Não Há Respostas Quando Morre Uma Pobre — Reportagem Completa

Em 2016, foi encontrado um cadáver amarrado, amordaçado e enforcado numa árvore de mangue, numa praia de São José (SC). Tratava-se de Maiara Felisbino dos Anjos, uma jovem de 22 anos, natural de Gaspar (SC). Apesar da brutalidade, o caso nunca foi levado a sério pela polícia, o que nos levou a um trabalho de investigação, que durou mais de um ano e meio.

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Capítulo I — Noite passada os cães não ladraram

17 de novembro de 2016

Marcus Vinicius Amaral Pereira saiu para uma caminhada matinal perto das 10h da manhã, como era de costume quando visitava seus pais numa beira-mar localizada no bairro Ponta de Baixo, em São José (SC). Nesses dias em que procurava manter sua forma, lutando contra o avanço dos 34 anos, fazia um trajeto que consistia basicamente em percorrer a Prainha, que recebia esse nome por ser um grande jardim coletivo onde o mar deságua numa faixa de areia de menos de um metro, junto a um gramado amplo.

Esperava encontrar ali o de sempre: a companhia dos vira-latas que sobreviviam das sobras, o ânimo dos akitas e dos beagles detrás dos portões, uma ou outra gaivota nas pedras à distância. Pássaros cantando no alto do telhado dos casarões de dois andares, dos muros de dois metros e das árvores de mangue. Na areia da praia, cascalhos arrastados do mar puxando bitucas de cigarro e pontas de baseado restantes das noites anteriores dos jovens, geralmente provindos dos bairros vizinhos. E no gramado, o decadente barquinho amarelo de listra branca e nº44, quase sempre preenchido por entulhos, como pedaços de madeira e um rolo de corda de pescador.

A única coisa que Marcus não esperava encontrar naquele ambiente imaculado pelo blasé da classe-média-alta era um cadáver.

Mal atravessou a mureta, quando se deparou com uma garota amarrada com o que parecia ser fita adesiva junto a um tecido vermelho, enforcada por uma corda de pescador que se alçava no topo de uma das árvores de mangue. A boca estava amordaçada, por voltas e voltas de uma fita parda. O corpo estava sentado, a coluna ereta, sobre raízes pontiagudas do manguezal, inundadas pela maré que começava a subir.

A polícia chegou cinco minutos após a notificação. Ademar e João Otávio eram os responsáveis pela ronda naquela manhã. Encontraram uma movimentação ao redor do corpo. Trataram de isolar a cena e conter os ânimos mórbidos do pessoal. Com exceção da boca, cujas camadas de fita sobrepunham uma volta e meia, firmemente no mesmo lugar, as ataduras enrolavam o corpo todo, irregulares, como uma serpente de plástico que não sabe sair do nó em que se meteu. Começavam nas mãos, junto a tira vermelha de elástico. Não apertavam muito, serviam mais para atar os pulsos sobre as pernas, também enroladas em fita. Dali, subia até a cintura, pra dar três voltas e seguir pros braços, sobre a roupa, até conectar-se à pele dos pulsos outra vez, para então retornar à cintura, e voltar para a coxa esquerda. O laço no pescoço, com os nós à esquerda, pendia a cabeça para o lado oposto. Areia sujava as laterais da legging de lycra.

Detalhes do corpo encontrado na praia no dia 17 de novembro de 2016. Imagem: Inquérito Policial

A garota tinha ascendência indígena e alemã; seus grandes olhos eram puxados; o queixo era quadrado, marcado por duas linhas musculares que atravessavam até a metade da bochecha; seu nariz lembrava uma batatinha; enquanto o cabelo, pouco abaixo dos ombros, estava loiro oxigenado, descuidado pela falta de retoques, deixando que lentamente a raiz negra reconquistasse seu espaço.

Os dois notificaram a Polícia Civil, que demorou quase uma hora para chegar ao local do crime.

E sessenta minutos foi mais do que o suficiente para que se espalhasse a notícia de que a Prainha amanheceu com o corpo de uma jovem loira na faixa dos 20 anos. Primeiro chegaram os moradores dali, um ou outro já havia visto a menina antes, geralmente de dia, fumando um baseado ou tirando selfies. Como é o caso do advogado Paulo Santana Júnior, que mesmo sem chegar perto do corpo, pressupôs se tratar de um caso de suicídio. Em seguida, chegaram os moradores da Fazenda Santo Antônio — a “Fazenda Max” — , da Ponte do Imaruim, e da região adjacente num todo. Nessa leva de curiosos, vieram juntas Angélica Rosa e Juliana “Neguinha” Passos Costa, duas moças da Fazenda Max, que reconheceram o corpo como sendo de sua amiga: Maiara Felisbino dos Anjos. Elas até quiseram se aproximar para ter certeza, pois parecia ficção, mas não podiam comprometer a cena.

Ilustração: Marcos Keller

Os policiais não deram tanta bola para o relato das duas, talvez porque pensavam que diante de um crime todo mundo quer mostrar serviço, ou não as achassem críveis por terem a pele negra. Preferiram então ouvir um colega do posto policial da Fazenda Max, conhecido por Silveira. Ele podia jurar que se tratava de Mayara Kammer, a qual conhecera quando a garota ainda era criança, e havia determinado para si um futuro na polícia.

Mas ela sequer era parecida fisicamente com o cadáver. Na época, os cabelos curtos e rentes ao ombro eram castanhos. Já era corpulenta, e a gravidez de quatro meses se evidenciava. Tinha piercing no septo, tatuagem nas costas e nas coxas. Usava óculos de grau.

Silveira nem íntimo da moça era, que mal lembrava dele. Se fosse, saberia que Mayara já havia mudado de ambições para sua carreira; sonhava em ser médica. Ou que era bissexual, gostava de frequentar festas LGBT, como a 1007 e o Conka, e que tinha um namorado, Tiago Grizulfi, pai de seu filho, com quem estava junto desde em janeiro de 2016.

Foi justamente num consultório médico, acompanhada do namorado, que ela recebeu a notícia mais bombástica. Não pelas revistas velhas no balcão, mas sim pela mãe, via mensagem:

— Reconheceram seu corpo no IML. Querem que eu vá lá confirmar.

— Como vai ser eu, se eu saí de casa agora? Tô no hospital.

Print da publicação de Mayara Kammer após a notícia de que ela teria morrido

Ela achou engraçado nos primeiros minutos. Mas às 14h, sua prima a bombardeava com prints da notícia sobre sua morte. Amigos do Rio Grande do Sul mandavam mensagens, emocionados. A vizinhança a recebeu em lágrimas. Desmentir aquilo levaria um mês inteiro.

Mayara Kammer não entendia o que diabos estava acontecendo ao seu redor.

Quando questionado pelo jornal Hora de SC sobre o mal entendido que perturbou a moça e sua família, o delegado Manoel Galeno, responsável pela investigação, só soube dizer que: “A gente trabalhou a tarde inteira com o nome de Mayara Kammer, mas não procede esta informação porque essa Mayara está viva. Eu vi ela pessoalmente.”

A notícia segue relatando que o erro custou ao delegado um dia inteiro de testemunhas sem utilidade. “O caso está sendo investigado pela Divisão de Investigação Criminal de São José. Conforme Galeno, a investigação voltou à estaca zero, já que as testemunhas ouvidas na quinta-feira foram em função do nome errado. Ele preferiu não informar suas suspeitas se caso foi um homicídio ou suicídio.”

À esquerda: Maiara Kammer; à direita: Maiara Felisbino dos Anjos. Imagens: perfis do Facebook

Seguiram então pelo caminho mais óbvio: ouviram as testemunhas iniciais, Ju e Angélica. Finalmente reconheceram que aquele era o corpo de Maiara Felisbino dos Anjos, uma moradora da Fazenda Max, de 22 anos, tão normal quanto qualquer outro jovem a frequentar ali, tanto que carregava no bolso uma carteira de Dunhill, um isqueiro azul, um maço de chaves, dois reais em nota e 1 real em moeda. E de similar, as duas garotas só tinha o nome, que ainda por cima variava na grafia.

Objetos encontrados junto ao corpo de Maiara. Imagem: Inquérito Policial

Restava à polícia o trabalho de descobrir quase tudo sobre essa garota. Tinham como pista, além do depoimento das duas amigas, a imagem da câmera do casarão de Édio Schmitt Sales, dono de um pastor alemão que só late para quem nunca pisou naquela rua. Às 22h do dia 16 de novembro de 2016, a câmera capturou Maiara caminhando à beira do mar, chutando a água enquanto segurava o sapato na mão, pueril, como uma criança que frequenta pouco a praia. Seu trajeto foi filmado até o pequeno manguezal, onde a luz se dissipou naquele breu tão profundo que unia a vizinhança e os nóias numa mesma causa de reclamar com a prefeitura sobre a insegurança que o ambiente trazia. Curiosamente, o pastor alemão de Édio não latiu naquela madrugada.

A polícia não guardou as gravações.

Capítulo II — O aroma que só os relacionamentos reduzidos a pó têm

Ilustração: Marcos Keller

18 de novembro de 2016

“Conforme o delegado, apesar de o IML ter descartado inicialmente a hipótese de suicídio, foi encontrada uma carta de despedida no apartamento da vítima. No texto, endereçado à mãe, Maiara relata que estava muito triste pelo fim de um relacionamento. (…) ‘Nós colhemos depoimentos de familiares que disseram que ela estava depressiva. Não dá para descartar homicídio, mas são vários indícios que levam a gente a suspeitar de suicídio’, explica o delegado.”

Passaram-se 24h desde a notícia de que a polícia havia errado o nome da vítima e Galeno mudou de ideia quanto a se pronunciar ao Hora de SC sobre suas suspeitas. A verdade é que o delegado deu o prognóstico de suicídio assim que soube da morte. Parecia-lhe óbvio que uma garota de 1,59m de altura e mais ou menos 50kg teria se amordaçado, amarrado o próprio corpo e se enforcado, ainda por cima sentada sobre raízes de mangue pontiagudas e incômodas. Sua declaração ao jornal saiu ao final do dia, no qual colheram provas no apartamento e depoimentos dos familiares.

Natural de Brasília, o delegado tem uma aparência um tanto imponente, com um rosto arredondado e largo, cuja seriedade é ressaltada pelo cabelo raspado, por uma musculatura robusta ao mesmo tempo que magra, e um tom cético na forma como fala dos casos que investiga. E, em algum nível, esse conjunto de características impressionou a família da vítima; vieram das cidades catarinenses de Gaspar e Tubarão, onde nasceu Maiara, a mãe, Ilcilei dos Anjos, a prima mais íntima, Márcia dos Anjos, e o padrasto, Celso Besen. Este último foi o que mais se deixou levar pela incipiente narrativa policial, pondo-se à disposição inclusive como um guia pela vida de Maiara.

Galeno acompanhou a família até a kitnet em que a vítima morava: um conjunto de puxadinhos que foram costurados à estrutura original de uma casa de dois andares com o passar do tempo. A dona do local, Marta Regina Felisberto, morava no térreo junto à família, enquanto seus inquilinos residiam nos apartamentos acima. O acesso para o segundo andar era feito por uma escadaria de concreto que, segundo a dona, possibilita a qualquer um transitar sem chamar a atenção. A polícia arrombou a porta do apartamento e, junto a familiares e a Marta, deparou-se com um quarto caótico. Restos de cigarros de maconha esparramados pelo chão, outros preenchendo uma sacola, enquanto a geladeira emanava um cheiro de podridão da comida passada. A bagunça aumentou na mão dos policiais, que vasculhavam os pertences a esmo, sem muito cuidado ou metodologia aparente, como ressaltaram os familiares. E essa falta de organização fez com que quase deixassem passar um detalhe bem notado pela proprietária: um lençol cortado, ao lado de uma tesoura. A cor do tecido — para o desespero da mãe — era idêntica à daquele encontrado nos pulsos de Maiara.

Última casa na qual Maiara morou, no bairro Fazenda Max. Imagem: Google Maps

A prima Márcia, de 32, foi quem mais se incomodou com a atuação policial. Loira, com menos de um 1,60m de altura, corpo triangular e malhado, com rosto quadrado e de traços finos, Márcia tinha aparência e posicionamento de uma mulher amadurecida. Tentava segurar as pontas sem roubar o protagonismo. Não chorava igual sua tia e tampouco queria mostrar serviço igual o namorado dela, que palpitava sobre tudo o que via. Guardou, entretanto, suas críticas para quando fosse mais pertinente, discutindo futuramente com o delegado Galeno.

Além da maconha, que foi devidamente recolhida, e do lençol picotado reconhecido por Marta, os policiais encontraram uma Bíblia, marcada por uma folha de agenda, com um poema. Ilcilei reconheceu a caligrafia da filha. Ela escreveu assim:

“Desculpa por desistir!!! Eu queria tanto viver quem vive lute sempre por aquilo que lhe faz bem e que te traga alegria!!! Desculpa vida por não ser mais feliz, por não lutar mais Por desistir assim… Quero poder voltar mais feliz doque eu fui um dia!!! TE AMO…..”. Imagem: arquivo da família

Isso bastou para ratificar a opinião de Manoel Galeno de que se tratava de um suicídio.

Márcia já havia lido aquele mesmo texto anos antes mais de uma vez, inclusive. Via sua prima escrever poemas melancólicos em agendas e caderninhos. Aquele era só mais um, de muito tempo atrás, e só fazia sentido uma leitura fatalista para quem não conhecia sua vontade de viver. Por isso ela, assim como os outros familiares, não recebeu bem a declaração de Galeno à imprensa de que Maiara havia escrito um bilhete suicida, muito menos de que ele era pautado no término de um relacionamento, uma vez que o texto sequer cita terceiros.

Começou então a tomada de depoimentos dos familiares. Entrou na sala de Galeno a matriarca, Ilcilei Felisbino dos Anjos, uma mulher branca e loira, com um metro e meio de altura, de costas arqueadas e retraídas em uma melancolia que a persegue desde antes da morte da filha. Uma melancolia visível nas marcas de expressão sinuosas próximas dos olhos caídos. Marcas profundas, mas de aparência atenuada pela maquiagem pesada e os óculos escuros que tanto insiste em usar, mesmo em ambientes fechados. Sua voz é trêmula, perdida, e não é incomum suas frases serem entrecortadas por gaguejos e buscas por palavras mais complexas, as quais raramente encontra. Essa insegurança é disfarçada na tentativa de construir um distanciamento emocional e nas vestes caras. Ilcilei é o tipo de pessoa que, segundo familiares, não desce do salto nem para uma caminhada esportiva à beira-mar.

Além dela e do delegado, se encontrava na sala o escrivão Felipe Marisquirena Duarte. Ela começou dizendo que mantinha um bom relacionamento com a filha até meados de maio de 2016. Pois, nesse período, Maiara se tornou uma garota cada vez mais fechada — e até mesmo agressiva — , pois havia recém iniciado um relacionamento com um rapaz que Ilcilei viera a conhecer uma única vez. Segundo a mãe, ainda em depoimento, a filha morava sozinha na Região Metropolitana de Florianópolis há cerca de três ou quatro anos. Porém, em diferentes momentos, Maiara se recolhia para Gaspar, a fim de espairecer junto à família. Inclusive, a última vez que ela fizera isso foi na segunda metade de 2016, pouco antes de morrer, quando estaria perturbada por motivos que não quis revelar para ninguém. Ao fim, Maiara se mudou de volta para São José, com as duas primeiras parcelas do aluguel custeadas pela mãe. O último encontro que Ilcilei teve com a filha foi em 5 de novembro daquele ano, pouco tempo após descobrir, por meio de seu companheiro, Celso, que ela fumava maconha.

Celso Besen também deu seu depoimento. Ele é um homem alto e magro, albino, de cabelo amarelo-ovo, tem 60 anos de idade, 18 a mais que Ilcilei, o que é notável em suas rugas profundas. Na dinâmica do casal, é o mais proativo e, em alguns momentos, agressivo, principalmente no modo como exerce seu paternalismo.

Ele, assim como Ilcilei, avaliou ter uma boa relação com a Maiara. Ainda em confluência com o depoimento da parceira, disse que o que abalou sua relação com a enteada foi o novo relacionamento que ela assumiu. Celso se disse assustado com a efervescência da paixão dela por esse novo rapaz. Em seu depoimento, fica muito presente sua avaliação de que Maiara ficava triste com muita frequência — o que, revelou mais tarde em entrevista a esta reportagem, serviu de sinal também para que acreditasse na tese de suicídio.

23 e 24 de Novembro de 2016

No Restaurante Premiatto, no Continente Shopping, em São José, a colega Cassiana Soares e a dona do estabelecimento, Jaqueline Andersen, lembravam de Maiara como uma funcionária cada vez mais melancólica, sim, mas nem sempre assim. Nem por isso, também, completamente irresponsável e sem dedicação. Citaram no depoimento policial o comprometimento que, ao longo dos anos, decaía para um comportamento cada vez mais revoltoso. Batia bandejas diante dos clientes, não poupava palavrões em voz alta e era arrebatada por crises de choro inexplicáveis. Seu descontrole emocional tinha razões concretas, que escapavam a colegas em momentos de desabafo nos intervalos do expediente. Maiara falava de seu passado turbulento, de um momento presente atormentado e, principalmente, como fugia dele — pelo abuso de substâncias ilícitas.

Segundo o depoimento, a Pituquinha, como o pessoal do shopping a chamava — por causa do cabelo amarrado de lado — , soava cada vez mais como outra pessoa, estranha, incógnita. Frisaram: Maiara fumava maconha todos os dias e, nos dias ruins, fumava mais ainda. “Você tá usando droga demais”, diziam, quando estavam diante de uma de suas condutas erráticas. Ao que alegaram, certa vez, ouvir de resposta: “Eu sempre trabalhei chapada, vocês é que nunca perceberam.”

Porém, antes fosse só maconha que Maiara usasse em excesso. Contou às duas que, quando ia nas festas rave nos dias de folga, se entupia de ecstasy e baforava lança-perfume, só por diversão. E que chegou até a utilizar crack por dois meses, mas que teria conseguido abandonar o vício sozinha. Ela inclusive chegou a usar esse envolvimento com drogas para amedrontar a chefe e os colegas. “Sabe com quem eu ando, né?”, disse quando pediu demissão.

Mas a verdade é que para Maiara, esse abuso não tinha origem na vontade de se sentir descolada, como é com a maioria dos jovens, mas na necessidade por suporte para carregar o peso das negações de sua própria vida: uma de abandonos e tristezas.

Isso começou já em 1994, no seu primeiro ano de vida, quando o pai, Darci Adriani De Pieri, encontrou Ilcilei em sua porta, com aquela criança no colo, e recusou a reconhecê-la como filha. Levou as duas de volta pra Gaspar imediatamente, para que Maiara jamais aparecesse diante dele, muito menos o chamando de pai. Comprou essa negação pagando àquela mulher aproximadamente R$ 3 mil para que jamais fosse atrás dele na Justiça — acordo que se mostrou impossível de manter quando se era uma mãe solteira. Depois disso, ele viu Maiara no máximo umas três vezes na vida, como contaram os parentes maternos da garota.

Quando procurado pela reportagem, Darci, que não compareceu ao enterro, disse:

“A gente até fica mal [com a morte] e tal, é a filha do cara, né. Mas eu não posso falar muito dela, não, mal vi a menina.”

Para tocar a vida adiante, Ilcilei usou esse dinheiro para dar de entrada na construção de uma casa. Abriu também uma lanchonete em Laguna com sua irmã. Se administrar um negócio era difícil, ser mãe (e pai) de primeira viagem não ajudava. Quando Maiara fez dois anos, teve de mandá-la aos cuidados da avó. Dizia ela que manter a criança por perto a atrapalhava nos negócios. Alguns familiares já acham que o problema era outro, não com a filha, mas com ela própria — uma crise diante do espelho: Ilcilei não gostava que Maiara a chamasse de mãe em público porque, na sua cabeça, isso reduziria o interesse de outros homens.

De volta à Gaspar, teve que lidar com a dualidade da avó, Sebastiana. Era uma mulher que mesmo tendo sido abandonada pelo marido alcoólatra, tinha o coração tão grande que não via problema em acolher mais uma criança, tendo criado em torno de 12, entre netos e filhos. Seu jeito carinhoso, entretanto, contrastava com sua intransigência e rigidez nos costumes morais, altamente influenciados pelo seu cristianismo fervoroso. Nisso surgiram atritos entre as crenças da avó e a personalidade liberta de Maiara.

Na cidadezinha, foi criada até os 12 anos, até ser mandada de volta para morar com a mãe. O motivo: foi flagrada cheirando cola de sapateiro com alguns colegas da escola. Se a conduta já é polêmica o suficiente para o mal-falar de alguém, imagine isso numa cidade de 66 mil habitantes.

Esta foi uma das escolas na qual Maiara estudou durante sua infância em Gaspar. Imagem: Eduarda Hillebrandt

Aos 14 anos, Maiara fumou seu primeiro baseado, na frente da casa da avó. Aquilo passou a ser estresse demais para a cabeça da matriarca, que pediu que Ilcilei voltasse a cuidar de sua filha. Mãe e filha voltariam a morar juntas. Mas Maiara já tinha gravado no coração uma distância muito maior do que os 229 km que sempre a separou daquela que a via uma vez por mês e preferia não ser chamada de mãe.

Ela a chamava de Leide, e quando mais fria, Ilcilei, porque era assim que qualquer um a chamava.

Havia muitos conflitos na nova casa, em Tubarão. Conviver com a mãe e o padrasto era tempestuoso demais. Principalmente, pelas brigas constantes com Celso, que criou para si uma narrativa de vítima de um ódio gratuito por parte da enteada. Não conseguindo obedecê-los, em 2009, Maiara decidiu morar com a pessoa que mais lhe entendia, a prima Márcia, em Sombrio (SC). A ela confidenciou que o desgosto por Celso tinha origem em fatos até hoje obscurecidos, sobre os quais só soube dizer “eu tenho meus motivos, prima, ele não é o que parece”.

Era com Márcia que dividia as dúvidas da vida: o que é menstruar, como se vestir, andar, falar e se tornar mulher. Foi ela, também, que tentou afastá-la dos vícios. Um dia, soube que Maiara estava com o namoradinho, o segundo maior traficante da cidade, alguns anos mais velho que ela. Encontrou-a fora de si, ao lado dele. O sujeito dizia que estava tudo bem. Pelo entorpecimento de Maiara, não estava. E se dependesse de Márcia, ficaria pior — iria chamar a polícia se sua prima não saísse dali naquela hora.

A menina, que tinha 15 anos e havia recém começado um relacionamento com a cocaína, estava sendo arrastada pela rua. Maiara protestou, xingando a prima, e apanhou. Um tapa só, na cara, feito a criança que era. O suficiente pra calar a menina e gravar na mente da prima a dor de bater em alguém que era quase uma filha.

“Tu nunca mais me faz passar por isso outra vez,” Márcia vociferou.

Mas a dor de Maiara era mais profunda do que um tapa poderia alcançar. Ela nunca conseguiu abandonar as drogas.

Maiara em sua infância. Imagens: arquivo da família

Um ano depois, em 2010, a jovem se mudou para a região da Grande Florianópolis. Longe da família, dividia suas moradas temporárias com outras meninas, com as quais aos poucos construía amizade. Ainda menor de idade, fazia bicos em lojas de sapato, restaurantes e onde mais fosse possível, bancando sua independência da família e livre para tomar suas próprias decisões. E decidiu que fumaria um, sim, sozinha ou com os carinhas de bicicleta que só queriam conversar, de boa, sem maldade alguma, claro. Decidiu também que não devia nada a eles e que Tiago, aquele rapaz com quem ficou por uma semana, já parecia bom o suficiente pra morar junto naquele mesmo ano. A relação foi boa, tinha carinho, mas nem por isso pouco atrito, e quando ele a contrariava, fazia sentido para Maiara chorar, espernear, bater o pé. Terminaram um ano depois e ela tocou a vida adiante, sozinha, como sempre foi.

Até que em dezembro de 2012 apareceu um ex namorado chamado Luiz Eduardo Domingues e tudo deu ruim, de um jeito que ela nunca conseguiu esquecer. O relacionamento foi conturbado, com muitos abusos — que você entenderá no próximo capítulo. Assim, o término, que se deu no início de 2013, coincidiu com o desemprego e uma necessidade de fuga para Gaspar. A cidade é um pedaço de terra cortado por um riacho e marcado pelo ar cinzento e denso, típico município pequeno em que o coração é a igreja localizada no ponto mais alto. E assim sendo, não comportava as necessidades por substâncias que Maiara vinha nutrindo há anos, como explicou sua prima Géssica, de quem se aproximou nesse período. Difícil comprar drogas numa província. “Normalmente a gente nem saia muito em Gaspar, não tinha festa, nada.”

Durante esse período, Maiara trabalhou com facção manual para o tio, que pagava um valor meramente simbólico, sem horário fixo, até que ela foi para uma empresa na qual foi registrada. O pouco dinheiro que ganhava tinha um fim muito claro: tirar carteira de motorista e comprar uma motinho — um desejo longínquo, que a acompanhou por toda a vida, nunca se concretizando. Infelizmente, a grana não ficava na poupança, parando nos cofres de boates como o El Fortin, a mais de 70 km de distância. A sede pela liberdade arranhava a garganta de Maiara, desnorteada ainda pelo relacionamento passado. Os doces e o lança-perfume da boate não a satisfaziam cem porcento, e a saudade de um pó amigo foi batendo. Houve noites em que Maiara chamou conhecidos de Palhoça pelo Facebook, suplicando por cocaína. Chegou a se oferecer para comprar dez gramas, porém não tinha dinheiro pra tanto e, mesmo que conseguisse um preço bom, o qual encontrou após conversar com um ex-ficante que se compadeceu das lembranças sexuais, não tinha como sair de Gaspar para realizar a compra.

Ao que suas conversas no Facebook dão a entender, essa vontade por pó não vinha apenas da saudade de seu relacionamento com a droga em Sombrio, mas da necessidade por dinheiro. Uma parte iria pro nariz dela e outra viraria papel no bolso. Em meados de 2013, tentou comprar 20 gramas com um colega, Felipe, o qual cobrou 20 reais a grama. Ela achou muito caro e difícil de revender, desistiu da transação e seguiu na busca, a qual terminou infrutífera. Precisava voltar ao seu habitat, precisava voltar a Florianópolis.

Gaspar era uma camisa de força e Maiara enlouqueceu nessa solitária. Segundo Géssica, a relação da prima com a mãe não ajudava muito, o distanciamento delas era um agravante no desgosto que nutria pelo local. À prima, Maiara confidenciava as saudades que tinha da capital: “Florianópolis é uma cidade grande, tem bastante festa, bastante lugares diferentes, as praia pra passear.”

Finalmente saciou a vontade e voltou para a Ilha da Magia, como é conhecida, e dessa vez, trouxe Géssica consigo, com quem moraria junto no futuro. Fez um novo Facebook e se instalou no bairro que viria a ser o cenário do resto da sua vida e morte: Fazenda Max.

Capítulo III — De longe todo rosto é o do carrasco

Ilustração: Marcos Keller

23 de Novembro de 2016

Uma terceira e última colega de trabalho de Maiara depôs à polícia, Ivaneusa das Graças Soares. Para além dos relatos de uma alteração repentina de humor da vítima, que ficou cada vez mais agressiva, ela lembrou de episódios em que Maiara falava sozinha e gargalhava a esmo, tendo tudo começado pouco antes de uma revelação que surpreendeu a todos no restaurante em que trabalhavam: estava grávida. Em 27 de abril de 2016, Maiara publicou em seu Facebook uma foto frente ao espelho, na qual segura a barriga com a mão sobre uma camisola cinza, com a hashtag #NossofilhojaTeAmamosmuitoPedro❤. Assim, não só revelava ao mundo que carregava uma criança, mas já expunha o nome que o futuro ser humano viria a ter. As colegas de trabalho não souberam como reagir, tentando tirar mais informações de Maiara, que se manteve evasiva, serena e entorpecida, às vezes em transe. Pouco tempo depois, o assunto se esmoreceu.

Sua sanidade mental, entretanto, mantinha-se em cheque perante os colegas. Pois, com o esquecimento da gravidez, emergiu uma nova questão: por que diabos Maiara estava andando com uma boneca pelo shopping? Por alguns dias, ela foi vista caminhando, zumbificada, enquanto alisava as madeixas sintéticas da boneca que carregava no colo, chegando a ninar o brinquedo na frente da loja Ri Happy. Era como se não tivesse acordado da fantasia na qual já era mãe.

Então, de forma muito repentina, a Pituquinha se virou contra a chefia do restaurante e pediu demissão. Mais ou menos um mês antes, ela vendera seus 20 dias de férias, recebendo pouco mais de R$3500, com já atribuído salário. Assim, quando assinou a rescisão no sindicato, não ganhou mais nada, levando-a a um surto nervoso, pois acreditava ter sido injustiçada, uma vez que aquele dinheiro já havia se esvaído — não se sabe para onde.

A verdade é que o descontrole emocional de Maiara não era exclusividade do ambiente de trabalho. Havia mais de um ano que ela vinha agindo de formas pelo menos estranhas. Data-se que o ponto de start do desequilíbrio psicológico dela se deu com a notícia da morte violenta de seu ex-namorado, quase esposo e eterno carrasco, Luiz Eduardo Domingues. Ele faleceu após levar cinco tiros no peito, na frente de casa, no dia 11 de abril de 2015, em Biguaçu, município da Grande Florianópolis. Maiara só soube desse assassinato quatro dias depois, via messenger, por uma conhecida em comum.

O relacionamento deles havia acabado fazia dois anos, mas as memórias nunca a abandonaram. Sentiu mais alívio do que dor com a notícia. Fora que, por causa deste, a quem se referia como “lixo”, foi que se mudou para Gaspar em 2013, se afundou de vez nas drogas pesadas e fez um Facebook completamente novo, o qual usou apenas em 2014. E só assim, com cinco disparos no peito dele, que podia finalmente relaxar. Mas quem disse que conseguia?

Maiara e sua prima Géssica moravam juntas quando a turbulência se iniciou. Tinham uma relação boa, uma cozinhava para a outra, iam às festas juntas, eram quase irmãs, e sua maior divergência estava na proporção em que cada uma aguentava festejar, uma vez que Maiara não só era filha da noite, como boa parte da sua paleta de amizades surgiu em chácaras, raves e boates.

Foi breve o período de satisfação e paz pós-morte do Dudu, como era conhecido. Nos meses que se sucederam, surgiu em Maiara a sensação de estar sendo constantemente perseguida. Se perguntava quem seria o stalker, talvez alguém a mando de Dudu ou até mesmo o próprio, fingindo estar morto. E nem mesmo a música eletrônica e as luzes piscantes que sempre serviram como seu exílio do mundo de labor e desgraça puderam salvá-la do fantasma do ex-namorado abusivo que a puxava pelo pé onde quer que ela pisasse.

Certa noite, no segundo semestre de 2015, Maiara decidiu ir à balada, mas não queria sair sem companhia. Chamou então Géssica, que por sua vez levou o então namorado, Rodrigo. Maiara estava inquieta, andando de um lado para o outro, além do normal de um baladeiro, enquanto o casal se manteve mais sossegado. Era difícil de acompanhar a prima.

“Maiara, fica aqui mais perto da gente”, Géssica reclamava, sempre infrutífera.

A noite foi passando e os dois ficavam cada vez mais preocupados, tinham que trabalhar na manhã seguinte, não dava para ficar até tarde. O difícil era convencer Maiara a ir embora junto. Tão árdua era a missão que eles só desistiram e se recostaram nuns pufes, assistindo aos passos dela, tentando garantir que se encontrava segura.

Géssica então se levantou para ir ao banheiro. Lá dentro, enquanto lavava as mãos, uma garota de cabelos escuros perguntou “tu não tá com aquela loirinha lá?”, para o que ela respondeu que sim.

A morena disse de volta: “Olha, ela tá lá brigando.”

Géssica correu para fora, em direção ao palco, e viu a prima toda suja de sangue, e arranhada no rosto. Na verdade, a maior parte do sangue vinha de um machucado que Maiara adquirira no dia anterior, ao cortar o dedão durante seu trabalho na cozinha do restaurante Premiatto. Mas a sujeira era tamanha que manchou até a sapatilha preta com ponta dourada que pegara emprestada da prima.

“Meu Deus, Maiara, o que foi que aconteceu?”, perguntou Géssica.

“Foi ele, Géssica, foi o lixo. Foi o lixo que mandou as guria me bater. Duas guria vieram pra cima de mim. Foi ele que mandou elas me bater!”

“Mas que lixo?”

“O Dudu!”, respondeu, fora de si. “Vamo pra casa agora, que não quero ficar mais aqui”, continuou.

Antes de ir embora, Géssica a levou ao banheiro e enrolou o dedo ferido em papel higiênico. Na volta, Maiara não emitiu um som sequer. “Quando chegamos em casa, ela só trocou a roupa, botou um pijama e foi dormir”, conta.

No dia seguinte, já no trabalho, o telefone de Géssica apitou com uma mensagem de Maiara. “Olha, Géssica, olha esse vídeo aqui!”. Na imagem, dançavam na balada da noite anterior um homem alto de boné branco ao lado de uma das garotas com quem Maiara brigou. A prima estranhou e perguntou o que havia demais naquele vídeo, sendo surpreendida com a resposta, “é o Dudu”. Certa de que era ele, ela fez questão de viralizar a mensagem por todo seu ciclo de amizades e familiares, mas ninguém comprava a história de que o mesmo teria fingido a própria morte.

Géssica se emociona ao lembrar dos últimos momentos com a prima. Imagem: Eduarda Hillebrandt

O episódio foi central na virada de 180º da sanidade mental de Maiara. Pois, dali em diante, ela passou a relatar aos amigos de diferentes ciclos que continuava com a sensação de estar sendo perseguida pelo ex, algo que não sustou de vez, nem mesmo nos últimos meses de vida. Nesse período final, em 2016, vizinhos a viam chorando ao telefone, reclamando com o vento, discutindo com a poeira; amigos encontravam dificuldade em manter uma conversa sem terminar em discussão e a cartela de romancinhos foi diminuindo até que, por alguns meses, Maiara, que sempre teve uma vida sexual ativa, se tornou uma pequena celibatária. As pessoas tinhamdificuldade em entender como um relacionamento podia abalar tanto alguém, pois não foi o primeiro, nem o emocionalmente mais intenso, já que esse título era de Tiago, namorado de quando ela tinha 16 anos, sobre o qual se referia como sendo o amor de sua vida. Dudu era simplesmente o mais traumático.

De junho a dezembro de 2013, ele controlava os passos de Maiara. Não a deixava usar roupas curtas, nem sair com as amigas. Acreditava que sua mulher deveria ficar trancada, na segurança do lar, sem guardar segredos dele. Se ela o desobedecesse, apanhava. Luiz Eduardo, com 33 anos, assaltante de carreira, dava a atenção que ela, com 19, descobriu que não queria. Tinha cinco autos de prisão em flagrante, um inquérito, um termo circunstanciado — e pouquíssima tolerância com a mulher que dizia amar.

Os amigos de Dudu entendiam que era só uma forma de protegê-la. No lugar dele, também teriam medo de que algo acontecesse com sua companheira. Acreditavam que era melhor cercá-la por completo do que deixar que as feras a atacassem — ou então que ela fugisse. Um deles, Jean Silva, certa vez acompanhou Dudu para buscar a jovem no trabalho, no fim do expediente, quando o amigo estava ainda sem documentos em mãos. Queria garantir que, do restaurante, ela voltava pra casa, e não outro lugar. Não viu problema naquela atitude. Achava compreensível, afinal, como não se preocupar? Ela está no ponto de ônibus, “é altas gata” e “safado por aí tem de monte”. Lembrando da cena, Jean enxergava ali amor verdadeiro. Se ele não a amasse, não teria se esforçado só pelo bem dela. E se ela não retribuísse, não teria ficado na casa com ele — não à toa, Maiara terminou com Dudu e foi embora pra Gaspar em fevereiro de 2013.

As amigas dela, por outro lado, se preocupavam com o ciúme descontrolado daquele homem. Como é o caso de Ana Paula Dantas, a qual conta que Luiz Eduardo bateu na porta da casa de sua mãe, Débora, no encalço da amada, que “havia desaparecido”. O padrasto de Ana Paula respondeu que não a viu, e Dudu saiu procurando por todas as amigas dela, já que Maiara havia saído de casa sem dar notícia. Ana Paula lembra dele como o cara grande e tatuado que sua amiga conheceu no El Fortin, em mais uma de suas muitas noites juntas. Só naquele dia que teve ideia do tamanho do problema que ele era para sua amiga.

Conversar pela internet era um privilégio que Maiara não desfrutava. Dudu controlava seu celular e estava sempre desconfiado do próximo pulo desnecessário, injusto e incompreensível da mulher amada. Numa das vezes, adicionou um sujeito no Facebook pela conta dela. Personificando-a, tentou puxar papinho, flertando com a mesma graça e sedução de um rochedo. Tudo pra provar um medo que só existia na sua cabeça.

Conduta errática de Luiz Eduardo Domingues, personificando Maiara em um de seus momentos de ciúme

Maiara decidiu que aquela seria a curva na sua longa estrada de relacionamentos mal-pensados. O fantasma de Eduardo a aterrorizava nas ruas em que ela jurava vê-lo também por lembrar daquele passado que ela jamais queria reviver, outra vez, com outro homem. Precisava que aquele que estivesse ao seu lado fosse, no mínimo, decente. E levou muito tempo até que alguém assim aparecesse.

No começo de março de 2016, apareceu. Tairone França dos Santos era o nome dele. Conheceram-se numa dessas raves em chácaras, e foi sintonia à primeira batida. Dali saíram juntos mais umas três vezes, ela na casa dele, ele na casa dela, e por fim juntos ao ar livre, num posto Ale, na marginal da BR-101. Nesta ocasião, Ilcilei se fez presente, num breve período de tempo. Tairone se viu numa sinuca de bico, estava entre idas e vindas com a namorada de longa data, Andréia, e de repente já conhecia a mãe dessa nova amante. Foi bom enquanto durou, o que não passou de três semanas.

Março acabava e levava junto a relação. Ela não aceitou bem.

16 de novembro de 2016

Tairone estava relutante em encontrar Maiara. Ela vinha insistindo há um tempo, mensagem após mensagem no Whatsapp e no Facebook. Ele achou que seria suficiente dizer que tinha voltado com sua ex-namorada, que não ia rolar mais, e que a vida segue. Por um tempo, foi. Até que um dia, seu inbox recebeu uma solicitação de mensagem. Ela mesma, mas em outro perfil no Facebook — um sem amigos adicionados, mas com 116 fotos de si, publicadas entre 27 de outubro, quando foi criado, e 15 de novembro. Não parecia mais a mesma pessoa.

Aceitou se encontrar com Maiara porque aquele era mais um ponto baixo na sua relação com Andréia. Além de que, também precisava de algumas respostas. No final do expediente daquela quarta-feira, às 18h, na loja de materiais de construção Bela Obra, em Palhoça, tomou um ônibus rumo à Fazenda Max.

Uma hora depois, encontraram-se no local combinado, na loja de conveniências do Posto Ale. Tairone tem um metro e sessenta e cinco, cabelo castanho desenhado num topete, e as laterais raspadas. Bigode ralo e um chumaço de pêlos no queixo, que formava uma ponta no rosto roliço. Não era exatamente gordo, mas nem por isso exatamente forte — parrudo, talvez. Não estava muito diferente do cara que Maiara conheceu no começo do ano. Talvez a única diferença fosse que ela nunca o vira assim: final do expediente, com a mistura de suor e ferro no corpo de trabalhador braçal no setor de serrarias.

Já Maiara se encontrava quase como sempre: maquiada, perfumada e — para a surpresa de Tairone — magra como não deveria estar. Cumprimentaram-se, e ela se inclinou propondo um beijo, que acertou na trave e logo se tornou outro tipo de proposta:

“Tenho um beck pra botar pra nós. Vamos ali, mais pro cantinho? Ficar mais de boa…”

Seguiram pela rua, cem metros adiante. A curva da estrada dava para um galpão ao lado da fábrica da Gerdau, que àquela hora cobria toda a iluminação oriunda da rodovia e do posto. E um muro de pedra, entre o pátio e a continuidade da rua, barrava qualquer luz dos postes seguintes. Para Maiara, aquele canto escuro era propício para fumar um. Para ele, talvez não fosse possível botar tudo a limpo e sentar ali sem tomar más decisões no meio do caminho.

Acenderam o baseado. Ela deu uma bola, antes de passar para Tairone:

“E aí, como você tá?”

“Tô de boa. E você, como que tá?”

“Suave. Procurando emprego, o outro lá não dava mais. Mó rocha.”

“Sei. Cê não tinha umas paradas pra conversar comigo?”

“Não. Só queria te ver.”

“E aquela conversa de que você tava grávida?”

“Não estou.”

Silêncio.

Tairone lembrava bem do impacto da notícia: ela havia publicado várias fotos no Facebook de sua suposta gravidez. Numa delas, em 2 de maio de 2016, a mão na barriga levemente saliente, curvilínea. Nos comentários, as amigas a chamavam de “Mamãe do Ano”. O papai, só os dois sabiam quem era, e aquela informação se descortinou via inbox. Ele duvidava, incrédulo. Mas, ainda por mensagem, Maiara perguntou se queria “ajuda pra lembrar”.

Maiara exibindo a gravidez no Facebook. (Imagem: Arquivo Pessoal)

Naquele momento, cara a cara, perdeu a ousadia que tinha por detrás das telas. Ali havia uma menina chorosa, que queria de volta o carinho do cara que melhor a tratou desde o Dudu.

“A menstruação atrasou, foi isso.”

20h30 e o celular dele vibrou. Era Andreia avisando que estava saindo da academia. Hora de ir. Maiara insistia que ficasse. Tairone pensava que era porque “ela se sentia bem e confortável comigo”. Mas não era só por isso que ela queria sua companhia. “Ela tinha medo de alguma coisa.” Para acalmá-la, acompanhou-a até o cruzamento da Rua das Embaúbas com a Viviana Guanabara, na qual, não sabia, ficava a atual casa dela.

“Tu segue, que eu vou ficar.”

“Não,” ele insistiu. “Eu te levo em casa.”

“Não, não. Tu segue. Eu vou ficar.”

Ali se despediram, desejando o melhor um para o outro. Para aí, então, Tairone ir para o ponto de ônibus na marginal da BR-101, enquanto Maiara acenava. Ele não viu se ela entrou em casa, nem contou pra ninguém o que aconteceu naquela noite. Muito menos que, “não vou mentir, uns beijinhos a gente trocou”.

Oficialmente, Tairone foi a última pessoa que conversou com Maiara.

18 de novembro de 2016

Após ouvir o depoimento de Ilcilei sobre o casinho de Maiara que ela conhecera meses antes, num encontro efêmero num posto de gasolina, o delegado convocou Tairone para uma conversa na segunda-feira seguinte. Os 10 anos de Galeno na corporação o ensinaram que se há o namorado, ele geralmente é o principal suspeito.

O serralheiro ficou nervoso ao se tocar de que, provavelmente, fora a última pessoa a falar com Maiara e pensou em esclarecer isso na mesma hora. Respondeu ao telefonista da delegacia que já estava saindo do trabalho e fazia questão de conversar o quanto antes. Correu as ruas de São José e sentou-se cara a cara com Galeno e sua trupe de policiais. Mas antes, esperou, esperou e esperou, por longos minutos, enquanto, segundo ele, um policial mais velho o pressionava. “O cara tava um veneno, um veneno! Se coçava com a pistola e tudo mais”, conta.

“Fala a verdade, anda, fala a verdade”, dizia o policial.

“Não fiz nada, não fiz nada”, repetia o mantra.

“Fala a verdade, pô.”

“Não fiz nada.”

Lentamente, Tairone repensava sobre o que diria quando o delegado de fato o chamasse; sentia-se incriminado pela sua própria existência como ex-affair de Maiara. Talvez por isso, já no começo do interrogatório, frente a frente com Galeno e seu escrivão, Felipe Marisquirena Duarte, mentiu:

“Já faz uns três meses que eu vi ela”. Na sua mente, perguntava-se como vou explicar para ele que focinho de porco não é tomada.

“A gente sabe que não é verdade”, redarguiu Galeno.

“Tô falando a verdade, ô.”

Ilustração: Marcos Keller

Mas Galeno não precisou de muito para quebrar Tairone e fazê-lo admitir que a vira horas antes do crime. E ele não devia, mas temia — e tremia. Àquela altura, o nariz do porco poderia muito bem conduzir eletricidade, pois o rapaz se tornou o principal suspeito da polícia, que contava basicamente com a contradição como maior evidência de um comportamento suspeito. E quem não gostou nem um pouco desse depoimento foi sua advogada já constituída em outro caso — o da guarda de seu filho — Miryan Deyse Zacchi, que o confrontou sobre não tê-la chamado assim que foi convocado à delegacia.

“Oh, dotôra Miryan, quem não deve não teme!”, respondeu o cliente.

E nessa história, pelos cinco meses que sucederam os fatos, quem ficou devendo foi a polícia, que parou de dar satisfações à família, em especial à Márcia, que conduziu o acompanhamento do caso em nome da mãe de Maiara, Ilcilei.

Começava então uma nova fase na família: a da espera angustiante.

Capítulo IV — Dois anos na praia que sempre amanhece igual

Maio de 2017

Cinco meses se passaram e o caso de Maiara havia se tornado uma pilha de poeira, uma dívida da polícia, a qual se manteve estática. Nesse período, mal respondiam aos questionamentos de Márcia dos Anjos, que passou a agir como cobradora oficial da família. O stand by das autoridades se deu por uma dispensa do delegado.

Dessa forma, quando Manoel Galeno voltou de licença, pouco havia mudado em relação ao que se tinha antes: os depoimentos de familiares da vítima e amigos não tão íntimos assim; as últimas imagens dela, no monitoramento da câmera de segurança da Polícia Militar, entrando na Prainha. Talvez a maior mudança tenha sido no fato de que a prefeitura iluminou aquele breu da Prainha que tanto gerou reclamações — pega mal ser responsável por proporcionar um ambiente para homicídio.

A maioria dos laudos chegaram mais ou menos nesse período, sendo que o único a ter sido lançado antes era o cadavérico, datado de 17 de novembro de 2016, no dia de sua morte. Nele constavam poucos detalhes além do visível: tinha uma pequena tatuagem nas costas, de três cruzes, escrito “maiara 1”; unhas pintadas; colar de bijuterias. A corda provocou um sulco no pescoço, mais aprofundado no lado direito e na parte de trás. Pequenas manchas vermelhas no rosto. As pontas das raízes do mangue marcaram suas coxas.

Houve morte? Sim;

Qual a causa? Asfixia devido a enforcamento. A fita adesiva sobre a boca contribuiu parcialmente para restrição respiratória;

Qual o instrumento que a produziu? Energia de ordem físico-química;

Se foi produzido por meio de fogo, veneno, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel? Sim. Asfixia.

O laudo para drogas psicotrópicas, solicitado em 16 de maio de 2017, respondeu, em 13 de junho daquele ano, que sim, os 65,4g de cigarros artesanais parcialmente carbonizados encontrados na sua residência, correspondiam a maconha.

Para o exame tóxicológico, quatro tubos de ensaio foram enviados do IML — três de sangue, um de conteúdo gástrico. Retornaram em 29 de março de 2017. Deram negativo para álcool e, para surpresa de ninguém, positivo para THC no corpo da vítima.

A perícia também avaliou quatro swabs de resíduos de seu corpo. Dois deles, anais, deram em nada. Os outros dois, vaginais, deram positivo para sêmen.

Barco de onde veio a corda utilizada no homicídio. Imagem: Gabriel D. Lourenço

O pedaço de corda, as fitas adesivas e o tecido com elástico ficaram retidos para análises no Instituto de Criminalística. Demais informações sobre eles não constaram no inquérito até então. Entretanto, muito provavelmente a corda pertence a Evelton, um segurança profissional, que ali pesca semanalmente, nos dias de folga. Ele contou que seu barquinho de nº 44 costuma ficar estacionado na Prainha, sem supervisão, e que, poucos dias após o crime, numa visita ao local, percebeu que a corda que guardava no barco fora cortada e roubada. Somente após conversar com os vizinhos que descobriu sobre o crime. Ligou A mais B e percebeu que a corda, que até então servia para manter o barco atracado, foi o instrumento da morte de Maiara. A polícia nunca procurou por ele, nem pela origem da corda, mas se tivesse, saberia que o autor do crime tinha conhecimento e domínio do ambiente.

O tempo passa e leva consigo os pormenores das provas. A perícia de local de crime, solicitada também em 16 de maio de 2017 — seis meses após o incidente — não apontou muito mais do que o laudo cadavérico já dissera ou o que os policiais já viram. Relembrou do conteúdo nos bolsos de Maiara. E especificou que a altura do galho onde a corda estava amarrada era de 2,60m do chão. E que os outros dois galhos logo abaixo dele tinham 94cm e 1,13m do chão, subentendendo que qualquer um poderia subir ao topo e preparar a corda se assim quisesse.

Todos os exames só provavam que o delegado ainda tinha muito o que fazer. Sua conclusão? “Tudo é possível”, dizia. E no seu “tudo” suicídio se mantinha como uma possibilidade sólida.

7 de julho de 2017

A chegada dos exames foi concomitante à renegociação da dívida da polícia por parte da família, que há muito se desesperava com o vazio de informação. Sempre à frente, Márcia foi à delegacia, em São José, para se encontrar com Galeno, acompanhada de Ilcilei e Marli dos Anjos, tia de Maiara. Entraram mais uma vez naquela entediante sala de repartição pública, com mesa de MDF, armários de madeira envernizada e xícaras pirex sempre cheias de café. Ele sinalizou com as mãos para que elas se sentassem. Ilcilei entrou trêmula, com as bochechas molhadas pelas lágrimas anteriores, tinha olheiras profundas, mas, como de costume, tentava escondê-las por meio dos óculos escuros.

“Então, o que que acontece? Chegaram os laudos das drogas que foram encontradas no apartamento dela”, disse Galeno.

“Sim, mas não o…”, Márcia tentou responder.

“O tóxico? Não, ainda não, o toxicológico não”, disse ele, contradizendo o inquérito. “Saiu também o… não queria falar na frente da mãe dela porque é meio complicado pra mim isso, aí pra mim…” Galeno tentava não olhar muito para Ilcilei, que chorava um choro agudo.

“Você quer que a tia saia? É isso?” explicitou Márcia.

“Acho que era melhor falar só pra vocês, né? Depois…”

Márcia olhou para a tia, que entendeu o recado e concordou em sair do escritório.

Galeno retomou: “eu sei que é uma situação meio complicada. Chegaram dois laudos, o laudo das drogas que foram coletadas no apartamento e o espermograma. O laudo do espermograma constatou que tinha esperma na vagina dela, na Maiara.”

Cruzando todos os laudos até então apresentados, Galeno tinha uma certeza: a transa fora consentida. Isso fez com que suas suspeitas se afunilassem em Tairone — apesar de que, em outras conversas admitia se manter crente de que poderia muito bem se tratar de um suicídio.

“Eu vou ser bem sincero, o que eu acredito é que o Tairone possa ter participação nesse crime. Que no interrogatório, naquele início, ele mentiu. A gente foi só apertar ele, começou a apertar, que aí ele falou que horas antes, o corpo dela foi encontrado pela manhã, na madrugada, início da manhã… Ele disse que na noite anterior, ele fez uso de drogas com ela, disse que a última pessoa que viu ela foi ele, que se encontraram em um posto de gasolina ali na Fazenda do Max, fizeram uso de maconha e depois houve meio que uma despedida. Disse que ela tava meio depressiva, e ele não viu mais ela. Daí o corpo foi encontrado na praia todo amarrado. Só que, pra ele dizer isso, ele mentiu o tempo todo, aí que ele revelou isso. Aí, com o resultado do exame, do laudo do espermograma, constatando isso, né…”, tentou explicar o delegado.

“Tá, mas não fizeram um exame cruzando pra ver quem é a pessoa?”, questionou Márcia, enfurecida.

“Tem que pedir ordem judicial pra isso e mesmo com ordem judicial ele pode negar.” Galeno continuou insinuando para a família que Tairone era um homem possivelmente perigoso, alertando-os que não falassem mais com o rapaz. “Com o laudo de local de crime a gente vai constatar se foi homicídio ou suicídio. Se for homicídio, vou pedir a prisão dele.”

“Mas aí cadê a impressão digital?” Márcia não conseguia entender como a polícia, em quase um ano, conseguia ter tão pouca informação.

“Isso não quer dizer nada, porque se é homicídio, a pessoa tá usando luva, luva cirúrgica, aí não vai ter impressão digital realmente. A gente não pode descartar nada, mas tá tudo se fechando, tudo se fechando no Tairone. Se for homicídio, eu peço a provisória dele, interrogo ele novamente, faço ele fornecer o… ele não vai fornecer nada, mas às vezes a gente… como é que se fala?” Galeno procurava uma forma não comprometedora de dizer o que realmente pretendia fazer. “Numa forma secreta, a gente pode pegar um material dele, pra fazer uma perícia com o esperma. Eu peço paciência, porque a gente vai conseguir chegar lá.”

Mas, àquela altura, a última coisa que Márcia tinha era paciência. A própria tia Marli pedia isso a ela, que respondeu: “mas daí a polícia vai fazer a parte dela e a justiça não vai fazer pagar; porque a justiça brasileira não faz ninguém pagar nada. Digamos que seja ele; não tem antecedentes criminais, não tem passagem pela polícia, vai ter bom comportamento na cadeia, vai ser feliz para sempre. Isso não é justiça, é?”

Parentes sofrem com a ineficiência da polícia. Da esquerda para direita: Prima Margarete, Tia Nadir, Tio Valmo, Prima Marinês. Imagem: Eduarda Hillebrandt

Se até então ela quem segurava as pontas da família, ali, Márcia não aguentou mais, desmantelou-se. Quase entrou no abismo da descrença, mas se agarrou ao pouco de esperança que ainda tinha. Saíram de lá pouco depois. Pode soar masoquista, mas foram direto ao local do crime, precisavam reviver a cena, se por no lugar da falecida.

Ilcilei chorou o caminho todo, ficou no carro. Márcia, acompanhada de Marli, caminhou pela calçada estreita, que media uns 50 cm, passando pelo mar fétido e o cano de despejo quase preto. Transitaram pelo começo do manguezal, onde as árvores se sobrepõem ao mesmo lixo de sempre — sacolas, garrafas, latinhas e uma escultura da Branca de Neve segurando um bebê, carcomida pelo tempo. Por fim, chegou ao vão em que Maiara poderia ter morrido.

Márcia se agachou por entre as árvores, pisando na areia grossa, tentando encontrar o ângulo da foto que circula na internet. Lembra bem da imagem; havia nela um papel estranho grudado nas costas de Maiara, um que a polícia nunca notou até Márcia chamar atenção do escrivão Felipe, por WhatsApp, e depois de Galeno, pessoalmente. Nenhum dos dois deu importância para a informação, disseram que podia ser uma sacola, tanto faz. Márcia se sentia desamparada quando precisava conversar com eles, o mesmo pode se dizer daquele momento em que havia encontrado o ângulo exato da fotografia. Conseguia projetar a morte de sua prima, que em algum nível fora, ao mesmo tempo, irmã e filha.

Chorou o pouco que ainda podia.

Elas atravessaram o estado de Santa Catarina pior do que quando saíram para confrontar a polícia. Havia, ainda assim, um resquício de energia em Márcia, algo que a manteve insistindo nessa história mais um pouquinho. Ela fazia com que chovesse mensagens no celular de Galeno, que voltava sempre com as mesmas promessas e acusações.

Esta camisa foi feita por amigos de Maiara da região de São José em sua homenagem. Imagem: Matheus de Moura

Setembro de 2017

Em meados de setembro de 2017, o delegado mandou um áudio por WhatsApp no qual afirmava ter entrado com um pedido de prisão temporária contra Tairone. Entretanto, ainda segundo seu áudio, o sistema do fórum teria entrado em pane, sem conseguir computar medidas cautelares. Mas isso não seria motivo para atiçar os ânimos, pois prometia que não seria um problema técnico a impedi-lo de por Tairone atrás das grades em uma semana. Isso não só não aconteceu como, quando procurado pela reportagem, Galeno afirmou que teria entrado com um pedido de prisão apenas em abril de 2018. Enquanto isso, Miryan, advogada de Tairone, se mantém consultando o sistema da Justiça de SC, mas ao invés do suposto pedido, o F5 só a responde com a mesma página em branco.

Com o tempo, Márcia fazia a transição de uma pedra bem sustentada para a areia à beira-mar, um simples desgaste físico e emocional. E antes que virasse areia pura, a prima de Maiara abriu mão de qualquer sentimento patriótico e se mudou para os Estados Unidos no dia 3 de março de 2018, onde reside, trabalhando como garçonete num restaurante e limpando duas clínicas médicas à noite. A distância física, entretanto, não foi suficiente para fazê-la esquecer do crime e da sensação de descaso, palavra que ressoa em sua cabeça sempre que lembra da polícia. O embrião desse abandono, tão comum aos brasileiros que não tem dinheiro no bolso, surgiu pela primeira vez quando Galeno declarou aos jornais que acreditava na tese de suicídio — apesar de não descartar a de homicídio. Para piorar, ele interpretou palavras que não existiam naquele bilhete encontrado na bíblia. Ninguém da família gostou da afirmação, tinham certeza de que Maiara não poderia ter se matado daquela forma, e de que o bilhete encontrado na bíblia não era um bilhete, muito menos uma escrita recente sobre um namorado, adereçada à mãe.

Em resposta à reportagem, o delegado disse que “família não tem que gostar de nada”.

Para Galeno, a tese de homicídio e suicídio podem muito bem andar juntas, paralelamente. O que não quer dizer que ele saiba explicar o que o leva a crer em qualquer uma delas. Talvez por isso, antes de interromper a entrevista, ele tenha resumido sua visão na seguinte afirmação: “esse caso é meio complicado… bem inconclusivo”.

Um dos fatores que mais dificulta o avanço dessa investigação, além da falta de vontade, é a má compreensão dos últimos dias de Maiara. E isso, por sua vez, não pode ser interpretado sem retroceder à última passada dela por Gaspar.

Junho a setembro de 2016

Embora nunca sejamos capazes de enxergar as feridas que a vida nos deixa, suas cicatrizes são sempre visíveis — ainda que tentemos cobri-las. Maiara não conseguia mais fazer isso. Até voltar para Gaspar, pela última vez, em 2016, a jovem já tinha percorrido uma trilha de dores muito únicas para apontar aos outros.

E as pessoas ao seu redor diziam: “Você está diferente.”

A prima Géssica percebeu isso de cara. Tão logo soube que Maiara chegou em Gaspar, decidiu prestar uma visita àquela com quem dividiu casas, noites, risos, dores e glórias. Encontrou-a arrumando suas roupas no armário do quarto — de Floripa não trouxera nada mais. Seu cabelo, na altura do ombro, não era mais o loiro vistoso de antes. Estava desbotado como o jeans clarinho que usava, e a cabeça longe demais para se preocupar com qualquer coisa. Géssica sentou na ponta da cama, observando aquela de quem sentia tanta falta. Mas ao invés de matar a saudade, dividiram um silêncio constrangedor.

“Maiara,” perguntou Géssica, “que que deu que tu não tá falando comigo?”

“Perdi meu celular,” respondeu, sem tirar os olhos da tarefa.

“Maiara, olha pra mim.”

A prima se escondia atrás da obrigação.

“Você nem tá olhando na minha cara!”, a paciência de Géssica não existia. “Tá conversando comigo mas não tá me olhando!”

Maiara ficou calada, como se a tagarelice entre as duas nunca houvesse existido.

“Você…” Géssica hesitou, “você tá grávida mesmo?”

A prima lembrava do dia em que recebeu a notícia da gravidez. Por telefone, Maiara confirmou, perplexa, mas também eufórica, que havia sido uma paulada real da vida. Ali, no entanto, o efeito da paulada era visivelmente outro.

“Não… não sei,” respondeu Maiara. “Não quero falar sobre.”

Géssica ainda sofre com a morte de Maiara. Imagem: Eduarda Hillebrandt

Géssica percebeu que estava diante de uma cicatriz que não havia fechado direito. E não sabia como agir, o que fazer, ou quais palavras poderiam suturar aquela ferida. Maiara levou um longo tempo até emergir de volta à realidade.

“Ai, Gê,” disse, num lampejo de lucidez. “Agora eu vou mudar. Eu tava mal, mas agora eu vou mudar. Já vou procurar um emprego, trabalhar, juntar um dinheirinho. Tu sabe né, morar com a mãe…”, e olhou para o chão, amargando a palavra que recém escapou da boca. Era desagradável para Maiara pensar no regresso à uma cidade em que nada via, com uma mulher que cresceu sem chamar de mãe.

“Tu vai ver, vou juntar um dinheirinho e montar um restaurante,” continuou. A conversa a havia relembrado de um sonho, de ter seu próprio negócio, e continuar fazendo aquilo que enxergava como um de seus maiores talentos. “Tu vai ver, Gé, um restaurante lá na beira da praia, eu e o meu fi…”

Maiara cessou a fala e, então, pôs a mão na barriga. Entrou de volta no silêncio do abismo dentro de si, voltou a arrumar as roupas e não disse mais nada.

Géssica teve a mesma certeza que a família, aos poucos e de outras formas, também teve.

Pois Maiara já havia, há muito tempo, perdido a calma. Se antigamente fazia questão de ouvir os conselhos da prima Márcia, ali passou a ignorar completamente suas ligações e não querer mais dar ouvidos — até não haver mais telefonemas. Se os baseados eram acesos longe de casa, às escondidas, dessa vez passaram a ser fumados dentro de casa, na frente de Ilcilei — que precisava tirar o cheiro do ar e as pontas do chão. Lá no fundo, Ilcilei sempre soube que Maiara fumava maconha, mas aquela foi a primeira vez que teve de se confrontar com essa realidade — até hoje intragável. Maiara sabia que isso magoaria a mãe, mas quem liga? Virara impaciente, impulsiva — fazia questão de ignorar aqueles que a amavam, irrestritamente.

Havia algo de errado com a Maiara que todos ali conheceram. E ninguém sabia direito o que era.

Aos poucos, alguns familiares foram desistindo de mantê-la por perto, enquanto ela se mantivesse rancorosa. Outros, como Géssica, ficavam cada vez mais aflitos. Esta foi relegada por Maiara à sua lista longa de ignorados, quando uma vez passou de bicicleta pela prima, pedalando, sorrindo. Géssica parou, esperando que elas se cumprimentassem e trocassem algumas palavras. Não aconteceu. De fato, era difícil encontrar nela a mesma Maiara que tempos antes escrevera uma carta especial para a prima.

“Jéssica, ser especial é… — é surpreender a cada atitude… — é fazer com que todos notem sua presença e sitam sua ausência… — É dexar amizades por onde passa e saudades por onde passou… — É ser o próprio sonho e o de outras pessoas — Ser especial é ser Assim, Igualzinha a VC!!! “gosto muito de vc, quando prescisar de mim sabe que pode contar sempre cmg,quero apenas o seu bem beijinhos de sua prima doidinha Maiara dos Anjos”. Imagem: Eduarda Hillebrandt

As insistências em visitar a prima e romper essa barreira intangível eram mal vistas por Rodrigo, o namorado de Géssica na época.

“Ela nem te responde mais e tu vai lá ver ela? Ela tá te ignorando…”

Ela respondia que não abriria mão. Afinal, era sua prima, e não ia desistir dela. Mas não seria preciso, Maiara já havia desistido há tempos.

É ao redor desta igreja que se constrói a vida metropolitana de Gaspar, cidade intrinsecamente ligada a Maiara. Imagem: Eduarda Hillebrandt

Outubro a Novembro 2016

Maiara voltou a São José, e a Fazenda Max nada mudara no breve período que passou em Gaspar. Até maio daquele ano, ela morava num conjunto de kitnets azul de alto padrão — para a região — , com quintal amplo e jardim intocável. Agora, de volta ao seu verdadeiro habitat, mudou-se para a kitnet já citada de Marta. Desempregada e ainda um tanto instável, recebeu de Ilcilei não só uma ajuda com o aluguel, adiantado em dois meses, como uma série de móveis usados em ótimas condições. Recomeçar a vida é caro, e isso Maiara e sua família já sabiam bem.

Este foi um período muito conturbado. Moradores do bairro a ouviam suplicando desculpas com alguém pelo celular. “Oh, meu amorzinho, me perdoa, não faz assim comigo.” Ela se encontrava completamente isolada, sem amigos, distanciara-se de todos desde seu o exílio em Gaspar. Os vizinhos viram, certa vez, Maiara apanhando para o que parecia ser dois homens. Era de noite e não conseguiram identificar bem os indivíduos — na verdade, ninguém gosta de entrar muito no assunto, pois, rege ali uma lei do silêncio imposta pelo tráfico, conhecida por muitos brasileiros de subúrbios e favelas. Quando ainda se encontrava em Gaspar, poparam mensagens no celular de Maiara, mensagens agressivas, de uma mulher que cobrava a grana de uma dívida, aparentemente grande, deixada por ela, antes da mudança, relacionada à compra de maconha. Maiara se esforçou ao máximo em nunca mais responder a moça.

A busca por emprego foi perseguida pelos surtos em que via Dudu, seu falecido ex. Onde Maiara ia, o fantasma ia atrás. A grana foi encurtando e junto dela o número de móveis no apartamento, cujo paradeiro era as lojas de móveis usado da região. Ninguém sabe onde uma garota sem amigos, familiares e emprego gastava tanto dinheiro, só sabem que gastava.

O suspiro de alívio veio com a chamada para uma vaga: cozinheira na Isa Crepes. Tratava-se de uma creperia na principal avenida do bairro Fazenda Max, em São José (SC). Mari, a dona do estabelecimento, tinha se empolgado com o currículo da moça, que contava com passagens por diferentes restaurantes do Continente Shopping, o maior da Grande Florianópolis, há dois quilômetros dali, na marginal da BR-101.

Era dia de treinamento e ela não queria arriscar perder o trabalho o qual vinha procurando havia quase dois meses. Fizera muita coisa para poder se manter erguida, sempre a procura de emprego. Fora que odiaria ter que pedir dinheiro à mãe mais uma vez, repudiava a ideia de ser dependente dela. Quando finalmente achou aquela vaga, foi contratada na hora. Maiara pôs o avental, veste com a qual já estava familiarizada, e começou a aprender as diferentes formas de se preparar um crepe. Mas, o aprendizado durou menos que uma aula de Youtube.

“Dona Mari, posso fazer uma pausa para fumar?”, disse Maiara, atônita.

A chefe olhou o relógio; a menina começara a trabalhar não havia nem uma hora, mas como era o dia de treinamento, preferiu não negar.

“Pode sim, querida.”

Ela então largou o avental e atravessou a porta de vidro, sumiu no meio da luz do dia que ali incidia.

Maiara nunca mais apareceu na creperia.

Na semana seguinte ao episódio, Maiara, desempregada, conseguiu arranjar dinheiro para tratar as madeixas, àquela altura eriçadas por frizz e secura.

Era em torno das 16h quando ela entrou no salão de Getúlia, perto de casa, num dia denso, daqueles em que as nuvens carregadas adiantam a noite e aumentam a umidade, mas se recusam a deixar a chuva cair. Estava de cara limpa, senão por um batonzinho, as olheiras manchavam a pele branca, e os ombros estavam um tanto retraídos.

“Oi, menina, como posso ajudar?”, perguntou Getúlia.

“Eu quero cortar o cabelo.”

“Qual o corte? Um chanel combinaria com você.”

Maiara caminhou pela sala de parede bege e enfeites rosa, foi até o espelho e se contemplou. Fora uma moça sempre maquiada e muito vaidosa — conhecida entre as amigas pelo bom gosto para roupas, geralmente compradas de anúncios em grupos de Facebook — , mas, naquele momento, estava com cara de doente, pálida, com bochechas que nunca mais foram vistas coradas. Virou-se para Getúlia e apontou para a altura dos ombros.

“Quero cortar aqui. Quero ficar bem bonita.”

Getúlia, que há muito já trabalha com isso, entendeu o recado. “Ela queria ficar bonita para alguém em especial”, conta. Maiara pouco disse na sessão, era difícil tirar alguma informação da garota. Nem fofoca de bairro funcionava ali. Depois de alguns minutos tentando puxar assunto, a cabeleireira desistiu, entendeu que o lance de Maiara era o silêncio, ou que, quem sabe, ela poderia estar triste.

Esta foto de Maiara na Prainha foi publicada em seu Facebook fantasma em 14 de novembro de 2016. Imagem: Arquivo Pessoal

A semana virou sem trazer qualquer novidade no status de desempregada, o que não atravancou sua rotina em nada. Era quarta-feira, 16 de novembro, e Maiara fez o que sempre fazia naquele dia da semana: comprou maconha. No fim da tarde, após ser vista voltando dos cafundós do bairro Ponta de Baixo, subiu a escorregadia escadaria da favela da região. Ela passou pelos moleques que ficam no meio do caminho, interceptando os viciados em crack dispostos a trocar seus objetos de valor por pedra, acenou. Chegou no topo e foi vista pelos seus traficantes: dois senhores gordos e carecas, instalados num casarão de madeira de dois andares, aos fundos de um terreno baldio onde nenhuma planta cresce e o lixo aumenta a cada dia. Em geral, Maiara comprava dez reais em erva, o que equivalia a mais ou menos três gramas; naquele dia, entretanto, pagou vinte reais e recebeu o que deveria ser seis gramas.

Os traficantes acharam estranho, pois não era do perfil da cliente, mas não questionaram. Eles entenderam: ela não fumaria sozinha.

Maiara dos Anjos na dianteira da bike. Imagem: Eduarda Hillebrandt

Capítulo V — As mãos que puxaram a corda

A essa altura da reportagem, você, leitor, já deve ter percebido que a Polícia Civil falhou em cumprir com seu dever por todo esse processo. Sendo justo, é natural que algumas investigações demorem um pouco mais, ou que siga ao mesmo tempo vertentes totalmente opostas. O que não quer dizer que seja aceitável dois anos de investigação terminarem em 94 páginas de inquérito, principalmente se considerarmos que desse documento pelo menos três páginas estão repetidas. Ou seja, o resultado desses dois anos foi um inquérito de apenas 91 páginas.

Mas antes fosse esse o único problema.

A análise do local do crime deixou a desejar, pois a polícia sequer procurou pela origem da corda que alçou Maiara à morte, talvez o objeto chave para compreensão do fato. Ainda relativo à cena do homicídio, foram ignoradas as imagens da câmera de segurança de Édio Schmitt, que a captou caminhando, aérea, por volta das 22 horas. Da mesma forma que o relato dele poderia contribuir não apenas para entender a hora que Maiara chegou, mas também que quem cometeu o crime conhecia bem o lugar. Afinal, tinha noção de que havia uma corda de barco passível de ser usada, e não foi recebido a latidos pelos cães de Édio, que sempre latem para quem nunca pisou na Prainha antes — algo que pudemos atestar na primeira ida ao local.

Outro erro foi ignorar todas as possibilidades de acesso do lugar. São três, para ser mais preciso: a ruela por onde entrou Maiara; uma rua maior, cuja pequena calçada da lateral direita permite acesso; e uma terceira rua, que se conecta à maior pela mesma praia, permitindo entrar sem ser filmado por qualquer uma das câmeras, pois, durante a noite, as prainhas se tornam uma só, graças à maré baixa.

Mapa das movimentações possíveis para o acesso à cena da morte de Maiara dos Anjos (Imagem: Arquivo da investigação/Google Maps)

Além disso, houve descaso, por parte da Polícia Militar, com Ju e Angélica, as conhecidas de Maiara que primeiro reconheceram o corpo — o que poderia ter poupado tempo e empenho na investigação da morte de uma Mayara que nem morta estava. E quando a investigação finalmente começou a andar, com uma análise caótica do quarto da vítima, teve que ser pausada por uma dispensa do delegado Galeno, que não deixou diligências, nem alguém que pudesse manter o caso aceso nesse período. Assim, o pedido de análise do material colhido se deu cinco meses depois do ocorrido.

E os resultados obtidos foram pouco significativos, frustrando a família. E mesmo sem grandes respostas, Galeno tinha duas certezas: ou foi suicídio ou foi o Tairone.

Foquemos um pouco na tese de suicídio:

A vítima estava amarrada com fita e tecido, ou seja, duas camadas de pressão; a boca fora amordaçada; a corda não estava a uma altura que permitisse uma morte rápida, fazendo com que Maiara tivesse um mínimo de paciência para morrer; além da posição ser desconfortável pelas raízes de mangue, que inclusive deixaram marcas nas coxas dela. Numa primeira vista, beira ao ridículo chamar de suicídio, principalmente pela falta de precedentes quanto à técnica complexa aplicada à morte. Mas como não somos especialistas, chamamos um médico legista do IML de outra cidade de Santa Catarina, para garantir que não tenha quaisquer relações com o caso. Ele preferiu não se identificar na reportagem, teme retaliação da corporação.

Ao analisar o inquérito, ele foi categórico: dada as circunstâncias da morte e o grau de complexidade com o qual Maiara foi amarrada e enforcada, a possibilidade de um suicídio é irreal, sem dúvidas. Ele acredita que o laudo do IML está insuficiente, pois não aponta se o caso pende mais para suicídio ou homicídio, podendo ter se abstido de comentários justamente para não entrar em conflito com alguma tese pregressa do delegado. O legista lembrou também que, se Galeno realmente quisesse cortar essa possibilidade da lista, teria solicitado uma reconstituição da cena do crime, a qual mostraria a não plausibilidade de um suicídio naquelas condições.

Até o momento tal diligência não foi dada.

Maiara Felisbino dos Anjos morta na praia. Imagem: Inquérito Policial

Agora, vamos olhar um pouco a ideia de que possa ter sido Tairone:

O raciocínio policial de que “se há um namorado da vítima, ele é imediatamente o principal suspeito” não é completamente sem fundamento em um país agravado pela violência doméstica. Agiliza muita coisa colocar a culpa no amor da vida de uma pessoa morta. Inclusive, o fechamento de certos inquéritos.

A estatística de 4,4 assassinatos a cada 100 mil mulheres fortalece a premissa. Mas nem toda resposta que o inquérito dá é sinônimo de verdade.

Há alguma razão para os policiais quererem Tairone dos Santos atrás das grades. Sua ingenuidade o colocou de maneira muito vulnerável diante de uma polícia desesperada em encerrar aquela história. Nisso, a pressa em depor, sem advogado, pra resolver isso tudo de uma vez, não é lida como honestidade, mas culpa. Uma culpa que se implica não pela relação lógica dos fatos e sujeitos, mas pela mera presença diante do assunto. E pela mentira diante da possibilidade de ser preso — por algo que afirma não ter cometido.

Fechar a investigação no entorno do antigo parceiro coincide tanto com as estatísticas brasileiras de feminicídio íntimo quanto a uma narrativa comum. A narrativa batida da passionalidade, da possessividade, do eu-amava-demais-para-lidar-com-a-falta. Esse destino poderia ter sido o de Maiara se ela não tivesse conseguido escapar de Luiz Eduardo Domingues. Porém, pressupor essa conduta por conta de um namoradinho de três rolês sem relação com a cena do crime pode ser visto de três maneiras, uma pior que a outra:

A primeira é um vício profissional por parte da polícia, o que pode conotar dificuldades de recursos em investigação, sim, mas também falta de preparo;

A segunda é preguiça — o destino de uma menina pobre permanecer sem resposta por dois anos é um completo descaso com a existência do outro;

E a terceira é ignorância, a pior das bênçãos a se ter numa profissão que precisa olhar fundo nos olhos da maldade.

Pior ainda: Tairone tem um álibi. Depois do encontro com Maiara, passou o resto da noite junto da namorada, Andreia. E não há nada que o coloque na cena do crime. A Polícia queria mudar isso, com um DNA conseguido de uma maneira secreta, pra bater com o espermograma, como subentendeu Galeno para Márcia. E assim, provar que o sêmen no corpo da vítima, aquele encontrado sem sinais de violência, era de Tairone.

Em caso positivo, a única coisa que isso conseguiria provar é que foi ele quem fez sexo consensual com ela. Em caso negativo, bem, o espermatozoide sobrevive até 72h dentro do corpo feminino. Ambos os cenários não são tipificados como crimes no Brasil.

Também não é enxergado como problemática a consequência de apontar Tairone como o assassino de Maiara. Isso está bem longe da verdade. O assunto até hoje é sinônimo de estresse para ele. A mãe, desgostosa, prefere não tocar no assunto, nem acreditar que seu filho é um criminoso vagabundo — e pra não mudar de ideia, optou por não vê-lo mais. A vizinhança comenta, maldosa, pelas costas. E por muito tempo, a família da vítima o pressionou à loucura. Os chefes de Tairone enxergam qualquer chamado externo no trabalho com olhos tortos, como se esperassem que um dia ele encerrasse seu expediente mais cedo num camburão.

Tairone também tem medo que seu expediente encerre assim.

Mas então, como morreu Maiara? Bem, por mais que tudo aponte para um homicídio, há um fundinho de verdade na ideia de que ela tinha um comportamento suicida. Só é possível atestar esse fato, entretanto, com uma investigação de verdade e uma autópsia psicológica, que consiste numa análise da mentalidade do falecido em seus últimos dias com base no cruzamento de relatos e evidências levantadas pela polícia. Essa técnica costuma ser aplicada por profissionais da psicologia jurídica ou forense. Nem todos são adeptos disso, pois a polícia brasileira nutre, em muitos casos, uma certa desconfiança do campo da psicologia. Assim, não é de surpreender que essa ideia não tenha passado pela cabeça dos investigadores da morte de Maiara.

Fazendo o que podíamos, então, solicitamos uma autópsia psicológica com Eliamar Machado, especializada em psicologia jurídica. Responsável pelos psicodiagnósticos dos presos da Penitenciária de Florianópolis, a especialista ajudou a reportagem a observar os últimos dias de Maiara em contraste às condutas recorrentes de sua vida entre 2013 e 2016.

Ela analisa que a vítima se punha em situações de risco intencionalmente, ao abusar de substâncias e cortar relações afetivas bruscamente. “Se você for ver, isso em si é também um comportamento suicida. Tudo isso é uma forma de se matar um pouco,” afirma a psicóloga. Em outras palavras, ela já vinha se matando um pouquinho a cada dia, numa forma de parassuicídio.

Um dos catalisadores desse comportamento, em sua análise, foi a série de visões do ex-namorado morto. Esse seria talvez o maior sinal de que Maiara não passava bem, delirando pelas ruas, e apresentando condutas cada vez mais agressivas, no que Eliamar chama de surtos psicóticos.

E para ela, quando se casa os traumas da juventude de Maiara com o medo do fantasma que não existia e as sequelas de anos de abuso de drogas, tem-se uma bomba relógio, uma pessoa necessitada de ajuda profissional. Eliamar nota também que ao observar que o corpo não apresentou características de violência pré-morte, pode-se pressupor algum nível de cooperação da vítima, que estaria, muito provavelmente, em transe, no meio de um surto.

“Quem fez isso teve todo um planejamento de envolvimento com a vítima, é conhecido dela e frequentava a casa. E nesse dia, a vítima estava passando por uma fase em que favoreceu o crime, dentro de um surto psicótico. A Maiara não foi levada à força; mas a pessoa que a levou ali [na praia] tinha intenção de matar. Teve um planejamento ali: escolha de momento, situação, o que ia ser feito. Até porque foi levado um pedaço da cortina, um objeto pessoal para cometer o crime. Ela não estava com a roupa descida, estava devidamente vestida. Tudo o que houve de sexual foi antes, no apartamento dela. Isso é um indicativo de que veio de lá. Ela estava vestida de legging; calçada com um sapato, que não parece arrastado na areia nem nada. Muito provavelmente, não foi levada à força em nenhum momento. Acredito que pela pessoa conhecer a vítima, houve um jogo, um jogo de sedução. Porque a pessoa não amarrou as pernas dela depois que puxou a corda. A altura da coxa está presa, ela não ia conseguir fazer isso sozinha. Ela participou disso, pois quem fez isso com ela tratou tudo como um jogo, se aproveitando da fragilidade dela.”

E há um fato ainda não desvelado que casa com essa teoria de Eliamar: Maiara estava saindo com um segundo homem. Trata-se de um rapaz* que divide uma dupla jornada entre trampos que remuneram mal, como lava-carros e mecânicas, e traficar drogas no bairro, mais especificamente em nome do chefe do região, Dico. O jovem em questão é casado e tem dois filhos. Sua esposa não lidou bem com as constantes saídas do marido para “conversar” com Maiara e mantinha os olhos tão abertos quanto a mão que desfere o tapa.

Diferentes testemunhas da vizinhança o viam namorando Maiara em becos do bairro, e o próprio mapeamento dos movimentos dela pelo Facebook mostra que frequentou a casa dele e os becos a frente. Foi um relacionamento conturbado, pois, assim como Luiz Eduardo Domingues, ele não gostava de vê-la papeando com outros homens. Numa conversa com um jovem chamado Gean, um dos amigos desse rapaz, descobrimos que a maioria dos jovens do bairro deixou de conversar com Maiara por medo de retaliação. Assim, o isolamento dela foi recrudescendo para além de suas brigas com amigas e familiares.

O rapaz parou de responder a reportagem depois de algumas entrevistas. A última vez que tivemos algum tipo de contato com ele foi por intermédio de um de seus melhores amigos, o qual nos recebeu com muita agressividade e disse: “Não sou dedo-duro, não vou dizer quem matou, não vou dizer quem foi. Melhor vocês irem embora daqui.”

Da esquerda para direita: Gabriel D. Lourenço, Géssica dos Anjos, Matheus de Moura. Imagem: Eduarda Hillebrandt

Maiara não era conhecida quando viva e, depois que se foi, não passou a ser mais amada. Porque as pessoas que só a reconheciam de vista, cruzando a esquina rumo à padaria, ou da foto mórbida que circulava no Whatsapp da vizinhança, com certeza estavam muito por dentro de quem ela era.

De um passante anônimo nas ruas da Ponta de Baixo, ouvimos que a jovem morreu daquele jeito porque era metida com um policial ciumento, violento, que era fechado com o resto da corporação. Um condômino do mesmo bairro, filho de policial civil — e portanto completamente confiável — alegou que outro cara, o namorado dela, o assassino, foi executado na Ponte do Imaruim, em Palhoça (SC), e despejado noutro lugar. De outros tantos prestativos em ajudar veio a ideia de que ela era perseguida — fosse por um ex-namorado ciumento, criminoso e violento, fosse por um gol vermelho que a catava no meio da rua. De outros enfáticos colaboradores, ficamos sabendo que Maiara foi estuprada na praia e foi encontrada sem as calças. Ou que seu corpo foi trazido da Ponte do Imaruim até a Prainha.

De um punhado de meninas da Fazenda Max, ouvimos que a morte foi assim, amordaçada e enforcada, porque isso era uma mensagem de mulher do tráfico pra todo mundo saber o que acontece com talarica que se mete com homem casado.

Foi o que ouvimos neste um ano e meio de investigação e que nunca se confirmou de maneira alguma. É fácil falar mal de gente morta. Difícil é ir atrás da verdade.

E se a vizinhança não poupava esforços em difamar quem não conseguia desmentir o boatos, a família se dividia em dois grandes grupos: aqueles que a pintam como um anjo e aqueles que culpam Deus por sua queda. Aos familiares mais antigos, é confortável a crença de que Maiara jamais usou maconha, de que era uma menina religiosa, nos conformes das duas gerações anteriores, que não teve falta alguma na infância — e que não entendem como uma fatalidade dessas pode acontecer. Já os familiares da mesma geração de Maiara não enxergam assim. Vêem amor esforçado, mas também falhas, e um certo rancor de matriarcas que crucificavam a jovem pelos seus vícios. Quem sempre viu com horror os pilares das gárgulas aos seus pés jamais entenderia que aquilo era a única coisa que poderia ser erguida em sua ausência. E era aquilo que a sustentava.

Restam assim, sequelas numa família que mesmo morando perto nunca foi próxima. Ilcilei se aprofunda em depressão a cada dia que passa, dizem que sua instabilidade segue a da filha. Márcia se mantém morando nos Estados Unidos, para sempre cicatrizada com as falhas do sistema policial brasileiro. Géssica é tão sensível à história que provavelmente não terá lido até este último parágrafo. As tias choram sem muita certeza de quem perderam, agarrando-se na memória de uma Maiara da infância. E todos continuam sem saber se a gravidez era verdadeira ou só mais um surto de uma garota que de tanto temer fantasmas acabou virando um.

*Sem provas de que ele cometeu o crime, optamos por não identificá-lo, ainda que seja pertinente levantar essa possibilidade

Autores: Gabriel D. Lourenço & Matheus de Moura

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Matheus de Moura
Não Há Respostas Quando Morre Uma Pobre

Jornalista. Escritor. Neguinho. Catarinense no Rio. Co-criador de: N.E.U.R.A Magazine e Não Há Respostas Quando Morre uma Pobre