Crônica de um fascismo anunciado

Bentzi Laor

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7 min readMar 3, 2023

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Presenciando nestas semanas a ascensão do fascismo em Israel por meios democráticos e não-violentos, mesmo sem saber como os acontecimentos se desenrolarão, já é possível fazer uma análise crítica desse drama, independentemente do desfecho.

Para descrever o contexto histórico a fim situar a presente situação, é importante lembrar que Israel, como abrigo político e nacional para judeus que eram perseguidos e discriminados como minoria em muitos países europeus, situava-se numa região já habitada por palestinos, com suas próprias ambições nacionais. Não por acaso se tornou um caso extremo de conflitos intermináveis durante os últimos 150 anos. A divisão da terra entre os dois povos, contemplada em 1947 pelas potências mundiais, nunca se tornou concreta e estável.

A primeira fase, marcada pela vitória militar em 1948, resultou em práticas inaceitáveis em países democráticos. A minoria palestina que não foi expulsa nem fugiu durante a guerra, foi obrigada a viver sob regime militar até 1966, numa combinação surrealista em que recebia cidadania, direito a voto, seguro social e médico e direitos trabalhistas, mas cuja mobilidade era restrita, incluindo um toque de recolher todos as noites, e submetida a uma jurisdição militar. Em outras palavras, cidadãos de segunda categoria dentro do próprio país.

Em 1967, com a conquista da Cisjordânia (que nunca foi anexada oficialmente ao Estado), começou a segunda fase, caracterizada por práticas colonialistas, onde a população palestina passou a viver sob um regime militar de ocupação, e colonos judeus começaram a se estabelecer nos territórios conquistados, ocupando ilegalmente terras, com o apoio total do governo. Com os anos, se desenvolveu um regime colonialista de apartheid que tornou a vida dos palestinos precária e desprovida de direitos políticos (nas zonas B e C), civis (zona C), com direitos humanos oscilantes segundo a arbitrariedade do regime militar, e sob o sistema judiciário militar de ocupação.

O surpreendente desta anomalia fascista se nota no fato de que a população laica/liberal/progressista judia de Israel viveu (e vive) durante todos esses anos praticamente alienada do que se passava com os palestinos, como se estivesse tratando de algo que ocorre a dez mil quilômetros de distância.

Durante esses anos, a esquizofrenia israelense consistiu na sensação de que o país goza de um regime democrático liberal, com um poder jurídico impecável e invejável (sim, o Supremo Tribunal sempre foi corajoso em proteção aos direitos civis), mas que fez de tudo para ignorar o que estava acontecendo nos territórios conquistados, a poucos quilômetros de casa (ali o Supremo Tribunal sempre foi covarde, afirmando que competia à lei militar decidir o que é permitido num território conquistado militarmente, evitando intervir, mesmo sabendo que se tratava de uma violação do direito internacional).

Tal situação é uma repetição anacrônica das práticas colonialistas das grandes potências nos séculos passados, quando parlamentos democráticos liberais nas metrópoles coexistiam com escravidão e usurpação de terras nas colônias.

No caso de Israel, a proximidade geográfica (com os territórios ocupados grudados nas fronteiras originais do país) faz com que o absurdo se torne mais intolerável. Um colonialismo na sua pior forma, incluindo apartheid, convive com uma democracia supostamente avançada e protegida. Os colonos que ocuparam terras na Cisjordânia e aí vivem, gozam de uma autonomia absoluta, com instituições completamente fora de qualquer controle ou critério. As escolas, sinagogas e meios de comunicação que lá funcionam, frequentadas e utilizadas pelos colonos, pregam discursos nacionalistas fanáticos, que em qualquer país democrático seriam fechados e levados a julgamento. Como parte da esquizofrenia, os colonos gozaram sempre de uma autonomia absoluta que funcionou como incubadora de crescimento de gerações fascistas fanáticas, que atuam sem lei e sem governo.

Em paralelo, sempre existiu uma outra incubadora, a dos judeus ortodoxos, que desde a criação de Israel receberam sua própria autonomia, cujo objetivo inicial era preservar de forma emergencial as coletividades quase exterminadas no Holocausto, mas que no decorrer dos anos, se tornaram uma forca política nacionalista, parasita, subsidiada pelo governo, e imersa num modo de vida anacrônico, que possibilita a discriminação de gênero, um currículo precário nas escolas baseado em textos religiosos, e um incentivo para homens não trabalharem e se dedicarem quase que só a estudos e práticas religiosas.

Em resumo, duas populações religiosas distintas se reterritorializaram, uma como população colonialista que deseja reviver uma grandeza bíblica imaginária, e a outra como uma coletividade que retorna ao modo de vida de reclusão de gueto, como na diáspora. Ambas são as bases do fascismo judeu em Israel.

As coisas saíram de controle nesse momento em que o primeiro ministro se encontra no banco dos réus por suborno e corrupção, e as máquinas de guerra colonialista e ortodoxa criam com ele uma aliança tática que traz ao poder uma hegemonia fascista “de facto”, adotando o modelo das possíveis alianças pragmáticas de esquerda contempladas por Laclau e Mouffe.

Ao contrário do que pensou Benedetto Croce, o fascismo não é um “parênteses” da história, e não se trata só de uma mácula que contaminou a Europa como consequência da primeira guerra mundial e da longa crise que veio como consequência.

Zeev Sternhell afirma que o fascismo se opõe à tradição humanista e universalista, que é a base da democracia liberal, e que suas ideias amadureceram durante o século XIX, bem antes de sua ascensão ao poder nos anos 20 do século passado. Em oposição a direitos universais e individuais, diz Sternhell, o fascismo pretende ver no indivíduo um sujeito entregue à coletividade nacional, e, portanto, nega a existência de normas morais de caráter universal. Justiça, verdade e lei só são válidas se favorecem a coletividade da nação. Tal percepção de sociedade fechada favorece um discurso irracional onde o coletivo se vê como tribo. Mitos étnicos, assim como o apego à terra e às raízes (imaginárias), florescem de forma primitiva, que se declara como autêntica. Cultura e vida intelectual se tornam um obstáculo hostil, pois pregam uma modernização universalista.

Assim, a missão do fascismo é garantir a unidade da nação, sua homogeneidade, sua força, e seu combate incessante contra tudo que destoe de tal totalitarismo. Religião, tradição e memórias de um passado grandioso e imaginário serão sempre os ingredientes básicos de toda e qualquer formação política fascista.

Pode-se afirmar, então, que as ideias e as práticas fascistas sempre estiveram presentes, em algum grau, mesmo em regimes democráticos e liberais. E se nas últimas décadas há uma tendência à globalização, ela se deve mais à nova etapa do capitalismo, que mais e mais precisa saciar sua fome, do que a uma expansão do humanismo solidário que busca justiça e igualdade.

A ortodoxia retrógrada judia e o colonialismo agressivo que prega a volta ao passado bíblico glorioso (e imaginário) se enquadram perfeitamente nas caracterizações de Sternhell referentes ao fascismo. A ideia do “povo escolhido”, alimentada de forma metafórica durante séculos, e orientada à exclusão do não-judeu (goi) de qualquer contexto social, se torna um plano de ação concreto a nível nacional e político. Os germes desse fascismo judeu em Israel foram cultivados pelo próprio sistema autodeclarado democrático e liberal. E agora, quando o fascismo, que estava confinado aos guetos ortodoxos e aos territórios ocupados, está conquistando definitivamente as instituições políticas do país, a população laica/democrática/progressista, que se alienou e indiretamente contribuiu para o culto dos germes fascistas, se surpreende e quer resistir.

Mas que resistência é essa, se não o desejo dessa oposição de conservar o status quo? Estas manifestações massivas que levam às ruas centenas de milhares de cidadãos algumas vezes por semana, armadas de um ativismo incomum, apesar das convicções democráticas e liberais, não ousa identificar e criticar as verdadeiras raízes dos males dessa sociedade. O protesto das manifestações se orienta (com razão) à defesa do sistema judiciário, como reação à nova legislação de politização desse sistema, empurrada pela coalizão fascista (que busca uma legitimação jurídica para suas atividades não democráticas), unida ao primeiro ministro (que, à beira de ser condenado à prisão, busca uma salvação judicial). Mas defender o Supremo Tribunal e as demais instâncias jurídicas não é suficiente. Não só as incubadoras se preservariam e se converteriam em máquinas de guerra ainda mais poderosas, como também os palestinos continuariam a ser marginalizados e oprimidos.

Um dos fenômenos mais impactantes desta onda de manifestações é a absoluta ausência de palestinos residentes em Israel (20% da população). Os judeus laicos progressistas simplesmente não querem que as manifestações se contaminem com um conteúdo que lembre a questão palestina, o que reflete de forma clara a esquizofrenia dos chamados democratas.

Um país que controla e oprime uma população conquistada despojada de direitos não é um país livre. A ascensão do fascismo nada mais é que o golpe final de um processo que sempre esteve presente, debaixo dos narizes de todos, inclusive do Supremo Tribunal de Israel, que agora luta sua última batalha, depois de ter colaborado na criação do próprio Golem.

Israel se incorpora de maneira quase voluntária ao fascismo tal e qual definiu Sternhell. As forças reacionárias nasceram e cresceram dentro do próprio sistema, que continuamente optou pela sua conservação oportunista e medrosa. Muitas opções surgiram em inúmeras oportunidades durante os anos de existência de Israel, mas sempre, em cada encruzilhada, se escolheu o caminho equivocado.

Israel na sua história teve dois períodos na antiguidade nas quais foi independente e soberano, ambas de pouca duração (aproximadamente 70 anos cada), denominados o Primeiro Templo e o Segundo Templo. Ambos sofreram de um gradual enfraquecimento por divergências internas, o que debilitou a viabilidade da autonomia do país, até sua extinção. O presente cenário não parece muito diferente.

Bentzi Laor vive em Israel. Divide seu tempo entre o trabalho no setor de high-tech, atividades em ONGs dedicadas à situação dos palestinos em Israel e nos territórios ocupados, e participação em grupos de estudo de filosofia. É graduado em Engenharia e Filosofia, com pós-graduação em administração de empresas.

Projeto Da Guerra

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Livros-objeto entre a filosofia, a estética, a clínica, a antropologia e a política.