“Yuri On Ice”: Representação Queer ou Queerbaiting?

Resumo: O presente trabalho visa realizar uma análise da animação japonesa “Yuri On Ice”, além de traçar um panorama sobre a homossexualidade na cultura japonesa e, por fim, diagnosticar aspectos queer de sua narrativa, a fim de entendê-los como representatividade queer ou queerbaiting.

Yuri Katsuki e Victor Nikiforov

Yuri On Ice foi lançado em 2016 e narra a história de Yuri Katsuki, um patinador artístico japonês que, após deparar-se com um fracasso durante as competições finais de um Grand Prix, questiona-se sobre seu verdadeiro potencial e decide interromper temporariamente a sua carreira. Numa visita a uma antiga amiga no rinque de patinação de Hasetsu, Yuri reproduz fielmente um programa — nomeação das apresentações de patinação artística — de Victor Nikiforov, famoso patinador russo. A apresentação é secretamente gravada e disponibilizada na internet. Em conseguinte, a entrega e paixão de Yuri chamam atenção de Victor — numa falha bem notável de construção de roteiro — a ponto de levá-lo ao Japão e tornar-se o novo treinador de Yuri. Tais acontecimentos ilustram o início da busca de Yuri por aquilo que o motiva e inspira, enquanto criam o cenário onde é desenvolvido um interesse romântico entre atleta e treinador.

Apesar de tratar-se notavelmente de um relacionamento amoroso entre os dois personagens, existem questionamentos acerca da obra por meio dos fãs quanto à representatividade dessa relação, levando-os a classificá-la como um exemplo de “queerbaiting”.

O centro desse debate — que acontece majoritariamente entre o fandom de Yuri On Ice — é materializado principalmente no sétimo episódio, onde após uma espetacular apresentação de seu programa, num momento musical de patinação no gelo, Yuri é beijado por Victor — mas convenientemente, o beijo é escondido pelo braço de Nikiforov. Os fãs discordam sobre haver ou não o beijo, e do porquê ele não é mostrado de forma explícita.

Inicialmente, para descriminar o que identifica uma obra como componente de “queerbaiting” — podendo-se traduzir o termo para “isca queer” — tomar-se-á a identificação utilizada por Fathallah que considera o “queerbaiting” como uma “estratégia onde escritores e indústrias associadas tentam ganhar atenção de espectadores queers através de sugestões, piadas, gestos e simbolismos, sugerindo uma relação queer entre dois personagens e posteriormente, negando enfaticamente e rindo da possibilidade dessa relação” (FATHALLAH, 2014, p. 2).

Agora, previamente a identificar se Yuri on Ice figura como uma obra que possua conteúdo de “queerbaiting”, é importante classificá-la como algo que ela não é: um anime Yaoi. Erroneamente, muitos fãs confundem a obra como pertencente ao gênero Yaoi, que trata-se de um subgênero com foco na relação explícita entre dois homens, ou seja, que aborda em sua narrativa o desenvolvimento de relações sexuais explícitas. Também confunde-se Yuri on Ice como Shonen-ai, que assemelha-se ao Yaoi, porém, abordando apenas o lado romântico e não o sexual, ainda assim, de forma explícita. O Yaoi pode ser criticado por não representar dignamente casais homoafetivos principalmente pela elaboração de seus personagens — detentores apenas de traços andrógenos — feitas em sua maioria por mulheres para um público consumidor feminino. Além disso, o subgênero também emprega classificações de papéis homossexuais bem definidos, entre uke e seme — que seriam rótulos que limitam à qual papel sexual cada personagem desempenhará.

A imagem do Seme e Uke é uma importante forma para os fãs de Yaoi compreenderem os papéis sexuais de cada personagem antes de qualquer interação romântica iniciar-se entre os dois. O personagem seme é normalmente demonstrado com cabelos escuros, sendo o mais alto que o Uke, que possui cabelo mais claro, estatura baixa e geralmente é o mais ‘fofo’. Esses códigos visuais continuam tão prevalentes a ponto dos fãs serem capazes de deduzir as funções de cada personagem simplesmente olhando a capa do mangá (SIHOMBING, 2011).

Apesar dos apontamentos que incitam debates acerca da falha representação de casais homossexuais, Gláucio Aranha traz uma interessante abordagem acerca do Yaoi, defendendo o Yaoi como forma de resistência, ironizando a hegemonia masculina da produção de mangás, e em consequência, com o tempo, passando a construir um público consumidor específico e a angariar uma legião de fãs, em geral, adolescentes japonesas. A partir daí, têm-se a consolidação do Yaoi como subgênero “escrito de mulheres para mulheres” (ARANHA, 2010, p. 240).

Dito isto, podemos traçar paralelos que desclassificam Yuri On Ice como Yaoi. Primeiramente, pela visualidade dos personagens, nem Yuri, nem Victor assemelham-se à definição de Uke e Seme. Apesar de ser uma obra que evidentemente foi recepcionada pelo público feminino e criada por mulheres — realizada por Sayo Yamamoto e escrita por Mitsurō Kubo — infelizmente, a relação amorosa de Victor Nikiforov e Yuri Katsuki permeia as linhas de subtextos desenvolvidas através do tema principal do anime: A patinação Artística.

Quanto aos aspectos passíveis de leitura queer, pode-se entender que a escolha de desenvolver a narrativa em cima do esporte não se dá ao acaso. É sabido que a patinação artística como esporte acolhe uma massiva gama de competidores gays, e o quanto a homofobia é também internalizada e silenciadora dentro desse esporte, afinal, uma eloquente parte desses competidores são proibidos de se assumirem gays publicamente — pois em alguns casos, tal ato pode resultar em severas consequências, como perda de patrocinadores que viabilizam a participação desses atletas em competições. Na Rússia, as consequências são ainda mais severas. O patinador russo Jeremy Abbott recusava-se a falar contra as leis anti-gays da Russia, mas quando o time olímpico dos Estados Unidos o nomeou a integrante, ele fez uma declaração e posicionou-se firmemente contra as leis de seu país e indicou que não seria seguro dizer nada sobre até garantir um “berço olímpico.”

Visivelmente, a escolha de desenhar Victor como um patinador russo não é por acaso — pode-se entender a crítica nas entrelinhas sobre a homofobia presente tanto no esporte, quanto na cultura russa. Além disso, Nikiforov também é baseado visualmente no patinador Evgeni Plushenko e no ator John Cameron Mitchell. Também é interessante a diversa gama de personagens de diferentes raças na série animada, como Pichit Chulanont, patinador tailandês.

Outro interessante aspecto que vale ser ressaltado é um recorte sobre a sexualidade japonesa, tendo em vista o protagonista japonês Yuri Katsuki. Gláucio Aranha traz um breve recorte onde aponta as questões estruturais históricas que influenciam até hoje a homossexualidade no Japão:

a própria conceituação de homossexualidade no Oriente, em especial no Japão, passa por uma difícil questão de classificação. Isto se deve a que o conceito de indivíduo ‘homossexual’ só chegou ao Japão no período Meiji (1867–1912) com a modernização e ocidentalização daquele país. Antes disso, no período Edo (1600–1867), a homossexualidade era tida apenas como um caminho (Do) de obtenção de prazer. É desta época, por exemplo, o ”danshoku” (ou, em algumas transcrições, nanshoku), cujo significado literal é “erotismo masculino” (ARANHA, 2010, p. 247).

Tais fatos ressoam na inexistência de uma vinculação à identidade homossexual, principalmente se olhado de uma perspectiva dessa identidade construída a partir do olhar ocidental, que busca de maneira incessante o enquadramento aos mesmos padrões culturais, enquanto trata de uma cultura com aspectos diferentes. Nesse contexto, é comum um entendimento heteronormativo, ainda que tal indivíduo desenvolva práticas homoeróticas.

Portanto, esses aspectos colaboram para uma melhor compreensão da análise sobre Yuri On Ice. De certo, é essencial pôr luz às questões de senso de correspondência cultural. Os caminhos são estreitos para traçar de maneira fidedigna paralelos entre a representação feita numa cultura com desenvolvimento narrativo diferenciado e embebidos de simbologismos à uma cultura distinta no ocidente, que desenvolve conteúdo especificamente para consumo interno, mas principalmente para exportação.

Ainda assim, por mais que a equivalência seja dificultada, não significa que não possa ser feita. A questão principal é entender que a acusação de queerbaiting dentro de uma obra como Yuri On Ice, ou semelhantes, torna-se obscura, graças ao próprio desenvolvimento das narrativas orientais que se desenrolam através do que é deixado nas entrelinhas e nos símbolos. E por conseguinte, isso não descaracteriza que representatividade queer não explicita é considerada problemática, pois a conotação permite a cultura heteronormativa a se utilizar de objetos e narrativas queer para prazer e lucro, sem admití-la, já que a conotação admite negação.

No caso específico de Yuri On Ice é interessante analisar a obra e ver a relação entre Yuri e Victor, e de como o anime retrata este envolvimento entre os dois personagens de forma sadia, sensível e não estereotipada. Também é válido ressaltar as críticas sutis as quais podem-se notar, como a luz que é posta na presente homofobia na patinação artística. Entretanto, é importante ressaltar que, por mais bem desenvolvida que seja a relação dos dois personagens e por mais que os espectadores entendam que existe um relacionamento romântico entre Yuri e Victor, a não-concepção física entre eles, é passível de crítica já que, segundo Nordin:

A raiva que as pessoas expressam quando acusam uma obra de queerbaiting parece se originar da experiência de que a representação de personagens queer é escassa, o que possibilita àqueles que desejam ver tal representação, fáceis de iludir com o queerbaiting. Outra fonte de raiva é que o queerbaiting é considerado um fenômeno comum, utilizado como uma tática intencional. A heterossexualidade é uma circunstância validada e enaltecida, enquanto a homossexualidade é invisibilizada, ou visibilizada, mas depois negada (NORDIN, 2015, p.14).

Ou seja, o recente fenômeno apontado por fãs em obras audiovisuais denominado “queerbaiting”, detentor de conteúdo que visa utilizar-se de temáticas e representações queer de forma não explícita, futuramente, através de identificações e críticas, assim como estudos e desenvolvimento de material teórico, fará com que a indústria certamente repense antes de utilizar-se deste tipo de estratégia para obter lucros às custas de públicos que buscam identificação nos personagens presentes nessas obras.

Por fim, quanto ao caso de “Yuri On Ice”, visivelmente nota-se que ele não incorpora um exemplo de representação queer aos parâmetros do público consumidor ocidental, mas ainda assim, representa um exemplo de bons aspectos que abarquem orientações distintas da heteronormatividade — como já dito, a não reprodução de estereótipos e a natureza saudável do relacionamento — , pecando quanto à não explicitação física dessa relação, ainda que seu público entenda através da história apresentada em Yuri On Ice — principalmente nas performances realizadas sob o gelo — que sim, Yuri Katsuki e Victor Nikiforov são de fato, um casal.

Referências bibliográficas

FATHALLAH, Judith. “Moriarty’s Ghost: Or the Queer Disruption of the BBC’s Sherlock,” Television New Media, July 17, 2014, p. 2.

ARANHA, Gláucio. “Vozes abafadas: o mangá yaoi como mediação do discurso feminino”. Revista Galáxia, São Paulo, n. 19, p. 240–251, jul. 2010.

TURNER, Simon. Yaoi online: The queer and affective practices of a yaoi manga fan community. PhD thesis — Birkbeck, University of London, 2006.

MOON, Michael. “Otaku for Queer Theory and Media Theory.” Criticism, vol. 55 no. 1, 2013, pp. 147–154.

NORDIN, Emma. “From Queer Reading to Queerbaiting”. Stockholms Universitet, 2015, pp.14–31.

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