Diário de um dia ruim

Renan Oliveira
Não sei crescer
Published in
3 min readApr 16, 2020

quando a mente se entorpe e o coração desaparece, só me restam as palavras.

O tic-tac do relógio na parede e o som da geladeira preenchem o minúsculo comodo em que cozinha e sala são divididos na casa da minha tia. Fazem 31 dias que estou de quarentena. Sempre fui de ficar em casa mas percebo agora que sinto muita falta de como é a vida lá fora. Nas últimas semanas os dias tem se arrastado e tenho tentado sobreviver a eles me distraindo com passatempos frívolos. Alguns conseguem aproveitar esse tempo para tocar projetos, outros (e eu me encontro na categoria “outros”) sentem-se entorpecidos, como se em uma espécie de coma, só pedindo internamente para tudo isso acabar logo. O que mais me assusta é que a capacidade de adaptação do ser humano é realmente incrível: ficar trancafiado em casa já me parece o novo normal, e as lembranças que eu tenho de como eram as coisas antes disso me soam como um passado muito distante, algo de uma vida que nunca foi a minha, elas chegam a beirar a ficção. Depois de tudo que passei, sou grato por ter onde morar, mas me sinto pouco inspirado no dia a dia. Hoje, para escrever isso, eu abraço meu lado mais melancólico.

Algo ruim aconteceu, e eu não vou entrar em detalhes do que foi, mas vou ser sincero e dizer que não estou sabendo lidar muito bem. Não lembro qual e nem quando foi minha última refeição e meu dia se resumiu a ficar deitado na cama, ocasionalmente deixando algumas lágrimas escaparem mas sem fazer muito barulho para não preocupar minha tia e minha prima. Tem uma sensação que até hoje eu não sei se existe palavra específica para ela, mas é um sentimento que beira o arrependimento e a frustração pela incapacidade. Acredito que seja algo que todo mundo deva sentir quando coisas ruins acontecem. Um sentimento de “se eu tivesse feito isso diferente” misturado com “eu sei que não sou capaz de mudar nada agora”. Acho que isso me perseguiu o dia todo e, se eu parar para observar, tem me perseguido quase a vida inteira, até mesmo pelos erros que eu não cometi, mas que me afetam. A frustração pela responsabilidade e arrependimento dos erros dos outros é muito ambígua: eu não deveria carregar essa culpa, e ainda assim, sou responsável por tudo isso.

Nesses momentos eu consigo ver tudo que me faz mal e tudo que não gosto em mim. Sinto uma enorme vontade de mudar, e acho que esses são meus últimos suspiros de amor próprio. Depois de toda a euforia, eu volto ao mesmo corpo cansado e fraco. E continuo sem saber se lutei de mais e está na hora de jogar a luva, ou se ainda não lutei suficiente.

Eu tenho essa visão de que as vezes assisto minha vida acontecer fora de mim. É como se eu estivesse numa festa em que não conheço ninguém, e todo mundo conversa entre si e dá risada das piadas particulares, e eles parecem felizes e eu fico imaginando a quanto tempo são amigos e como eles devem gostar uns dos outros. E em meio a tanta alegria, me vejo deslocado e sozinho. E eu não deveria sentir tanta auto piedade, mas me entristece ver esse eu, no canto da sala, pensando em como as coisas poderiam ter sido, em como ele gostaria de ter aquele tipo de relação com as pessoas, com a própria família. Eu não deveria sentir tanta auto piedade, mas me entristece ver o quão sozinho eu me sinto. Eu sempre observei as fortes raízes nas relações dos outros justamente por perceber, desde cedo, que essas raízes não existem nas minhas. Todas as estações da vida me soam cada vez mais temporárias.

Sei que o texto é confuso, na verdade eu não quero ser específico de mais com os fatos, mas queria externalizar as coisas que sinto. Com sorte, em alguns meses vou ler isso e mal vou lembrar o que aconteceu. E com sorte, em alguns meses, as coisas estarão melhores. Não só pra mim, mas para você também.

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