Jardim das Delícias, tríptico de Hieronymus Bosch, do século XVI

Gaia e Ctônia

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10 min readFeb 7, 2022

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Em que ponto estamos? a epidemia como política

I

Em grego clássico, a terra tem dois nomes, que correspondem a duas realidades distintas, se não opostas: ge (ou gaia) e chthon. Contrariamente a uma teoria hoje bastante difundida, os homens não habitam apenas gaia, mas têm sobretudo a ver com chthon, que em algumas narrativas míticas assume a forma de uma deusa, cujo nome é Chthoníe, Ctônia. Assim, a teologia de Ferécides de Siro lista inicialmente três divindades: Zeus, Chronos e Chtoníe e acrescenta que “a Chtoníe coube o nome de Ge, depois que Zeus lhe deu de presente a terra (gen)”. Mesmo que a identidade da deusa permaneça indefinida, Ge é, aqui, em relação a ela, uma figura acessória, quase como um nome posterior de Chtonía. Não menos significativo é o fato de que em Homero os homens sejam definidos com o adjetivo epichtonioi (ctônios, que estão sobre chthon), enquanto o adjetivo epigaios ou epigeios se refere apenas às plantas e aos animais.

O fato é que chthon e ge denominam dois aspectos da terra por assim dizer geologicamente antitéticos: chthon é a face externa do mundo ínfero, a terra da superfície para baixo, ge é a terra da superfície para cima, a face que a terra volta para o céu. A essa diversidade estratigráfica corresponde a diversidade das práticas e das funções: chthon não é cultivável nem ninguém pode se nutrir dele, escapa à oposição cidade/campo e não é um bem que possa ser possuído; ge, ao contrário, como recorda enfaticamente o hino homérico epônimo, “nutre tudo o que está sobre chthon” (epi chthoni) e produz as colheitas e os bens que enriquecem os homens: para aqueles que ge honra com a sua benevolência, “os sulcos da gleba que dão vida são carregados de frutos, nos campos o gado prospera e a casa se enche de riquezas e eles governam com leis justas as cidades com belas mulheres” (v. 9–11).

A teogonia de Ferécides contém o mais antigo testemunho da relação entre Ge e Chthon, entre Gaia e Ctônia. Um fragmento conservado por Clemente de Alexandria define a natureza da ligação entre elas precisando que Zeus se une em núpcias com Chtho- níe, e quando, segundo o rito nupcial dos anakalypteria, a noiva tira o véu e aparece nua para o noivo, Zeus a recobre com “um manto grande e belo”, em que “bordou com várias cores Ge e Ogeno (Oceano)”. Chthon, a terra ínfera, é, portanto, algo de abissal, que não pode se mostrar na sua nudez e a vestimenta com que o deus a recobre não é senão Gaia, a terra superior. Uma passagem do Antro das ninfas de Porfírio nos informa que Ferécides caracterizava a dimensão ctônia como profundidade, “falando de recessos (mychous), de fossos (bothrous) e de antros (antra)”, concebidos como as portas (thyras, pylas) que as almas atravessam no nascimento e na morte. A terra é uma realidade dupla: Ctônia é o fundo informe e escondido que Gaia cobre com seu variado bordado de colinas, campos floridos, vilarejos, bosques e rebanhos.

Também na Teogonia de Hesíodo a terra tem duas faces. Gaia, “base firme de todas as coisas”, é a primeira criatura do Chaos, mas o elemento ctônio é evocado imediatamente depois e, como em Ferécides, definido como o termo mychos: “o obscuro Tártaro nas profundezas da terra de amplas vias (mychoi chthnos euryodeies)”. Onde a diferença estratigráfica entre os dois aspectos da terra aparece com maior clareza é no Hino Homérico a Deméter. Já no início, quando o poeta descreve a cena do rapto de Perséfone enquanto colhe flores, Gaia é evocada duas vezes, em ambos os casos como a superfície florida que a terra volta ao céu: “as rosas, os açafrões, as belas violetas em um tenro prado e as íris, os jacintos e os narcisos que Gaia faz crescer segundo a vontade de deus […] ao perfume da flor todo o céu no alto e a terra sorriram”. Mas, justo naquele instante, “chthon dos vastos caminhos escancarou-se (chane) na planície de Nísio e dali saiu (orousen) com os seus cavalos imortais o senhor de muitos hóspedes”. O fato de que se trata de um movimento de baixo para a superfície é su- blinhado pelo verbo ornymi, que quer dizer “surgir”, “levantar”, como se do fundo ctônio da terra o deus aflorasse em Gaia, a face da terra que olha para o céu. Mais à frente, quando é a própria Perséfone que narra a Deméter o seu rapto, o movimento se inverte e quem se abre é, ao contrário, Gaia (gaia d’enerthe koresen), para que “o senhor de muito hóspedes” pudesse arrastá-la para baixo da terra com seu carro de ouro (vv. 429–31). É como se a terra tivesse duas portas ou aberturas, uma que se abre das profundezas para Gea e uma que conduz de Gea para o abismo de Ctônia. Na realidade, não se trata de duas portas, mas de um único limiar, que pertence inteiramente a chthon. O verbo com o qual o hino se refere a Gaia não é chaino, escancarar-se, mas choreo, que significa simplesmente “dar lugar”. Gaia não se abre, mas dá lugar ao trânsito de Proserpina; a própria ideia de uma passagem entre o alto e o baixo, de uma profundidade (profundus: altus et fundus) é intimamente ctônia e, como a Sibila lembra a Enéas, a porta de Dis(1) é antes de tudo voltada para o submundo (facilis descensos Averno…). O termo latino que corresponde a chthon não é tellus, que designa uma extensão horizontal, mas húmus, que implica uma direção para baixo (cf. humare, sepultar), e é significativo que dele se tenha tirado o nome para o homem (hominem appellari quiasit humo natus). Que o homem seja “humano”, isto é, terrestre, no mundo clássico não implica uma ligação com Gaia, com a superfície da terra que olha para o céu, mas sobretudo uma íntima conexão com a esfera ctônia da profundidade.

1. Dis, na Divina Comédia de Dante, é a cidade dos mortos (em italiano: La città infuocata di Dite).

Que chthon evoque a ideia de um caminho e de uma passa- gem é evidente no adjetivo que em Homero e em Hesíodo acompanhava constantemente o termo: euryodeia, que somente pode ser traduzido por “de ampla via” se não se esquece que odos implica a ideia do trânsito na direção de uma meta, nesse caso, o mundo dos mortos, uma viagem que todos estão destinados a fazer (é possível que Virgílio escrevendo facilis descensos tenha-se lembrado da fórmula homérica).

Em Roma, uma abertura circular chamada mundus, que segundo a lenda tinha sido escavada por Rômulo no momento da fundação da cidade, colocava em comunicação o mundo dos vivos com o mundo ctônio dos mortos. A abertura, fechada com uma pedra chamada manalis lapis, era aberta três vezes ao ano, e nesses dias, nos quais se dizia que mundus patet, o mundo está aberto e “as coisas ocultas e escondidas da religião das mãos eram trazidas à luz e reveladas”, quase todas as atividades públicas eram suspensas. Em um artigo exemplar, Vendryes mostrou que o significado original do nosso termo “mundo” não é, como sempre se sustentou, uma tradução do grego cosmos, mas deriva precisa- mente do limiar circular que revelava o “mundo” dos mortos. A cidade antiga se funda no “mundo” porque os homens moram na abertura que une a terra celeste e a subterrânea, o mundo dos vi- vos e o dos mortos, o presente e o passado, e é através da relação entre esses dois mundos que se torna possível para eles orientarem suas ações e encontrar inspiração para o futuro.

Não apenas o homem está ligado pelo próprio nome à esfera ctônia, mas também o seu mundo e o próprio horizonte da sua existência beiram os recessos de Ctônia. O homem é, no sentido literal do termo, um ser das profundidades.

II

Uma cultura ctônia por excelência é a etrusca. Quem percorre perplexo as necrópoles espalhadas pelos campos da Tuscia per- cebe imediatamente que os etruscos habitavam Ctônia e não Gaia, não só porque o que deles nos restou foi essencialmente o que tinha a ver com os mortos, mas também e sobretudo porque os lugares que escolheram para suas moradas — chamá-las de cida- des é talvez impróprio –, mesmo que estejam em aparência sobre a superfície de Gaia, são na realidade epichthonioi, são casas nas profundezas verticais de chthon. Daí o gosto pelos antros e recessos escavados na pedra, daí a preferência pelos altos barrancos e desfiladeiros, as paredes íngremes de peperino que se precipitam em direção a um rio ou a um córrego. Aquele que se encontrou de repente em frente à Cava Buia perto de Blera ou nas vias encavadas na rocha em San Giuliano sabe que não se encontra mais na superfície de Gaia, mas certamente ad portam inferi, em uma das passagens que penetram nas ladeiras de Ctônia.

Também podemos exprimir esse caráter inconfundivelmente subterrâneo dos locais etruscos, se comparado com outros lu- gares da Itália, dizendo que o que temos diante dos olhos não é propriamente uma paisagem. A afável e habitual paisagem que se abraça serenamente com o olhar e só encontra limites no horizonte pertence a Gaia; na verticalidade ctônia toda paisagem se desfaz, todo horizonte desaparece e dá lugar ao rosto feroz e ja- mais visto da natureza. E aqui, nas valas rebeldes e nos precipícios, não saberemos o que fazer da paisagem, a região é mais tenaz e in- flexível que qualquer paisagística pietas — às portas de Dis, o deus se tornou tão próximo e resistente que não exige mais religião.

É por essa inabalável devoção ctônica que os etruscos construíram e velaram com diligente cuidado as moradas dos seus mortos, e não, como se poderia pensar, o contrário. Não amavam a morte mais do que a vida, mas a vida era para eles inseparável da profundidade de Ctônia. Podiam habitar os vales de Gaia e cultivar os seus campos somente se não esqueciam jamais a sua verdadeira e vertical morada. Por isso, nas tumbas cavadas na rocha ou nos túmulos não lidamos apenas com os mortos, não imaginamos apenas os corpos deitados nos sarcófagos vazios, mas percebemos ao mesmo tempo os movimentos, os gestos, os desejos dos vivos que os construíram. Que a vida seja tanto mais amável quanto mais ternamente guarda em si a memória de Ctônia, que seja possível edificar uma civilidade sem jamais excluir a esfera dos mor- tos, que haja entre o presente e o passado e entre os viventes e os mortos uma intensa comunidade e uma continuidade ininterrupta — este é o legado que esse povo transmitiu à humanidade.

III􏰃􏰀 􏰂􏰁

Em 1979, James E. Lovelock, químico inglês que tinha colaborado ativamente com os programas da nasa para as explorações espaciais, publicou Gaia: a New Look at Life on Earth. (2) No livro há uma hipótese que um artigo escrito com Lynn Margulis cinco anos antes para a revista Tellus tinha antecipado nestes termos: “o conjunto dos organismos viventes que constituem a biosfera pode agir como uma entidade singular para regular a composição química, o pH superficial e talvez também o clima. Chamamos de hipótese Gaia a concepção da biosfera como um sistema ativo de controle e adaptação, capaz de manter a terra em homeostase”. (3)

2. Edição portuguesa: James Lovelock, Gaia: um novo olhar sobre a vida na Terra. Trad. Maria Georgina Segurado e Pedro Bernardo. Lisboa: Edições 70, 2020.
3. James E. Lovelock and Lynn Margulis, “Atmospheric homeostasis by and for the biosphere: the gaia hypothesis”. In: Tellus xxvi (1974), 1–2.

A escolha do termo Gaia, que foi sugerida a Lovelock por William Golding — escritor que tinha descrito magistralmente a perversa vocação da humanidade no romance Senhor das moscas (4) — não é certamente casual: como o artigo precisa, os autores identificavam os limites da vida na atmosfera e se interessavam “somente em menor medida pelos limites internos constituídos pela inter- face entre as partes internas da terra, não sujeitas à influência dos processos de superfície” (p. 4). Não menos significativo é, todavia, um fato que os autores não parecem — ao menos naquele momento — considerar, ou seja, que a devastação e a contaminação de Gaia alcançaram seu nível máximo justamente quando os habitantes de Gaia decidiram extrair a energia necessária às suas novas e crescentes necessidades das profundezas de Ctônia, na forma daquele resíduo fóssil de milhões de seres viventes que viveram em passado remoto que chamamos de petróleo.

Segundo toda evidência, a identificação dos limites da biosfera com a superfície da terra e com a atmosfera não pode ser mantida: a biosfera não pode existir sem o intercâmbio e “a interface” com a tanatosfera ctônia, Gaia e Ctônia, os vivos e os mortos devem ser pensados conjuntamente.

O que aconteceu na modernidade é que os homens, de fato, esqueceram e recalcaram sua relação com a esfera ctônia, não habitam mais Chthon, mas apenas Gaia. Mas, quanto mais eliminavam da vida a esfera da morte, mais sua existência se tornava invivível; quanto mais perdiam toda familiaridade com as profundezas de Ctônia, reduzida como todo o resto a objeto de exploração, mais a amável superfície de Gaia era progressivamente envenenada e destruída. E o que temos hoje diante dos olhos é a extrema deriva desse recalcamento da morte: para salvar sua vida de uma suposta, confusa ameaça, os homens renunciam a tudo aquilo que a torna digna de ser vivida. E no final, Gaia, a terra já sem profundidade, que perdeu toda memória da morada subterrânea dos mortos, está totalmente à mercê do medo e da morte. Desse medo poderão se curar apenas aqueles que reencontrarão a memória de sua dúplice morada, que lembrarão que a humanidade é apenas aquela vida em que Gaia e Ctônia permanecem inseparáveis e unidas.

4. William Golding, Senhor das moscas. Trad. Sergio Flaksman. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2014.

Argumentum e silentio. Fala tu agora mais alto, palavra calada.
28 de dezembro de 2020

Autor: Giorgio Agamben

Capítulo do livro: Em que ponto estamos? A epidemia como política (n-1 edições)

Lançamento 7 de fevereiro 2022 > Livro: O Reino e o Jardim (n-1 edições)

Há mais de dois milênios o paraíso terrestre, o jardim plantado por Deus no Éden, constituiu para o mundo ocidental o paradigma de toda felicidade possível sobre a Terra. No entanto, desde o início, foi também o lugar de onde a natureza humana, decaída e corrompida, foi expulsa para sempre. De um lado, todos os sonhos revolucionários da humanidade podem ser vistos como uma tentativa incansável de voltar ao Éden, desafiando os guardiães que proibiram seu acesso; de outro, o Jardim persiste como um traumatismo original que condena ao fracasso toda busca da felicidade terrestre. Em ambos os casos, o paraíso é essencialmente um paraíso perdido e a natureza humana algo de radicalmente defeituoso. Através de Agostinho e Dante, Agamben tenta pensar o paraíso terrestre não como um passado perdido nem como um futuro por vir, mas como a figura ainda e sempre presente da natureza humana e da justa morada dos homens sobre a Terra.

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https://www.youtube.com/watch?v=n2sC27Go4kk

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Livros-objeto entre a filosofia, a estética, a clínica, a antropologia e a política.