Carta de Casa.

Renan Oliveira
Não sei crescer
Published in
3 min readApr 21, 2020

Pensamentos de um quarentenado.

Me incomoda perceber que do dia para a noite o mundo mudou a ponto de interferir completamente não só a minha vida, mas na de bilhões de pessoas. E me incomoda mais ainda perceber que em questão de um mês esse novo mundo com todas as suas regras e exigências já me soa como um “novo normal” e que todas as lembranças que tenho de como eram as coisas dois meses atrás me parecem de uma vida distante, memórias de um outro mundo.

Readaptar a rotina de maneira criativa e saudável é um trabalho ardiloso e eu não tenho me saído muito bem nele. Meus horários chegaram ao ponto de estarem completamente trocados e agora começo a sentir o mal estar da inércia, como se estivesse passando tempo de mais parado numa mesma posição ou dormindo. Não tem tarefa de casa ou programação online que preencha esse tempo imenso de ócio. Aliás, comecei a escrever aqui com o objetivo de me ocupar pelo menos um pouco com uma atividade diferente. Ficar em casa nunca foi tão chato e acho que depois disso nunca mais vou recusar um convite para sair. Passar tanto tempo trancafiado me fez perceber como algumas coisas banais me fazem falta e o quanto eu gosto delas, como de ver as estações e as linhas de trem da CPTM ou de ver a luz do sol atravessando a copa das árvores no fim da tarde.

Sinto uma angustia em pensar que as coisas não vão voltar “ao normal”, e que esse janeiro que passou é de um mundo totalmente diferente do próximo janeiro. Não entender completamente sobre quais condições será a vida nesse “novo mundo” me soa como entrar numa sala escura em que os móveis foram trocados de lugar sem ninguém ter me avisado. O que sempre soou como óbvio e natural de repente assume uma nova forma, e eu ainda não consigo distinguir se ela é ameaçadora ou se é apenas coisa da minha cabeça. É abrir os olhos na penumbra e não saber se o contorno próximo à porta é uma pessoa ou só o cabideiro com uma blusa e um boné.

Mas embora esteja entediado dentro de casa, sair e ter contato com o mundo exterior quando necessário também não traz a melhor das sensações. Ver as ruas desertas e com os poucos transeuntes usando máscara é, na minha concepção, a prova mais verosímil de que a vida já não é mais a mesma. Um clima hostil paira por todas as ruas onde caminho e consigo sentir isso se impregnando na minha pele. Em outras palavras, caminhar na rua deixou de ser um exercício comum e tornou-se algo desagradável. E aqui entra o conflito: se ficar tanto tempo dentro de casa é angustiante e sair também é, quando é que vamos poder nos sentir minimamente bem novamente, ou, pelo menos, indiferentes? Caminhar nas ruas distraído pelos próprios pensamentos rotineiros me parece algo improvável nos próximos meses.

É tão estranho sentir falta de coisas banais. Coisas das quais nunca prestamos atenção. Sei que essas coisas provavelmente nunca mais serão as mesmas, mas espero que existam novas coisas banais em breve nesse novo mundo, e que dessa vez, prestemos atenção nelas e as aproveitemos, antes que de maneira imprevisível elas sejam tiradas de nós novamente.

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