Infowar no veganismo pt II — ciência, mídia e precisamos falar de estratégia

Eduardo Pacheco
Senciência com ciência
18 min readJan 31, 2018
Eles chegaram com tudo

O presente texto foi escrito em dois momentos — setembro de 2016 e janeiro de 2018.

Com a palavra, o Eduardo de 2016:

Na primeira parte da série Infowar contra os direitos animais (aqui ) tracei um panorama da guerra de informação de forma bastante genérica. Falei do crescimento do veganismo e da reação da indústria.

Nesse artigo vou falar dos ataques específicos do especismo: quais frentes, quais ações específicas e o que o governo tem a ver com isso. O objetivo aqui é fazer com que estejamos mais atentos a cada passo para que possamos não só responder à altura mas nos antecipar aos próximos ataques.

Os mapas do capítulo anterior deixaram claro que existiu um profundo crescimento do veganismo de 2014 para 2015 no Brasil. Foi um momento de euforia e o hype levou a um otimismo que no entanto foi terrível para nós. Nos deixamos levar pelas notícias e mais notícias de crescimento, pelos novos veganos por todos os lados, pela enorme diferença entre aquela época e alguns anos antes. De fato, as coisas pareciam melhores.

Só que àquela altura nós ainda nos comportávamos como militantes, como ativistas. Estávamos engatinhando e nos descobrindo enquanto unidade, grupo. Tivemos as primeiras desilusões e uma série de rachas internos, brigas e discussões.

Enquanto colocávamos nossa energia para as críticas internas a indústria se mexeu. E se nós não nos levávamos suficientemente a sério a indústria não cometeu o mesmo erro. Percebendo o nosso avanço, gastaram bilhões em propaganda e começaram a fazer um ataque sistemático. Enquanto os rebeldes brigavam entre si o Império contra-atacava.

Chumbo grosso pela frente

Em 2016 ,então, os ataques chegaram e demoramos muito para perceber. As propagandas deixaram de falar propriamente no produto e começara a focar mais no conceito da exploração animal como algo positivo. Diversas iniciativas começaram a se focar em temas específicos que juntas oferecem um panorama do quão coordenado é esse ataque.

Os sites Beba Mais Leite, Academia da Carne, Mais Carne Suína e Hoje tem Frango foram lançados com uma diferença de tempo muito curta e fazem basicamente a mesma coisa para segmentos diferentes: incentivam o consumo de animais. Mas não só isso, é possível notar algumas características particulares de cada um deles — características essas que revelam questões mais profundas a respeito dessa guerra.

O Leite e a batalha científica

O site Beba Mais Leite (ver aqui) se define como “um projeto independente de incentivo ao consumo de lácteos”. Também dizem que são mães preocupadas com a ~desinformação~ que levou a redução de consumo de lácteos por crianças, especialmente as mais ricas (ver aqui) . Também são médicas veterinárias formadas na UFMG, coração da produção leiteira nacional, e atuantes na indústria leiteira. Defendem o consumo de lácteos como parte de uma dieta saudável para crianças, adultos e idosos.

Não é muito difícil encontrar contradições na narrativa “das próprias responsáveis” pelo site. Como podem ser independentes e “atuantes na indústria leiteira”? Além disso, o aconselhamento nutricional para humanos é prerrogativa dos nutricionistas e nutrólogos: não cabendo portanto que seja feito por médicas veterinárias — muito menos daquelas em claro conflito de interesse entre a saúde das pessoas e seus empregos.

Não obstante as alegações sejam contraditórias e manifestamente ilegais, são falsas. O site é desenvolvido pela agência Supra Interativa (ver aqui) uma das melhores e mais caras do país, especializada em posicionamento da marca, em marketing digital e otimização do sites para serem mais facilmente encontrados aumentando assim o fluxo de visitas. A agência oferece serviços de empresas a políticos: basicamente eles estão onde o poder está.

Esse calibre é incompatível com “um projeto independente” de “mães” e “médicas veterinárias” e talvez as únicas informações relevantes na descrição sejam o “atuantes na indústria leiteira”, assim como “a redução de consumo de leite pelas crianças mais ricas”.

A descrição portanto revela o apelo do projeto, que abre duas frentes: o da ciência como fonte de autoridade e legitimadora do leite como alimento saudável e o do afeto mãe-filho como associação simbólica e criação de vínculo emocional com o leite.

A motivação do projeto foi a perda de mercado nas classes mais altas, o que justificaria a preocupação compatível com um pesado investimento de propaganda desses. No Facebook fazem ataques mais incisivos dizendo que “nutrição é ciência, não questão de opinião” e reduzem as críticas a argumentos emotivos sem respaldo científico, fazendo referência aos veganos. A estratégia do projeto, então, é usar a ciência como autoridade e o afeto mãe filho como Apelo ao Terror. Se mães se preocupam com seus filhos, e se preocupam, devem tomar leite, porque é o que a ciência diz.

O projeto já promoveu uma série de congressos e tem como garoto propaganda o Dráuzio Varella, um médico nada barato de se contratar. Ele ministra palestras defendendo o leite, patrocinadas pelo Beba Mais Leite, em locais como o Ouro Minas Palace Hotel (ver aqui), um hotel cinco estrelas que custa em torno de R$ 400 a diária e está entre os três melhores de Belo Horizonte. Como um “projeto independente” tocado por “mães” “médicas veterinárias” conseguiria pagar uma das melhores agências de publicidade digital, o Dráuzio Varella e palestras em um hotel cinco estrelas entre os melhores e mais caros de Belo Horizonte?

Rosto de velhinho bonzinho que não te faria mal. PATROCÌNIO: indústria pecuária e farmacêutica.

Ao olhar a lista de patrocinadores ( ver aqui )fica fácil entender a proeza. Logo de cara salta aos olhos o logo da Bayer, uma das maiores indústrias farmacêuticas do mundo. Só para o mercado de bovinos a Bayer produz 22 drogas (ver aqui) , entre elas antibióticos como o Baytril e a Bactrosina e antiparasitários como o Bolfo e o Bovitraz. Essas drogas estão presentes em 37 produtos diferentes ( ver aqui )e estamos falando só de bovinos.

A CRI Genética, ou Cooperative Resources International (ver aqui)atua no segmento de inseminação artificial desde 1993 e é lider nos Estados Unidos há mais de 25 anos. Está presente em 76 países e é uma das maiores companhias ( embora seja uma cooperativa) genéticas do mundo especializadas no segmento animal, sobretudo na reprodução e “melhoramento” que é envolve transgenia com animais.

A Royal DSM é outra gigante especializada em pesquisas para nutrição e materiais, sobretudo para Animal Nutrition & Health (ver aqui), ou seja, para o fornecimento de insumos para a pecuária.

A Tortuga (ver aqui) é outra gigante no ramo e foi recentemente adquirida pela DSM . A empresa contém produtos que vão de fórmulas para rações e suplementação mineral para o gado leiteiro.

A Nutron (ver aqui) é o braço da gigante Cargill, um dos principais players no oligopólio alimentício que caminha para o monopólio, e é especializada em produtividade de gado leiteiro.

A lista é grande e inclui a Tetra Pak(ver aqui), que produz aquela embalagem quadrada para leite pasteurizado, o Mercado de Gado (ver aqui), especializado em compra e venda de gado leiteiro, a Piracanjuba (ver aqui) que vende leite e derivados, a Castrolândia, uma cooperativa do segmento pecuário que tem 849 produtores entre elas as marcas Naturalle , Creme de Leite e Colônia Holandesa. Há ainda entre os patrocinadores outros projetos semelhantes como o Got Milk (ver aqui), que é basicamente a mesma merda do Beba Mais Leite, mas focado ao público americano, o Toma Leche (ver aqui), marca do Got Milk voltada ao público hispânico nos EUA e no México(ver aqui), o Si a la Leche!, a versão para a América Latina.

Existe portanto uma rede que vai desde os maiores fornecedores de insumos do mundo, indústrias farmacêuticas, empresas de engenharia genética, até produtores locais e projetos paralelos especialistas em cada região. Não há porém nenhum plano de saúde. É bastante razoável que a indústria pecuária esteja interessada em promover o consumo de leite, já que seus lucros dependem disso, mas é sintomático que quem lucra com a saúde não esteja aí. Unimed, Amil, nada do gênero. Quanto mais doentes seus clientes ficam mais o seguro-saúde paga em prêmios, mais isso encarece o serviço, mais isso fica inacessível às pessoas. Ainda que os planos de saúde queiram criar burocracias para não pagar prêmios no nível individual, no nível coletivo eles tem todo interesse do mundo que os clientes não fiquem doentes. Olhando quem paga temos uma boa noção de a quem o projeto serve.

O projeto Beba Mais Leite conta uma área no site só para propagandear pesquisas científicas que quando não são escancaradamente falsas , dada a vagueza das citações, são extremamente questionáveis, tanto pela abundância de trabalhos que atestam os malefícios do leite quanto pelo já reconhecido viés dos trabalhos patrocinados.

Como o objetivo desse artigo não é fazer uma defesa contra os argumentos do site mas apenas apresentar um panorama vou pular essa parte. O que interessa, porém, é mostrar a conexão entre a ciência, o governo e a indústria.

Os Vieses científicos

O que o Beba Mais leite faz é usar a ciência como propaganda, ou melhor, se passar por ciência como forma de promover uma ideologia ou um interesse econômico. Michel Focault trata desse tema da ciência como forma de poder com maestria em “Verdade e as formas jurídicas” (baixe gratuitamente aqui) . O livro é usado em aulas de metodologia científica e trata justamente desse caráter constitutivo de verdade, dessa faceta de autoridade da ciência. Focault encara aqui a ciência como uma forma de manifestação de poder.

Esse abrir de olhos para o que é a ciência como manifestação social não deve servir para negá-la ou criar um afastamento, é o contrário. É o aviso que precisamos para o nosso amadurecimento enquanto cientistas.

Talvez por ironia do destino uma das técnicas mais importantes para fazer-ciência tenha sido proposta por um religioso, o reverendo Thomas Bayes, na obra póstuma “An essay towards solving a problem in the doctrine of chances”. Ele desenvolveu a conhecida Regra de Bayes (Recomendo esse ótimo artigo a respeito da Regra de Bayes ) , uma maneira de comparar hipóteses, comparar o que conhecemos e o que não conhecemos e saber o que é mais provável. Ele não parte da ideia absoluta de verdadeiro e falso ( o que esse teste diria para o modelo de Thompson para cargas elétricas?) mas sim sobre o poder explicativo das teorias e sua capacidade de prever resultados dos fenômenos observados.

Isso cai como uma luva na ciência. No fundo estamos testando hipóteses e essa mentalidade Bayesiana oferece uma humildade que é muito bem-vinda aos cientistas. Ela deixa explícito que podemos estar bem enganados ao adotar uma teoria como verdadeira. Todo cientista , então, deve assumir esse mindset: só que acontece o contrário. A ciência se tornou um palco de guerra.

Ao usar a ciência como autoridade inquestionada faz-se o oposto do que seja ciência. O “Pesquisas comprovam que leite bla bla blá” não vale absolutamente nada. Que pesquisa? Que estudo? Qual o método? Em que medida isso comprova a conclusão ou em que medida isso está de acordo ou contraria outros estudos?

A apropriação da ciência se torna uma estratégia bem eficaz da indústria especista. E como é que se faz isso? Simples: financiando projetos, patrocinado cientistas, congressos, oferecendo vantagens. E embora eu adorasse que isso fosse mera teoria conspiratória sinto dizer mas não, não é. Os vieses científicos são um problema tão conhecido e sério que agora os artigos de muitas revistas exigem o preenchimento de um campo “conflito de interesses”, declarando o patrocínio.

O médico Leandro Almeida (perfil Facebook)(CRM-MG 57419) contou em um vídeo no Facebook (ver vídeo aqui) que foi procurado por 3 companhias de laticínios para um vídeo-propaganda por 150mil, já que ele é um conhecido crítico do consumo de leite. Recusou. Nâo é vegano, o faz enquanto médico.

Trapaça na ciência? Cientistas, esses malandrinhos.

Eu fiquei surpreso quando descobri que a maioria das descobertas científicas é simplesmente falsa ( esse artigo explica bem os motivos) . Em resumo há uma série de vieses e falhas metodológicas que invalidam os resultados dos experimentos, indo desde dados que contrariam as conclusões até uma análise mal feita e um design ruim. Isso por si só deveria mudar completamente as grades curriculares para tirar aquele monte de informações googláveis inúteis que nos forçam a decorar . No lugar deveriam ensinar lógica e método científico desde cedo, que é o que realmente importa ao fazer ciência.

As vezes as conclusões de um estudo são escancaradamente falsas como acontece na indústria do leite. O artigo chamado “Relação entre o patrocínio e a conclusão em artigos científicos sobre nutrição” (pelo amor de tudo que é mais científico, leiam isso)prova a existência do viés do patrocinador na (sponsorship bias), que é a distorção dos resultados em favor de quem paga. Sendo direto: é a transformação de cientistas em mercenários. E sabe quem é um dos campeões de sponsorship bias? Exato, a indústria do leite.

Alguns estudos chegam a fazer mero jogo de palavras para esconder os resultados, como esse aqui que diz que o leite “não está associado a um baixo risco de obesidade e diabetes” quando os dados na verdade estão dizendo que está associado a um alto risco de ambos(ver aqui). É como dizer “eu não salvei a vida daquela pessoa que morreu” quando na verdade se trata de um assassinato.

O artigo da Nature como cientistas se fazem de bobos e como podem parar com isso (outra maravilha que pode ser lida aqui) mostra os vieses mais comuns e conta como se defender dessas trapaças.
Essas técnicas, aliás, são bem conhecidas e algumas delas apresentadas em obras célebres como a Como Mentir Com Estatística (baixe gratuitamente aqui) . Cabe especial atenção os seguintes vieses: viés do patrocinador, o viés de seleção , amplamente incorrido pelos estudos baseados em leite já que não apresentam o contraste com pessoas veganas, ou seja, que não tomam leite, e a miopia da hipótese, que é essa ideia de “pesquisa encomendada”, que apenas cumpre um rito formal de ciência mas já assume as conclusões como premissas.

O maior estudo epidemiológico já realizado, o The China Study, contado de maneira bem didática no livro homônimo (que pode ser acessado gratuitamente aqui), conta a jornada de T. Cholin Campbell desde a sua criação como um garoto da fazenda até o patrocínio de seus estudos pela indústria pecuária e sua evolução como cientista. Ele realizou testes laboratoriais e epidemiológicos e explica com detalhes o quanto a indústria alimentícia domina órgãos reguladores governamentais, sociedades dietéticas e currículos escolares para promover a ideologia que favorece o lucro da indústria.

Mas por que gastar tanto para que as pessoas consumam leite ou derivados de animais? Bem, sem isso o sistema simplesmente não se sustenta. É preciso, então, ter muito mais mentira que verdade para que ela seja aceita. A questão de “verdade” de uma informação é estudada por um problema matemático chamado O Problema dos Generais Bizantinos [http://research.microsoft.com/en-us/um/people/lamport/pubs/byz.pdf]. Simplificando é o seguinte: Na Nova Roma tinha tantos generais retornando de campanhas que não dava pra saber se alguém era de fato um general ou se era um impostor. Ao sitiar uma cidade, os generais trocavam mensagens entre si para combinar se atacavam ou não. O que os generais acreditavam dependia da proporção entre a informação e a desinformação. Se tivessem muitos impostores(sabotadores) então certamente os generais tomariam as decisões erradas , o que resultaria em perder a guerra.

A analogia pode ser transportada virtualmente para qualquer sistema de informação tolerante a falhas. O lado que detém a maioria das informações é tomada como parâmetro e os minoritários são os sabotadores.

Matematicamente qualquer sistema tolera no máximo ⅓ -1 impostores ( detalhes aqui), ou ⅓ -1 informações falsas. Isso significa que um sistema para produzir a ideia de consenso precisa ter no mínimo ⅔ + 1 de domínio da informação. A nossa democracia, por exemplo, se baseia em um valor bem menos exigente: ½+ 1. O que acontece com quem dominar ⅔ + 1 dos artigos científicos, dos meios de informação, das estruturas de governo? Esse alguém cria a “verdade” que quiser. É a máxima de Goebbels, ministro da propaganda nazista de Hitler: uma mentira dita mil vezes se torna uma verdade.

O bem estarismo como legitimação da exploração

Além do Beba Mais leite outros projetos vão na mesma linha. Esses outros, porém, não apelam para a ciência e sim para o bem-estarismo — a ideologia que defende que o consumo de animais é justo e legítimo se existir bom tratamento. O Hoje tem Frango ( ver aqui) é a versão frango do Beba Mais leite financiado pela Seara. Toda a análise para o primeiro cabe aos demais. Nesse projeto Rodrigo Faro, Fátima Bernardes, o chef Alex Atala e uma cacetada de gente pagando de cientistas fardados com avental e o logo do projeto. É a mesma ladainha: veterinários pagos para serem marketeiros ou advogados. O grande apelo do projeto é a ~desmitificação~ do tratamento que os animais recebem.

Cancelem o veganismo: eles são bem tratados

A estratégia é ao mesmo tempo inteligente e estúpida. Inteligente porque soube reconhecer que o valor moral da vida dos animais começou a ficar importante na decisão de consumí-los ou não. E é estúpida porque alega algo bem fácil de provar o contrário.

A JBS-Friboi, por exemplo, já tentou algo parecido, colocando um código de rastreamento na carne para provar que o processo é impecável. Se você olhar o vídeo institucional nem parece que eles sonegam impostos, adulteram a carne, e se baseiam em trabalho escravo.

Bem, o que acontece quando alguém vai lá e rastreia a origem da carne? A ONG Reporter Brasil fez isso e encontrou duas coisas: maus tratos pra cacete(ver aqui) e trabalho escravo.As reportagens deles a respeito são incríveis e de uma qualidade que impressiona. Recomendo que percam dois minutos para lerem.

clique para acessar o mapa interativo da escravidão

A JBS-Friboi lançou seu projeto da Academia da Carne(ver aqui) em parceria com a Rede Globo e agências de propaganda para criar conteúdo que incentive o consumo de carne e tem como garota propaganda a Ana Maria Braga. Falei dessa parceria com detalhes na primeira parte da série infowar.

O Mais Carne Suína(ver aqui)é patroconado pelo SEBAE, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Suinocultura e da Associação Brasileira de Criadores de Suínos. Esse site tem um foco mais forte na culinária em si mas aparentemente o bem-estarismo se tornou pauta obrigatória(ver aqui) . Fizeram até um gráfico bem pueril que não comprova nada e dadas as evidências sou levado a acreditar que quanto mais imbecil for um gráfico maior a probabilidade daquilo ser uma mentira escancarada.

Não é uma matadouro, é um spa

Essa guerra não envolve apenas escolhas. Envolve poder.

A disputa pelos direitos animais chegou nos tribunais e no parlamento. O Supremo Tribunal Federal julga a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4983(ver aqui) para decidir se uma lei cearense pode ou não autorizar a Vaquejada. Isso não deveria dizer muita coisa sobre o cenário dos direitos animais, certo? Errado.

O STF já consolidou jurisprudência em favor dos animais nos casos da Rinha de Galo e da Farra do Boi. Entendeu de maneira inequívoca que o direito dos animais à integridade se sobrepõe ao direito de cultura. A cultura portanto não é argumento para autorizar a crueldade contra animais. O julgamento a respeito da Vaquejada porém está empatado em 4 a 4. Se a jurisprudência foi consolidada porque isso está sendo discutido? Bem, para começar que a ABVAQ, a Associação Brasileira da Vaquejada participou do processo como amicus curiae. E contratou como advogado o Kakay (ver aqui) , esse monstro do direito desafeto de Joaquim Barbosa- no bom e no mau sentido, já que sua competência é lendária, assim como a vilania de seus clientes, que vão de políticos a empresas fraudulentas. Ao defender a inaceitável Vaquejada Kakay demonstrou coerência a respeito do calibre moral de seus clientes.

A questão então que já estava definida volta a ficar em aberto e realmente temos chance de retroceder nesses direitos. Isso causará além do óbvio retrocesso uma condição institucional caótica, levando a insegurança jurídica, já que não há distinção relevante entre a vaquejada e a farra do boi por exemplo.

O investimento em propaganda em favor das vaquejadas e rodeios foi enorme, com vários posts patrocinados incentivando as pessoas a votarem em favor das vaquejadas nos projetos de lei sobre o tema.

Um deles é o proposto pelo Deputado Capitão Augusto, o PLC 24/2016, que eleva os rodeios e vaquejadas ao status de patrimônio cultural. Pretende assim blindar as atividades dos processos sobre maus tratos. A população votou nesse link no Senado(ver aqui) e o resultado é que 76,6 % das pessoas são contra o projeto.

A Senadora Gleisi Hoffmann, por outro lado, propôs o PLS 650/2015 que estabelece um regime de proteção aos animais que, entre outras coisas, proíbe Vaquejadas e Rodeios. O Senado também consultou a população(ver aqui) e o resultado é que 91,1% das pessoas são favoráveis ao projeto.

Bem, com as pessoas pendendo tanto para os direitos animais então estamos bem, certo? Errado. O Netflix acaba de lançar uma série enaltecendo os rodeios, o Fearless.

Pegue uma violência, coloque uma produção hollywoodiana e transforme os bandidos em mocinhos

Os internautas criaram uma petição (ver aqui) para retirar o conteúdo do ar. Em duas semanas 44mil pessoas já assinaram.

Esse apoio do público é bom por um lado mas por outro motiva mais ataques de propaganda como Fearless e os que vimos até aqui no Beba Mais Leite, Academia da Carne, Mais Carne Suína e Hoje tem Frango. Significa que não adianta só convencer pessoas: precisamos de alguma forma afetar o poder.

Esse domínio que vai das ciências aos órgãos reguladores não é novidade. Aconteceu com a indústria do cigarro. A excelente paródia do John Oliver explica bem como médicos e governos funcionaram como marionetes da propaganda dos cigarros.

Como a indústria nos faz de otários

Com o Bacon aconteceu a mesma coisa: o que antes era só uma carne de segunda, lotada de gordura e sal, uma carne seca só que de porco, passou a ser um hype e um motivo de histeria coletiva inexplicável. Ou quase inexplicável : há quem diga que somos produto do meio. Vou além, somos produto é da propaganda. Essa excelente matéria explica muitos dos seus pormenores , recomendo ao leitor que dê uma olhada (ver aqui).

E o que acontece nessa atmosfera em que o capital financeiro quer determinar o que você pensa e come quando uns poucos se insurgem e dizem que o lucro deles é eticamente inaceitável? Esses insurgentes são criminalizados , sendo até tratados como terroristas.

Nos Estados Unidos, por exemplo, há algumas leis específicas para ativistas da causa animal como o AETA( ver aqui o Wiki do Animal Enterprise Terrorism Act e acesso direto à lei aqui ) e o AEPA ( Animal Enterprise Protection Act, acessível aqui) que proíbem qualquer pessoa de interferir nas operações dos empreendimentos animais ou que causem dano à indústria.

Essas leis dão ao departamento de justiça dos EUA mais autonomia contra ativistas dos direitos animais : em outras palavras, isso significa o afastamento de liberdades e direitos. Há portanto uma perseguição institucional aos ativistas e não há na democracia americana um instrumento lícito para a luta que pelos direitos animais minimamente pareada em armas. No que diz respeito ao especismo, portanto, vivemos em um totalitarismo.

Terroristas perigosíssimos salvando vidas ilegalmente

O Brasil segue por um caminho parecido. Em julho de 2016 foi aprovada a lei 13.330/2016 (ver aqui) que endurece as penas contra “roubo e receptação de animais”.

Os caçadores de javalis promovem palestras, participam de audencias no Senado e com os órgãos regulamentadores como IBAMA e Secretaria do Meio Ambiente. Os ataques parecem que chegam por todos os lados.

Novidades de 2018

O presente texto foi escrito e engavetado em 7 de setembro de 2016. Continuo aqui de forma autônoma. É extremamente pertinente mencionar como andou a guerra de informação de 2016 até 2018.

A indústria do leite vive franca crise no país, coisa que já acontecia lá fora (ver aqui ). Alguns produtores deixaram de vender leite de vacas para vender leites vegetais (ver aqui) e isso deu início a uma guerra aberta : os tribunais foram inundados com casos que favorecem um pouco um ou outro lado, em uma extensão da AgGag(ver aqui), conjunto de leis para barrar o avanço do veganismo e dos direitos animais.

Com isso estão tentando proibir, por exemplo, chamar leite vegetal de leite vegetal, já que há franco “roubo de mercado” dos produtos animais para vegetais (link 1, link 2, link 3, link 4).

A disputa ideológica ocupa todos os espaços e nem as palavras escapam dessa batalha.

O consumo de leite diminuiu no país( link 1, link 2, link 3) enquanto o interesse por veganismo não pára de subir e isso acessa as reações da indústria e do governo.

Interesse por veganismo nos últimos 5 anos no Brfasil. veja o trend original aqui

Note, porém, que a curva do veganismo se tornou, apesar de ainda crescente, muito mais instável em 2017 — o que é resultado da campanha massiva de mídia. Cada texto será respondido em momento oportuno : no momento a análise geral mostra-se mais importante.

Bem, os pecuaristas já assumiram abertamente a guerra e disseram que seus esforços serão para combater o veganismo ( link 1 , link 2). Não é de se estranhar, então, que os já altos incentivos governamentais para a pecuária tenham crescido mais ainda, baixando impostos sobre comercialização do leite ( ver aqui) e dando mais prazo para pagar os financiamentos (ver aqui) com juros já reduzidos.

Não por acaso a capa da Super Interessante dessa semana trata justamente da questão: o leite e quais as razões pelas quais você não deve parar de tomar (https://super.abril.com.br/saude/lactose-voce-precisa-mesmo-cortar/) .

Capa. Parar é exagero. Não pare. Parar é ruim para sua saúde. A ciência que disse.Ignore pubmed.

O Beba Mais Leite, já discutido aqui, moveu seus pauzinhos para aparecer na capa da revista Saúde ( ver aqui).

A PALAVRA FINAL, estrelando, Beba Mais Leite.

Apesar do cenário ser tenebroso felizmente há solução. E como podemos contra-atacar? Esse é o tema do próximo episódio.

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