Homenagem a Osvaldo Saidon — Pensar é resistir

Osvaldo Saidon

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5 min readMar 29, 2023

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Dez anos se passaram desde a morte de Deleuze. E trinta desde que começamos a ser infiltrados, habitados por essa potência que seu pensamento anunciava. Há mais de dez anos ele não publica, não dá aulas, não responde, não comenta − e sua potência permanece. Dez anos esperando que essa época seca que ele prenunciava pouco antes de morrer termine. Dez anos apostando na consistência do minoritário. O Fórum Mundial, Seattle, Gênova, as lutas anti-institucionais, os mais diversos enfrentamentos com a hegemonia do Império destes últimos dez anos. Todos esses movimentos estão atravessados, infiltrados pela filosofia de Deleuze, pelo seu modo de intervir, por todos esses devires que ele comunicava já faz mais de trinta anos.

Para Deleuze, o pensamento é o conjunto de forças que resiste à morte − eis o seu vitalismo. Pensar é resistir, e a filosofia, a política, a crítica e a clínica constituem então um mesmo movimento. É um funcionamento em que o essencial do pensar não está no pensamento, mas fora, naquilo que força a pensar. É a vida tratada como campo aberto dos encontros, e a inevitável necessidade de pensá-la o que nos instigou a uma clínica e a uma política para além de todos os ismos, ou das escolas dominantes nas diferentes conjunturas. Ernesto Hernández, colega colombiano tradutor de inúmeros trabalhos de Deleuze para o espanhol, diz: “Sentimos que se inaugura um novo gênero de narrativa filosófica, uma nova narratividade, já que com Deleuze, a filosofia realiza a literatura, tanto quanto em Borges e Carroll, a literatura realiza a filosofia”. Nós pensamos que essa filosofia nos fornece uma clínica que realiza uma crítica, uma narratividade que aponta para uma vida-artista, para uma ilha deserta que se solta de um território tomado por uma psicopatologia puramente edipianizante.

Justamente em se tratando de datas, queremos falar de um trabalho recentemente publicado de Deleuze, escrito em 1953 e chamado “Causas e razões das ilhas desertas”. Há mais de cinquenta anos, Deleuze anunciava um estilo e uma preocupação por expandir o deserto como geografia da criação. Ele dizia: “Os homens que vêm à ilha, ocupam-na realmente e a povoam; mas, na verdade, se estivessem suficientemente separados, se fossem suficientemente criadores, eles apenas dariam à ilha uma imagem dinâmica dela mesma, uma consciência do movimento que a produziu, de modo que, através do homem, a ilha, enfim, tomaria consciência de si como deserta e sem homens” [1]. Ele fala então que, na mitologia e na literatura, a ilha é um recomeço. E que se trata não de uma criação, mas de uma recriação: basta com que tudo comece; é preciso que se repita uma vez acabado o ciclo das combinações possíveis. Já estão ali, naquele texto da juventude e para serem recriados, conceitos como separação e origem, deriva e criação, corte e fluxo, habitar e expandir o deserto.

Quem ocupa o lugar da exigência no pensamento, da expansão do deserto? Negri, Virilio, Prigogine, Agamben? Ele havia indicado Guattari, o número um, o mais veloz de todos, o mais militante, o mais clínico. Morreu antes do tempo que todos nós precisávamos para, de uma vez por todas, rifar a prepotência do simbólico, a frivolidade pós-moderna, as recaídas estalinistas dos microgrupos cheios de certezas.

Assim, faz 30 anos que a nossa clínica não é mais a mesma, e nem se parece conosco. Ela é habitada por um estranho, que não se confunde nem com um ideal do eu nem com um super-eu, nem um pequeno ou um grande outro. É uma estranha inconformidade com a academia, com a instituição, com a transferência. Com a Igreja, com a moral, com o simbólico. É o esquizo, o psicótico, o estranho, o viado, o judeu, o preto, a criança − são todos esses estranhos que começam a falar num paradigma mais estético que ético. Surge o escândalo diante das recaídas pós-modernas desse pensamento. Os representantes da tradição acadêmica criticam as relações caóticas que propiciam essas novas vozes; um humanismo requentado tenta nos lembrar da função social das ciências humanas. E temos visto como, por trás dessas propostas, são alimentadas tentativas de recuperar os arcaismos instituídos que já não dão conta do acontecimento que transborda por toda parte.

Na clínica concreta que fazemos hoje, vemos como o sofrimento, como a mortificação se nos apresenta sob formas que fogem das classificações tradicionais que procedem das duas grandes categorias: as neuroses, de um lado, e as psicoses, do outro. As “novas patologias” — pânico, toxicomanias, anorexia, bulimia –, de algum modo já se anunciavam n’O Anti-Édipo, onde Deleuze e Guattari nos convidavam a pensar o inconsciente e suas produções a partir da psicose e não da neurose, como fazia a psicanálise até então. Mais ainda, eles anunciavam um pensamento entre um campo e outro: entre a neurose e a psicose, entre o social e o individual, entre Freud e Marx, entre o discurso de Lacan e o pensamento do corpo de Melanie Klein. Todos esses “entre…” ganhavam autonomia, inventavam novos sentidos, porém nada articulavam; inventavam uma nova e estranha paisagem, um não-lugar, um deserto.

Esse estranho é o que habita nesses jovens que, diante da irrupção do intempestivo, da velocidade, da comunicação e da informação em tempo real, desabam nessas patologias de fronteira, sem consistência, quase sem identidade; se automutilam, se acidentam, se suicidam, entram para o crime com uma frivolidade que nos estarrece. A clínica não pode ficar na denúncia das mudanças, ressentida com a velocidade e o intempestivo, na saudade de outras condições para a análise. Precisa gerar contraefetuações diante da desmontagem das singularidades e da homogeneização da banalidade, criando espaços para aprender a resistir e inventando novos modos de subjetivação.

Nossos dispositivos são bolhas de lentidão (psicanálise e esquizoanálise), espaços de experimentação de uma multiplicidade produtora de sentido (esquizodrama), construção de grupelhos instituintes (análise institucional), todos ligados a essa tentativa política-clínica de recriar um pensamento que expanda a alegria de resistir.

[1] Tradução de Luiz B. L. Orlandi. In: A ilha deserta e outros textos. São Paulo: Iluminuras, 2006.

Tradução de Damian Kraus
Trecho do texto lido por Osvaldo Saidon por ocasião da Homenagem a Gilles Deleuze, passados dez anos de sua morte, na Universidade Federal Fluminense — UFF, Niterói, Rio de Janeiro, 2005. Publicado originalmente em espanhol no blog Lobo Suelto!, em 19 de março de 2023. Disponível on-line:
lobosuelto.com/pensar-es-resistir-osvaldo-saidon/

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Osvaldo Saidon, falecido no último sábado (18/03/23) em Buenos Aires, foi médico, psicanalista, analista institucional, professor, ativista, escritor. Leitor assíduo de Deleuze e Guattari, renovou a relação entre clínica e política com vitalidade ímpar. Viveu vários anos no Brasil. Escreveu entre outros La escena institucional, La potencia grupal, Análisis Institucional en Brasil, Políticas en Salud mental, Lo grupal, Clinica y Sociedad: Esquizoanálisis.

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Livros-objeto entre a filosofia, a estética, a clínica, a antropologia e a política.