Qual o lugar de voz das Drag Queens dentro da discussão de gênero?

De tudo, um pouco: entenda a trajetória da travestilidade no Brasil e conheça a Teoria Queer, uma corrente de pensamento que promove a desconstrução da normatividade.

Lucas Panek
Não faz a frígida
5 min readDec 4, 2015

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Filme Tatuagem, uma das principais obras queers brasileiras.

Texto de Lucas Panek

Eu estava cobrindo uma peça de teatro com a temática da homossexualidade para uma pauta do jornal da faculdade. A ideia era falar sobre obras do Festival de Teatro de Curitiba que ganhavam espaço em locais inusitados. Aquela acontecia numa casa noturna que, por muito tempo, foi o coração da noite LGBT de Curitiba. Não tinha cadeira, os espectadores estavam todos em pé e eu já estava impaciente com o espetáculo que não começava.

Foi quando uma mão, com longas unhas vermelhas, saiu de trás das cortinas e abriu um leque num movimento ligeiro e escandaloso. Naquele momento, via uma Drag Queen dominando o palco pela primeira vez. Desde então, uma questão se colocou na minha cabeça: Como posso definir uma drag queen? Ou seja, qual o seu espaço de limitação?

Recebi muitas respostas:

“É travesti”.

“Tem tudo a ver com fetiche”.

“É um homem que se veste de mulher”.

Mas nenhuma delas me pareceu suficiente, na verdade a maioria foi redutiva. Por isso, decidi fazer um estudo mais aprofundado, baseado em teorias, textos, falas e opiniões das próprias drag queens. A conclusão que cheguei é que é preciso entender a construção histórica da comunidade drag, assim como entender um pouco de algumas teorias, como a queer, para, por fim, compreender que um conceito para elas seria volátil de mais. Vem comigo:

Tribais e Modernas

É bem provável que tenhamos muito mais a aprender, sobre como encarar o gênero, com os indígenas — que nem sabiam o que era essa palavra — do que imaginávamos. Os registros feitos por antropólogos e viajantes do Brasil colonial comprovam que a relação dos gentis com o sexo, a nudez e suas genitálias era muito diferente do que estava estabelecido na Europa e o que é socialmente ensinado hoje.

Além das relações homossexuais serem bem comuns em diversas tribos, entre os guaicurus apareciam as primeiras variações do binarismo de gênero conhecidas pelo homem moderno: os cudinas eram índios do sexo masculino que eram castrados, vestiam-se de mulher e cumpriam papeis femininos, o que incluía a prostituição e, segundo o antropólogo Darcy Ribeiro, funções artísticas.

Carmen Miranda é uma das responsáveis pelo florescimento das drag queens brasileiras. Seu estilo Campy inspirou a moda e o transformismo brasileiro.

José Silvério Trevisan, em seu livro Devassos no Paraíso, relata ainda a existência de outra tribo que confundia os portugueses. Os botocudos não tinham parâmetros de distinção entre homens e mulheres nos papéis da aldeia. “Sua própria constituição física não variava muito de um sexo para o outro — ao contrário do sistema patriarcal-ocidental, responsável pelos padrões de força do homem e de fragilidade na mulher, conforme a análise do sociólogo Gilberto Freyre”, descreve Trevisan.

A cultura do “pecado nefando” trazido da Europa pela cruz da Igreja Católica acabou com essa preciosa herança. Instalou-se uma era sombria de repressão, fogueiras e moralismo disfarçado. Mas, no final do século XVIII, a travestilidade dominou os palcos de teatro. Atores não eram considerados pessoas muito dignas em Portugal, por isso, foi proibida a participação de mulheres em peças de qualquer gênero. Foi aí que surgiram atores especializados em papéis femininos. Mais um tempo se passou e o Teatro de Revista abriu espaço para as travestis de forma irreverente.

Figuras como Madame Satã, Carmen Miranda, Ney Matogrosso, Roberta Close e Eike Maravilha foram surgindo, com o tempo, e dando novos ares e moldes para a cultura da travestilidade, do transformismo e das drags. O gênero ganhou um caráter performático e, ao mesmo tempo, assumiu seu aspecto político.

Teoria Queer

Aí o mundo, que já se considerava esclarecido sobre as questões de gênero, tem um baque quando se depara com uma tal de Teoria Queer. Uma proposição de pensamento que afirma o corpo como meio de regulações e espaço de constante disputa. Mais além, configurou-se em um movimento libertário, principalmente pela voz de Judith Butler, que passou a problematizar a heteronormatividade de forma subversiva e provocadora.

Para se ter uma panorama completo do que é a Teoria Queer, o ideal seria construir uma noção história da discussão desse pensamento, falar sobre diversos autores e exemplificar em situações práticas. Entretanto, vou me abster desse compromisso aqui — caso tenha interesse em entender mais, leia aqui — para poder simplificar e focar na compreensão das Drag Queens nesse universo.

Algumas pessoas afirmam que o queer é um termo guarda-chuva que abriga diversas outras relações de gênero, que fogem do binarismo “homem” e “mulher”. É e não é. Um dos trunfos da Teoria Queer foi incluir e representar outras formas de personificação humana, como os de terceiro gênero, gênero fluído, gêneros performáticos ou agêneros. Então, o queer é uma forma de incluir toda forma de ser que não se baseia nos parâmetros normativos.

“Eu nunca fui mulher, sempre fui pessoa. Nunca permiti que me chamassem de mulher. Falei: não, não sou mulher, sou pessoa. Porque desde pequena eu percebi que o homem é “melhor” do que nós. Então eu resolvi não ser gênero” — Elke Maravilha.

Mas como isso afeta a conceituação das Drag Queens? Muita gente, inclusive as Drags, sentem dificuldade em usar um termo definidor de gênero: sou transexual? tenho um gênero fluído? ou sou homem? O queer cumpre esse papel de sou quem eu quero ser, com um gênero que, nomeado ou não, garante uma representação.

Por fim, é papel da Teoria Queer denunciar, também, “a restrição das liberdades em relação ao que fazemos com nossos corpos, como queremos e como podemos usá-los para expressar nosso gênero. Lutar contra a normalização torna-se uma pauta para além dos interesses específicos dos homossexuais e amplia-se como uma questão política contemporânea”, revela a socióloga argentina Letícia Sabsay.

Ser drag é performar o gênero por meio de expressões corporais e políticas.

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