Zoo-ilógicos

Eduardo Pacheco
Senciência com ciência
11 min readMay 31, 2016
Condenado à prisão perpétua e à pena de morte. O crime? Existir em um mundo governado por humanos.

O caso do gorila que foi morto à tiros causou revolta geral nas redes sociais. Ele se chamava Harambe e cumpria pena perpétua no Zoológico Cincinatti, Ohio (EUA), quando um garoto de quatro anos caiu no seu recinto. Harambe em momento algum expressou agressividade tendo de fato protegido o menino contra a gritaria das pessoas. Curioso como qualquer primata ele tocou no menino, mas caso quisesse teria matado e não houve nenhum ato de Harambe nesse sentido. O zoológico poderia simplesmente tê-lo tranquilizado mas ainda assim decidiu por matá-lo, daí a revolta geral.

O caso aconteceu uma semana depois de dois leões terem sido assassinados porque um homem quis se suicidar entrando na jaula de leões e provocando-os.

Sabendo que a existência dos Zoológicos é continuamente questionada, com mais e mais exemplos dos abusos que evidenciam a condição inaceitável em que os animais são submetidos, a página Papo de Zoo do Facebook publicou essa tentativa de preservação da imagem:

Tenho uma ótima ideia para proteger a vida de ambos: não aprisione animais, não cause stress, não os apresente como mercadorias

Não foi acidente

A imprensa e os Zoológicos tratam os casos como “acidentes” mas em realidade apenas revelam problemas intrínsecos e estruturais dos próprios zoológicos. A “falha de segurança” só acontece se os animais ficam expostos ao público e se tornam instrumentos do entretenimento humano. Mostra que essa proximidade é danosa aos humanos, que correm risco de vida em alguns casos como o contato com grandes felinos, e aos próprios animais, que correm o risco de morrer por conta da imbecilidade adicional de um ser humano que resolve entrar na jaula ou não se previne adequadamente. Questionada, a página “Papo de Zoo” posta o seguinte texto da Presidente da Associação de Zoológicos e Aquários do Brasil, nesse link. O texto em resumo diz o seguinte:

  1. Zoológicos preservam espécies e indivíduos.
  2. Somos contra o zoológico porque somos anti-capitalistas
  3. Santuários são inviáveis.

Eu simplesmente ignorei as acusações de oportunismo, populismo, romantismo e todo o deboche do texto porque, bem, sem a retórica não fica quase nada de argumento ali. Deixo que a autora faça sozinha o papel de ridícula e me foco no que interessa : vamos aos fatos.

Zoológicos preservam espécies e indivíduos

A Constituição Federal diz lá no Art 225, parágrafo primeiro, inciso sexto e sétimo :

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

VI — promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;

VII — proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

Há quatro deveres aqui. Um é promover a educação ambiental e a conscientização para a preservação do meio ambiente. Os outros são proteger a função ecológica da fauna e da flora, proteger as espécies contra a extinção e os animais da crueldade.

Quais funções os zoológicos desempenham? No máximo uma delas, a proteção das espécies contra a extinção. O bicho fica lá e , nossa, protegi a espécie da extinção, missão cumprida. Está vivo : mesmo que ele esteja definhando ou desenvolva algum dano psicológico como depressão. Mesmo que a espécie pudesse ser protegida por essa via ainda temos 3 pontos não solucionados pelo zoológico: a educação, a função ecológica e a proteção contra a crueldade.

Vou começar pela proteção contra a crueldade. O estudo Fisiopatologia do estresse em animais selvagens em cativeiro e suas implicações no comportamento e bem-estar animal é uma revisão de literatura de vários outros trabalhos sobre os danos psicológicos causados pelos Zoológicos.
O encarceramento causa dano porque dá o sentimento de apreensão que evolui para ansiedade. Além da sensação de estar preso, os animais sofrem com a exposição ao público e com o condicionamento da agenda do animal à exposição, alterando seus horários em virtude as apresentações ao público. Os animais são então submetidos a sons das pessoas, imagens, odores, falta de contato social, de privacidade , má nutrição e uma porrada de condições que vocês podem checar clicando no link do artigo.

Alguns casos envolvendo os Zoológicos ficaram famosos lembro aqui de alguns deles. O Chimpanzé Jimmy, que estava aprisionado no Zoológico de Niterói apresentava danos psicológicos : copulava com um cobertor, ficava irritadiço com as crianças que o visitavam, se isolava, dava claros sinais de falta de vontade. O caso dele chamou tanto a atenção que personalidades do mundo todo se mobilizaram para levá-lo a um Santuário e impetraram um habeas corpus. O habeas corpus não foi concedido mas Jimmy acabou indo ao Santuário de Sorocaba. O resultado? Jimmy recuperou o ânimo, parou de copular com um cobertor e até adotou três filhotes de chimpanzé.

Jimmy e sua filha Sara

Outros tantos casos ficaram famosos e vou citar só mais alguns para não ficar exaustivo. O tigre Diego sofria maus tratos no Zoológico do Distrito Federal e o IBAMA solicitou que ele fosse resgatado para o Santuário Ecológico Rancho dos Gnomos. O Rancho dos Gnomos atendeu a solicitação e hoje Diego tem uma vida bem mais tranquila e feliz.

Tigre Diego no Zoológico de Brasília — a pedido do IBAMA foi enviado ao Rancho dos Gnomos

E esses casos não são os únicos, acontecem aos montes: o IBAMA constantemente solicita que animais sejam retirados dos Zoológicos em condições de maus tratos e solicita envio aos santuários. Mais um caso de grandes felinos transferidos ao Rancho dos Gnomos. Espera, mas será que é só aqui? Não senhor, é no mundo todo, Zoológicos por toda parte causam maus tratos e os animais são transferidos a Santuários. Tem chimpanzé de zoológico do Líbano, de laboratório nos EUA, de tudo quanto é lugar , tem furão negligenciado por Zoológico, todos indo a Santuários. Lembra daquele Zoológico de Brasília do Tigre Diego? Então, teve onça e leão saindo de lá e indo pra Santuário também. No México teve leões, linces, pumas e coyotes que foram transferidos para um santuário nos EUA. Enfim, os exemplos não acabam.

Durante a audiência de conciliação para a importação de uma leoa Baguira que sofre maus tratos na Argentina para um Santuário Brasileiro ( o Rancho dos Gnomos) o IBAMA , por determinação judicial, deveria apresentar os zoológicos aptos a receberem a leoa. Eis que a advogada do IBAMA diz:
.-O zoo do Rio de Janeiro diz que pode ficar com a leoa.

.- O que vai fechar? — respondi

.- É…

.- Não tem condições de ficar lá.

.- Nenhum Zoológico pode receber, está complicado…

Esse zoológico “apto a receber a leoa” está em uma situação de calamidade , um abandono que chega a ser deprimente. A OAB do Rio de Janeiro propôs que o lugar seja transformado imaginem no que? Isso, um Santuário.

Não espanta que donos de zoológicos tenham sido condenados por maus tratos, como aconteceu no Município de Salete(SC),e mesmo um leigo possa atestar a deplorável situação em que muitos deles se encontram como é o caso do Zoo de Americana(SP). Tem casos de maus tratos em Taboão da Serra(SP), em todo lugar. Casos isolados?

Leões de Americana(SP) só pele e osso.

Sem falar naquele Zoológico de Lujan, Argentina, aquela ofensa à racionalidade, em que os grandes felinos ficam dopados para receber o público. Os responsáveis pelo lugar dizem que os animais não são dopados: cara pálida, volta lá pra cima no texto e vê o que acontece se você chega perto demais de um leão.

Eu sei que já está exaustivo mas o ótimo artigo do Holocausto Animal cita uma série de estudos no texto 10 fatos que desmascaram a farsa dos zoológicos. Cito alguns dos dados apresentados:

No estudo realizado no Reino Unido foi constatado que 54% dos elefantes apresentavam problemas comportamentais anormais durante o dia. Um único elefante se comportou de forma anormal por 61% do período de 24 horas .

Leões em zoológicos gastam 48% de seus tempos andando lentamente, um sinal reconhecido de problemas comportamentais .

Os elefantes africanos vivem três vezes mais na natureza. Até mesmo os elefantes asiáticos, que vivem ameaçados pela extração de madeira, vivem mais do que no zoológico.

40% dos filhotes de leão morrem antes de completar um mês de idade nos zoológicos. Na natureza, porém, apenas 30% dos filhotes morrem antes dos 6 meses de idade e pelo menos 1/3 dessas mortes ocorrem devido a fatores que estão ausentes nos zoos, como a predação .

Fica refutado, portanto, que zoológicos preservem indivíduos. Tampouco pode-se falar em preservação da função ecológica: o animal sequer é capaz de manter seu comportamento na natureza, o que dirá preservar a função ecológica. Os santuários conseguem protegê-la em parte, preservando o comportamento do animal de forma que algumas das suas relações se mantenham, mas não todas. Protege plenamente o indivíduo e a espécie e em partes a função ecológica. Os Santuários ganham também na educação: alguém por favor me responda o que é que se educa em um zoológico? O animal não mantém nada do seu comportamento natural, as crianças são ensinadas que podem aprisionar seres sencientes para o seu lazer e aprendemos a ignorar os interesses dos outros. É uma lição da ausência de empatia. Os santuários ensinam que já destruímos demais o habitat dos animais e eles têm o direito de viver em paz. Caso façam tanta questão assim de ver alguma coisa pode-se perfeitamente instalar câmeras nos santuários e pode-se assim acompanhar os animais mais à vontade que em um zoológico. A arquitetura do lugar, então, não fica condicionada à visitação e sim ao atendimento das necessidades dos animais : a parte educativa é mero fruto possível mas só se legitima caso não cause impacto e não condicione os animais. O texto do Holocausto Animal também responde os argumentos de que os Zoos serviriam à educação e à preservação das espécies. Não vou pegar os argumentos de lá, leiam no original que o texto é ótimo .

Somos contra os zoológicos porque somos anti-capitalistas

A pessoa no artigo basicamente diz que sentimos raiva do Zoo-ilógico cobrar entrada ( ? ) e alega que a maioria dos Zooilógicos não cobra.

Bem, nosso ponto nunca foi vocês ganharem dinheiro: se enriquecerem não escravizando ninguém bom pra você. O problema é que a exposição dos animais, como já dito, faz com que a vida dos animais gire em torno disso. Alterando a agenda dos animais, fazendo com que estejam em contato com pessoas gerando stress, conformando os espaços e, sim, trazendo a lógica mercantil que precisa de um debate à parte. Em muitos casos os animais são instrumentalizados e a condição de maus tratos deriva diretamente da ideia de que sejam meios de renda. Esse não é nosso argumento principal — mesmo porque não se aplica a todos os casos — e sim o da exposição.

Mas pessoa presidente da associação dos Zoo-ilógicos, de novo, eu não vou ficar bravo se você ganhar na loteria ou fizer um aplicativo e ganhar rios de dinheiro com isso. Só queremos que deixem os animais em paz.

Santuários são inviáveis

“De onde vão tirar o dinheiro?” Brada a representante dos Zoológicos triunfalmente em um triunfo que só ela enxerga. Bem, de vários lugares. O primeiro deles é do mesmo lugar que tiramos para os zoológicos. Segundo a própria Yara Melo de Barros 56% dos Zoológicos do Brasil não cobram entrada. De onde sai o dinheiro? Isso, do meu bolso e do seu, dos impostos. O Estado subsidia.

Agora, pensemos. O zoológico precisa manter uma estrutura de segurança adequada para receber visitas. Isso custa dinheiro. Precisa manter uma logística interna pensada nas visitas, com uma arquitetura e uma construção voltada às vias com pista, iluminação, etc. Isso custa dinheiro. As pessoas que vão ao Zoo-ilógico jogam coisas no chão, sujam, precisam de informações, passam mal, usam banheiro. Alguém precisa limpar o chão e o banheiro, alguém precisa dar a informação, alguém precisa fazer a segurança. Adivinha? Isso tudo custa dinheiro. Para onde estaria indo esse dinheiro desses Zoos que não cobram ingresso caso não precisassem gastar com isso? Exato, para a estrutura dos animais.

Bem , mas há aqueles que cobram, certo? Sim, mas parte dos públicos cobra ingresso, o que significa que parte do preço é subsidiado e quem vai visitar paga. O governo banca do mesmo jeito. Não tendo que gastar com a estrutura inflada é possível que esses que o governo banque e cobrem ingressos possam virar santuário sem muita coisa a mais — mesmo porque hoje os santuários se mantém sem nada de ajuda do governo.

A presidente da associação dos jardins zoológios debocha da viabilidade dos santuários mas quem cobra entrada, recebe ajuda do governo e ainda assim deixam um monte de animais definhando não são os santuários. Os santuários, ao contrário, são financiados pelo público que confia na qualidade do seu trabalho. Que coisa: a OAB do Rio de Janeiro pede que uma organização que cobra entrada e/ou recebe financiamento do governo seja substituída… por uma privada, mantida pelo público, que sem facilitador nenhum ainda assim goza de mais credibilidade que os zoológicos.

E antes de achar que os santuários não tiram dinheiro de lugar algum é bom lembrar que o Rancho dos Gnomos fez uma campanha para comprar um terreno maior e arrecadou 1 milhão .

Quando teve o acidente das porcas do Rodoanel em agosto de 2015 em poucos dias foi arrecadado via crowdfunding o valor de 300 mil reais.

É claro que precisamos de mais pessoas, mais veganos, mais abolicionistas contribuindo. Mas o caminho é esse: é lutar para que os animais tenham uma vida digna em vez de dissimular que os recintos dos zoológicos sejam adequados. Infelizmente os Santuários também possuem limitações, mas tais limitações não afetam os indivíduos, pelo menos não da mesma forma como os zoológicos afetam. Jimmy por exemplo se recuperou e pôde ter uma vida digna porque além de mais espaço e com mais enriquecimento ambiental não a vida do animal para de girar em torno de visitações de humanos.

Pegaram? Uma instituição que se propõe a preservar o ambiente deixa que os animais percam a identidade, definhem e morram muito antes do que deveriam. Zoo-ilógico.

Em tempo : a página Papo de Zoo publica um anúncio de “emprego” para treinador de mamíferos marinhos. Se tem uma coisa que consegue ser tão ruim ou pior que os zoológicos são os parques aquáticos: pegue tudo o que eu disse sobre os Zoos e aplique a animais desenhados para um espaço oceanamente maior que são adestrados para fazer truques na base da violência psicológica e física. Vocês são um lixo mesmo.

Nota: Não existe ainda a categoria jurídica dos Santuários no Brasil. No caso da Baguira vencemos e ficou constatado pelo próprio IBAMA que é necessário criar, com urgência, e já estou trabalhando nisso. Concordo que deva haver regulamentação para que o Santuário não seja qualquer fundo de quintal que se auto-intitule santuário e no fim seja um monte de amadores com bom coração. Precisamos de mais instituições como o Rancho dos Gnomos, o Santuário de Sorocaba e agora o Santuário dos Elefantes :) .

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