se observamos a maneira que os nativos de Loompaland se vestiam antes e após conhecerem o personagem de Depp. Os Oompa-Loompas utilizam roupas que conversam diretamente com o estilo de seu patrão e do ambiente em que estão inseridos; as canções cantadas por eles têm tons que dialogam com o humor de Wonka; eles, ainda, dão vida a fábrica, exercem todas as diversas funções ali necessárias (até além, pois fazem as vezes de psicólogos e cabeleireiros do confeiteiro em certos momentos, por exemplo). E, aparentemente, isso é tudo para Wonka, fato que fica nítido nas encenações musicais — o único personagem que se diverte de maneira visível com as performances de seus trabalhadores é o doceiro.

Oompa-Loompa de 2005 antes e depois da intervenção de Wonka

A fábrica de chocolate pode ser examinada como uma parte de Willy Wonka e os Oompa-Loompas como parte da fábrica. Logo, o visual camp da fábrica e de Wonka também é espelhado nos Oompa-Loompas. Estes, conjuntamente, são exibidos como figuras queer, bem como o Wonka de Depp, não exibindo traços de uma orientação sexual específica em momento algum e exercendo diversos papéis na narrativa e no mundo da fábrica de chocolate.

As várias facetas dos Oompa-Loompas

Considerações finais

Conclui-se que o ambiente da fábrica de chocolate é um grande espelhamento da personalidade camp de Willy Wonka. Os números musicais, os objetos ali presentes e até mesmo os Oompa-Loompas são construídos no envolto da influência do definitivamente queer Wonka de Johnny Depp. O personagem de 2005 é interpretado e retratado de modo que se torna possível uma leitura que o observa distante do padrão cisgênero e, além disso, sem orientação sexual definida, sendo diversos elementos estético-narrativos sustentados para tal determinação.

Notas:

1 Movimento artístico que aconteceu no período vitoriano tardio, por volta de 1868 até 1901. Valorizava a arte como atividade humana mais sublime, contrariando o racionalismo burguês, que a considerava extravagante e supérflua.

Referências Bibliográficas:

BOND STOCKTON, Kathryn. The Queer Child, or Growing Sideways in the Twentieth Century, 2009.

SCHOBER, Adrian. Wonka, Freud and the Child Within: (Re)constructing Lost Childhood in Tim Burton’s Charlie and the Chocolate Factory. in Lost and Othered Children in Contemporary Cinema, Publisher: Lexington, 2012. Editors: Debbie Olson and Andrew Scahill, pp.67–94

BABUSCIO, Jack. “Camp and The Gay Sensibility”. In: BENSHOFF, Harry; GRIFFIN, Sean. Queer Cinema, The Film Reader. New York: Routledge, 2004.

CORBIN, Chryl. Deconstructing Willy Wonka’s Chocolate Factory: Race, Labor, and the Changing Depictions of the Oompa-Loompas, 2012.

DAHL, Roald. A Fantástica Fábrica de Chocolate. Martins Fontes, 2000.

Referências Filmográficas:

CHARLIE and The Chocolate Factory. Direção: Tim Burton. Produção: Brad Grey, Richard D. Zanuck, Michael Siegel, Liccy Dahl e outros. Intérpretes: Johnny Depp, Helena Bonham Carter, Missi Pyle, Deep Roy e outros. Roteiro: John August. Música: Danny Elfman. EUA, Reino Unido: Warner Brothers, 2005. 1 DVD (115 min), widescreen, color. Baseado no livro “Charlie and The Chocolate Factory” de Roald Dahl.

WILLY & The Chocolate Factory. Direção: Mel Stuart. Produção: David L. Wolper, Stan Margulies. Intérpretes: Gene Wilder, Julie Dawn Cole, Peter Ostrum e outros. Roteiro: Roald Dahl, David Seltzer. Música: Leslie, Bricuss, Anthony Newley e Walter Scharf. EUA: Paramount Pictures, 1971. 1 DVD (100 min), color. Baseado no livro “Charlie and The Chocolate Factory” de Roald Dahl.

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