Diário de Biologia, vieses científicos e guerra de informação

Eduardo Pacheco
Senciência com ciência
11 min readAug 28, 2016

Cientistas são humanos.Nós temos nossos pontos cegos e preconceitos. A ciência é o mecanismo desenhado para tirá-los. O problema é que nem sempre temos fé nos valores centrais da ciência — Neil deGasse Tyson

No passado as guerras não tinham lá muita elegância. Era entrar no território inimigo, destroçar todo mundo, dominar os derrotados. Uma vez vencedor era simples impor seu modo de vida, sua fé, seus valores. A guerra era a base das civilizações ( por um abuso de linguagem) e a gente seguia se matando , dominando, morrendo. Alguns grupos fizeram da guerra o seu modo de vida e ofereciam a força da espada em troca do poder do ouro. Eram os mercenários. Egito, Grécia, Cártago, Constantinopla , Brasil Imperial, eles estavam em todo lugar. Modernamente aconteceu a mesma coisa, sem o peso da palavra : uma estranheza da civilização é que as palavras incomodam mais que as ações. Vargas ficou do lado americano a despeito da vocação fascista em troca da CSN e a Guerra Fria quase toda foi uma questão de quem financiava.

Maquiavel já alertava em seu conselho aos príncipes que, apesar das tropas mercenárias terem uma rentabilidade sedutora, possuem um risco que frequentemente é ignorado. Um mercenário está do lado de quem paga e não é muito inteligente deixar de pagar um exército que conhece as suas posições.

Depois das Duas Guerras o poder da informação começou a se mostrar maior que o das balas. Alan Turin fez o computador que foi capaz de decifrar os códigos que encriptavam as mensagens nazistas. É mais ou menos assim: um nazista manda uma mensagem a outro nazista. Um aliado pode interceptar a mensagem e assim saber a posição dos exércitos, se antecipando aos movimentos. É como jogar xadrez sabendo as próximas jogadas do adversário. Por isso os nazistas desenvolveram um jeito bem sofisticado para “embaralhar” uma mensagem, fazendo “Entra na França amanhã que é sucesso” ficar parecendo que o gato passou por cima do teclado, assim : Ktzxg&tg&Lxgtíg&gsgtné&w{k&ï&y{ikyyu4T . O Turin fez uma máquina de quebrar essas mensagens ( se quiser brincar tem uma aqui ). E soube, sabiamente, não sair quebrando tudo: se obter informação é ganhar vantagem, dar informação é dar vantagem ao inimigo. E se os aliados se antecipam a TODAS as manobras nazistas fica fácil concluir que eles quebraram a criptografia das mensagens. Os nazistas simplesmente ficariam trocando isso toda hora e não daria tempo para os aliados se anteciparem.

A guerra não foi só de balas, o que foi determinante foram as cabeças pensantes. E se cabeças pensantes determinam o destino das guerras e podem ser compradas, elas também se tornam armas de guerra.

As novas armas das guerras

É aí que entram os cientistas. Não só eles são capazes de oferecer vantagem em uma guerra direta como formam crenças e valores que se traduzem em lealdade e em última análise soldados baratos. Aquela preocupação do Maquiavel sobre os mercenários é então resolvida: eu não preciso comprar os soldados diretamente, desde que compre suas paixões, seu coração. E para isso preciso comprar o bolso de cabeças pensantes.

A ciência é tida com algo objetivo e uma busca comprometida pela verdade. Pelo menos esse é o mito que gostamos de cultivar e que infelizmente não poderia ser mais falso. Ela se parece mais com uma briga de foice no escuro em um coliseu bancada por um bando de poderosos que assistem de camarote do que a manifestação do espírito livre de um ser humano que busca filosoficamente pela verdade. O homem matou Deus e precisou colocar algo no lugar. Apagou a religião mas manteve a mentalidade de culto: e a ciência, tida como a resposta para todas as nossas questões, acabou por se tornar a nova religião. Inquestionável autoridade, objetiva busca pela verdade, acima de todas as coisas. Nada mais divino.

E por mais paradoxal que pareça, esse culto cego ao saber científico é o que mais nos afasta dos valores centrais da ciência. Quando o Diário de Biologia postou aquele amontoado de merda falando sobre a necessidade da carne, escrevi uma resposta que problematizava um pouco essa postura de autoridade que os cientistas se colocam sem de fato fazer ciência.

Essa não é uma defesa da religião, pelo contrário : eu sou ateu. É justamente por condenar essa mentalidade dogmática que condeno essa fé silenciosa que existe na entidade-ciência, no saber científico em detrimento do método, do pensamento científico crítico, da análise rigorosa. Foi o que critiquei naquele texto.

Michel Focault trata desse tema com maestria em “Verdade e as Formas Jurídicas” texto usado em aulas de metodologia científica, que trata justamente desse caráter construtivo de verdade, dessa faceta de autoridade da ciência. Focault encara aqui a ciência como forma de manifestação de Poder.

Esse abrir de olhos para o que é a ciência como manifestação social não deve servir para negá-la ou criar um afastamento, é o contrário. É o aviso que precisamos para o amadurecimento enquanto cientistas. E se em vez de tratarmos de forma objetiva começamos a encará-la como um sistema de crenças que se apoiam em evidências? E se encarássemos como hipóteses que temos boas razões para acreditar?

A física Newtoniana explica muitos fenômenos mundanos apesar de ser ontologicamente bastante diferente da teoria da relatividade geral de Einstein, que explica mais fenômenos, mas não é lá muito prática se você quer calcular se a pedra que rola do penhasco vai destruir ou não a cidade ali embaixo.

Demócrito estava completamente errado quando dizia que a matéria não poderia ser dividida indefinidamente ( daí o átomo) ? Dalton errou quando disse que elementos diferentes são constituídos por átomos diferentes com propriedades diferentes? O modelo de Thompson explicava cargas elétricas muito bem, o de Rutherford explicava fenômenos elétricos, e Bohr conseguia explicar as ligações. Qual é a verdade?

Talvez por ironia do destino uma das técnicas mais importantes para fazer-ciência foi proposta por um religioso, o reverendo Thomas Bayes , na obra póstuma “An essay towards solving a problem in the doctrine of chances”. Ele desevolveu a conhecida Regra de Bayes (Recomendo esse ótimo artigo a respeito da Regra de Bayes ), uma maneira de comparar hipóteses, avaliar o que conhecemos e o que não conhecemos e saber o que é mais provável. Ele não parte da ideia absoluta de verdadeiro e falso ( o que esse teste diria sobre o modelo atômico de Thompson para cargas elétricas?) mas sim sobre o poder explicativo dos fenômenos observados e a capacidade de prever resultados que duas teorias oferecem.

Isso cai como uma luva na ciência. No fundo estamos testando hipóteses e essa mentalidade Bayesiana oferece uma humildade que é muito bem vinda aos cientistas. Ela deixa explícito que podemos estar bem enganados. Todo cientista , então, deveria ter esse mindset: mas como vimos a ciência se tornou o novo palco de guerra.

Já dizia Piotr Kropotkine que as letras e as ciências só tomarão seu verdadeiro lugar na obra do desenvolvimento humano no dia em que, livres de toda a servidão mercenária, forem exclusivamente cultivadas pelos que amam e para os que amam.

Não sou tão otimista quanto Kropotkine, em todo caso, talvez seja suficiente saber desses vieses quando nos depararmos com um estudo científico. Com isso podemos desenvolver maestra em método científico , podemos nos treinar a encontrar vieses , distorções e manipulações. E isso nos leva ao texto “Deveríamos parar de comer carne?” do Diário de Biologia.

Peço ao leitor que interrompa a leitura aqui e leia o texto no original.

Antes de mais nada, uma satisfação: eu não estou escrevendo no Não Fala Merda porque estou cuidando de outros projetos, dentre eles um dossiê sobre guerra de informação e vieses científicos bastante mais aprofundado que essa postagem. Isso posto, um leitor me pediu para responder esse texto e eu atendi porque se conecta com o que já estou escrevendo e porque o original é tão ruim que eu não perderia nem uma hora escrevendo uma resposta.

Depois de ter passado vergonha escrevendo besteira e tomando um chega pra lá do meu texto “Diário de Biologia: volte a falar de bichinhos, deixe nutrição e saúde com quem entende” era de se esperar que a Karlla Patrícia Silva, autora do Diário de Biologia, tomasse vergonha na cara e aprendesse alguma coisa.

Aprendeu. Eu ridicularizei a falta de fontes científicas e ela mostrou que fez a lição de casa e começou a citar estudos em vez de ZAP-A-E-I-O-U, sua referência anterior. Subiu um nível. Em todo caso o texto ainda é inaceitável mesmo para os padrões sanitários mais frouxos e o resultado continua uma porcaria ( e que os porcos me perdoem). Explico aqui o motivo.

Basicamente o texto é uma salada de viés científico. Mistura opiniões com estudos jogados sem as devidas contraposições e tempera o resultado as falácias mais manjadas do meio adorador de carne.

Primeiro, os vieses.

Cientistas, esses malandrinhos.

Eu fiquei surpreso quando descobri que a maioria das descobertas científicas é falsa ( esse artigo explica bem os motivos). Isso por si só deveria mudar completamente as grades curriculares, tirar aquele monte de informações googláveis e ensinar lógica e método científico desde cedo.

As vezes as conclusões dos estudos são escancaradamente falsas, como acontece na indústria do leite. Alguns estudos tem a pachorra de fazer mero jogo de palavras para tentar esconder os resultados, como esse aqui que diz que o leite “não está associado com um baixo risco de diabetes e obesidade” quando em verdade o leite está associado a um alto risco de diabetes. É como dizer “eu não salvei aquela pessoa que morreu” quando em verdade se trata de um assassinato.

Esse Artigo da Nature mostra os vieses mais comuns, como é que os cientistas fazem para trapacear. Essas técnicas, aliás, são bem conhecidas e algumas delas apresentadas em obras célebres como “Como Mentir com Estatística

Nos interessa em particular alguns vieses mais conhecidos como o Viés do Patrocinador ( uma regra na indústria do leite), viés de seleção ( que foi incorrido pelo Diário de biologia), viés de confirmação ( também incorrido por ela), Hypotesis Myopia(idem) e Just-So Storytelling(idem).

O texto incorre nos vieses quando afirma que “sempre teve vegetarianos” e alega vagamente que o vegetarianismo pode ser saudável mas que “especialistas” alertam para os riscos, que não evoluímos para comer carne, e coloca em dúvida a relação entre câncer e carnes. Apresenta um estudo sobre gorduras saturadas que vou deliberadamente ignorar, já que nós vegetarianos nunca pegamos nesse ponto. Tem quilos de estudo no Pubmed contrariando isso, em todo caso, para nós tanto faz.

O estudo citado do Archive Internal Medicine coloca uma dúvida sobre fatos (morte por enfarte e cânceres de de intestino, boca, faringe, estômago, seio e próstata). Simplesmente coloca a dúvida. E o texto coloca isso como se isso, por si só, fosse mais forte que a evidência das estatísticas. Incorre aqui no Just-So Storytelling: a pessoa cria uma historinha que pretende descaracterizar os dados.

Vamos agora às alegações.

Não há provas de que as carnes estejam aumentando os índices de problemas cardíacos e câncer

Olha, há sim. Esse estudo aqui diz que a dieta vegetariana (vegan) é eficiente para prevenir câncer . Esse outro conclui que oferece proteção a doenças cardiovasculares. Esse outro aqui fala sobre redução em cânceres e doenças cardíacas. Tem mais esse… É até chato falar disso. A dieta vegana é eficiente para reverter problemas cardiovasculares , Diminui as chances de ter câncer de próstata, outro aqui falando que a dieta vegana é uma estratégia recomendada para reduzir a incidência de cânceres. Eu posso ficar brincando disso o dia todo.

Aliás o meu leitor Thiago Melo teve a gentileza de compartilhar a lista que ele fez de trabalhos científicos que atestam a proteção que o veganismo confere contra diversas doenças. Enjoy e pelo amor de Darwin leia isso antes de sair publicando besteiras, Diário de Biologia. Ali há centenas de estudos, o que é muito diferente do “não há provas”.

A nossa amiga cagou para todas as evidências e estatísticas e simplesmente se apegou a uma dúvida que lhe é conveniente. Viés de Confirmação presente. Comedores de carne vivendo perigosamente, contrariando a ciência e as estatísticas.

Muitos nutricionistas afirmam que as crianças não devem ficar sem proteína animal, sob risco de terem o desenvolvimento cerebral prejudicado

Ah, o Argumentum ad Terrorem, essa prova inequívoca de desonestidade não falha nunca. Simplesmente apela-se para um resultado catastrófico não demonstrado e manipula-se os medos do interlocutor. Schopenhauer, autor de “Como Vencer um Debate sem ter Razão”, ficaria orgulhoso. Aqui o apelo ao medo faz uma fusão com o argumento de autoridade ou Argumentum ad verecundiam ( nutricionistas devem saber do que falam!) para ganhar espaço em cima da ignorância das pessoas. Que nutricionistas? Cadê o estudo? Ele compara a formação cerebral de vegetarianos com não vegetarianos? Rapaz, considerando a quantidade de besteiras que vocês falam eu deveria supor o contrário: mas não faço isso, já que não afirmo senão com evidência.

Em todo caso tenho o prazer de demonstrar o contrário. A Academia de Nutrição e Dietética americana indica o veganismo para todas as idades. Os estudos que ela se baseia podem ser conferidos aqui. Eles estão há 3 décadas dizendo que podemos viver sem comer animais.

A Associação Dietética Britânica também emitiu um parecer recomendando a dieta vegetariana estrita . Os estudos que baseiam o parecer podem ser encontrados aqui.

Kaiser Permanente é uma das maiores empresas de medicina dos Estados Unidos. Em 2013 publicou um artigo apoiando a adoção de uma dieta baseada em vegetais. Ela recomenda aos médicos que se atualizem e sejam proativos em recomendar a dieta a base de vegetais para todos os pacientes. Essa medida tende a melhorar significatimente a saúde dos conveniados, além de reduzir os custos ao prevenir enfermidades. O artigo recomenda que as pessoas sejam desencorajadas a consumir carnes, leite e ovos. Destacando que a dieta vegetariana é uma alternativa saudável.

O Ministério da Saúde do Brasil recomenda a dieta vegana como saudável e alerta para os perigos do consumo de derivados animais.

A Unimed publicou posições favoráveis ao veganismo . Note que ela é uma empresa de seguro-saúde e tem todo o interesse do mundo em não pagar prêmios por conta dos sinistros.

A Harvard School of Public Health destaca as vantagens do veganismo, bem como sendo uma posição alimentar segura. Inclusive o refeitório deles tem opções veganas.

Para ver a lista que o leitor Thiago Melo gentilmente separou das instituições que recomendam o veganismo, clique aqui.

Evoluímos para nos tornarmos vegetarianos?

Nós não evoluímos para tomarmos banho quente, não evoluímos para usar aviões, não evoluímos para usar remédios. Nós nos adaptamos às condições ambientais e é aberrante que eu tenha que explicar isso para uma bióloga.

Perguntar se evoluímos para comer carne é incorrer na Falácia Naturalista falácia já sem graça de apontar de tanto que isso virou mainstream. A própria pergunta é em si viés de Seleção e Hypotesys Myopia, já que não apresenta outras coisas que não “evoluímos para” e adotamos na nossa vida, além de desconsiderar o fato de que a principal pressão ambiental do ser humano é hoje a endocompetição, ou seja, a competição de recursos com a própria espécie. Considerando que a carne consome mais recursos conclui-se que se a Falácia Naturalista pudesse ser afastada seria certo dizer que sim, tudo indica que “evoluiremos” para sermos vegetarianos ( ou melhor, sobreviveremos enquanto espécie se nos adaptarmos a esse novo modo de produção).

O vídeo que o Pirula fez sobre essa falácia explica bem o que é isso ( Diário de Biologia: dessa vez ASSISTA ao vídeo e pare de falar merda por favor brigado)

A falha no argumento dela é supor que “ter evoluido para” é justificativa para posicionamentos morais

A pessoa finaliza o artigo, depois de escancaradamente manipular as informações colocando dúvidas onde não há, ocultando as pesadas fontes que indicam o contrário do que ela diz, temperando tudo com falácias e incorrendo em meio quilo de vieses com um questionário que, adivinha, é em si enviesado. Pergunta se devemos ( dever, mandamento de comportamento) parar de comer carne ( parar, ação que indica interrupção de algo tido como certo, dinâmico) . E nas alternativas não tem o caralho de uma razão ética, a única saída para um vegetariano é dizer sobre os “muitos estudos” que associam câncer à carne, sendo que o texto falou que não há provas e que eles (sic) são duvidosos.

Esse artigo tocou só superficialmente na questão dos vieses e falei muito para um artigo de uma hora , embora não tenha dito dez porcento do que queria. Aguardem o dossiê sobre guerra de informação e vieses científicos — ou , claro, também podemos nos ver caso alguém que se passe por cientista decida querer passar vergonha publicando merda.

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