Uma conversa e os devaneios no café.

Renan Oliveira
Não sei crescer
Published in
5 min readApr 17, 2020

Entre um gole e outro, eu pegava o canudo com a ponta dos dedos e remexia o gelo no fundo do copo enquanto a limonada ficava cada vez mais aguada. Cafés em shoppings não são os melhores ambientes e nem os melhores cafés, mas para quem tem uma vida corrida por conta da rotina as vezes eles são uma boa opção pela facilidade de serem encontrados. Aliás, eu prezo muito pelo ambiente do lugar, é o que eu mais gosto nos cafés. As vezes penso que meu plano de aposentadoria é ter um cafezinho tranquilo, com luzes alaranjadas, balcões de madeira e jazz tocando baixinho no fundo. Não desejaria nada muito badalado, mas sim aconchegante. Igual cozinha de vó no fim da tarde.

— Só queria entender — eu resmungava olhando fixamente para o gelo no copo — como foi que eu cheguei nesse ponto. As vezes parece que esse poço nunca tem fim. Quando parece que as coisas vão melhorar, elas pioram de novo. Desculpa, desculpa, eu sei que é chato me ouvir pela milionésima vez lamentar sobre como as coisas estão fodidas, mas nossa, eu juro que nunca imaginei que passaria por isso.

Ele levantou os olhos do monitor e me encarou por um breve instante. Não disse nada, mas sua expressão insinuava algo do tipo “pode continuar, sou todo ouvidos”. Era atencioso e paciente até de mais e a ponto de me irritar de vez em quando. Por várias vezes eu sentia um enorme ímpeto de gritar e explodir com ele, só para ele gritar e explodir de volta comigo e eu me sentir um pouco menos mal. Mas a verdade é que nisso ele era muito melhor que eu. E essa era com certeza uma das coisas que eu mais admirava nele. Eu cresci numa família bem explosiva e só me dei conta do que era silêncio depois que sai de casa. No começo, senti muito medo de ter herdado o temperamento familiar. Depois de um ano e meio de relacionamento eu confessei esse medo pra ele, e ele riu. “Você não tem nada da sua família”. Não sei se eu deveria achar isso algo bom ou ruim, mas a possibilidade de ser diferente me trouxe um enorme alívio.

— Eu odeio ficar me lamentando — dei outro gole na limonada — sinto que isso não ajuda a aliviar minha cabeça e nem a resolver a situação. As vezes queria bater em alguém aleatório na rua só pra ver se um ato tão violento poderia romper esse ciclo, mas não duvido nada que no meu caso um ato violento só seria algo a mais sendo incrementado no ciclo. Bom, definitivamente eu não preciso de uma espiral de violência agora.

— Então seu plano é abrir o clube da luta brasileiro?

Fiquei em silêncio vendo os lábios dele se entortando num meio sorriso enquanto eu pensava na resposta mais boba possível para aquela pergunta.

— Definitivamente não, essa seria a coisa mais masculina e heterossexual que poderia acontecer e eu definitivamente não tenho nenhum interesse nisso. Obrigado por fazer meu desejo por murros e sangue evaporar. Posso terminar de comer esse bolo? — perguntei apontando para o prato com meio pedaço de bolo do lado do computador dele

— Claro — ele respondeu e me entregou o prato.

Eu realmente não consigo entender qual é a do bolo red velvet. A massa não tem nada de especial, nem gosto de morango ou de frutas vermelhas. É literalmente só corante vermelho e um creme de baunilha ou sei-lá-o-que. Não que seja ruim, mas não é absolutamente nada de mais e tem o mesmo gosto que qualquer outro bolo por ai. Pensando agora, até acho que existe gente nesse mundo que é igual a esse bolo. Credo.

— Mas então, você acha que está preso num ciclo? — ele me perguntou retomando a conversa.

— Eu acho que estamos todos em ciclos, alguns mais óbvios que outros — respondi mastigando o último pedaço do bolo medíocre — alguns maiores, outros menores. E eu acho que o meu ciclo é grande, familiar e facilmente perceptível, mas também gosto de me manter otimista e pensar que eu vou poder quebrar ele em algum momento. Só preciso de tempo.

— E como exatamente você vai quebrar o ciclo?

— Simples — respondi enquanto dava o último gole na limonada, deixando o copo de plástico apenas com os restinhos de gelo — sendo diferente. Bom, é simples, mas não quer dizer que seja fácil. Tipo, se você quer ser um médico, basta estudar, certo? Novamente, a resposta é simples, mas não quer dizer que seja fácil. — E então eu me encontrava com algumas lembranças. Uma ligação de telefone com palavras tão duras que me fizeram chorar, mas só eu me lembro. Um corpo se chocando contra a parede por causa de uma chave perdida. Uma parede com massa corrida onde a porta foi arrombada. Um tapa na cara de uma criança. O tapa que eu dei na cara de uma criança. Na minha mente, nenhuma dessas lembranças reproduzia nenhum som — Eu sei que isso é aleatório, mas sabia que eu acho os dias de outono muito tristes, e sempre que lembro da antiga casa em que passei a infância, eu lembro dos dias de outono? Acho eles tristes porque no outono o sol brilha, mas não esquenta. Eu lembro de sentar na frente da calçada da Dona Cida, nossa vizinha, vestindo blusa e cachecol esperando que o sol esquentasse minha pele, mas nessa época do ano isso nunca acontecia. E eu achava isso muito, muito triste. As vezes sinto que independente do mês e da estação, eu estou no outono.

— Olha— ele fez uma pausa, colocou a mão no queixo e prosseguiu — eu não sei se acredito na história do ciclo, mas eu acredito em você e acredito no que você acha importante, e se isso é importante, então eu também acredito que você vai quebrar esse ciclo. E sabe, o outono é uma estação muito bonita para se viver se você souber para onde olhar, e você tem capacidade de entender isso muito melhor do que eu, ahn — o despertador do celular dele tocou, anunciando que o intervalo havia acabado— desculpa, preciso voltar. Te vejo de noite, ok?

Nos despedimos. Eu odiava me despedir. A cadeira dele ficou vazia e a pequena mesa abriu um buraco onde antes estava o notebook dele. Copos e pratos amontados na minha metade junto a um pequeno cardápio de smoothies. Uma mesa meio cheia, ou uma mesa meio vazia? Acho que as vezes eu me sentia igual aquela mesa. Será que é assim um término? Tudo é uma bagunça conjunta, e depois vira meia bagunça sozinha?

No caminho de volta, o sol brilhava. Mas não esquentava.

--

--