Arte: Matheus de Moura

Abraçando o absurdo: Como Kurt Vonnegut escreve

Niilismo, Humanismo e Determinismo em narrativas anti-guerra e pro-boas risadas

Matheus de Moura
N.E.U.R.A. Magazine
14 min readApr 6, 2020

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Co-escrito com

Kurt Vonnegut Jr. (1922–2007) foi um autor marcante para a literatura norte-americana. O estilo de texto telegráfico, os meta-comentários e o satirismo gritante colocaram o autor como um dos maiores nomes da ficção científica, junto a nomes como George Orwell e Philip K. Dick. O autor é mais conhecido por seu livro Matadouro Cinco, que trata a guerra para muito além do heroísmo e das imagens culturais de glorificação e exaltação da violência.

Ao longo de uma carreira de cinco décadas, Kurt Vonnegut produziu 14 romances, cinco peças de teatro, cinco livros de não ficção e três coleções de contos. Outras antologias ainda foram reunidas por amigos e pelo filho do autor em publicações póstumas.

O leitor que encontra Kurt Vonnegut tem a sorte de, pelas páginas, observar o absurdo do mundo sem se desesperar e, quando menos percebe, refletiu sobre algo que preferia não ver. Mas quem o lê como escritor pode encontrar técnicas pouco ortodoxas para ilustrar um mundo e persistir no ponto de que a vida não é tão simples assim.

Vejamos, então, como Vonnegut escreve:

Rindo na cara do Absurdo

Narrativas, num geral, são artifícios. Não existem por si, mas ao invés disso, são enxergadas no mundo. É uma forma — uma neurose, por assim dizer — de colocar sentido, começo, meio e fim, aos acontecimentos ao nosso redor, sequencializando-os. Assim aprendemos a enxergar causa e efeito. Assim, aprendemos a enxergar a razão de ser das coisas.

Mas e quando essa razão implode?

Aí, nos colocamos em contato com o Absurdo. Em termos filosóficos, o absurdismo é o conflito entre a necessidade inerente do ser humano em encontrar sentido para a vida enquanto existe num universo caótico e sem lógica.

‘Você está todo cagado e desmoralizado’, leu Dwayne. ‘Como não estaria? Claro que é desgastante ter de raciocinar o tempo todo num universo que não foi feito para ser racional.’” Café da Manhã dos Campeões, página 339.

Esse conflito não se dá diariamente. Enquanto o ser humano vive dentro de uma experiência organizada, há pouco espaço para o choque de realidade. É no horror do trauma que o absurdo se manifesta, e a neurose se quebra — às vezes, em fragmentos demais para juntar os estilhaços.

A experiência de Kurt Vonnegut na guerra colocou ele diante do Absurdo. Três meses antes da ser enviado para a Segunda Guerra Mundial, sua mãe se suicidou. Foi capturado pelos alemães na Batalha das Ardenas. Testemunhou a morte de inúmeros colegas na ofensiva e na captura — por seus próprios aliados. Os bombardeiros ingleses atacaram os vagões de prisioneiros que levavam ele e outros de seus colegas para a cidade de Dresden. Ficou preso lá até a cidade ser alvo de bombardeio — um dos mais debatidos crimes de guerra na Europa.

Vonnegut sobreviveu se escondendo em um frigorífico subterrâneo, onde era feito de prisioneiro. Tal como muitos de seus colegas, voltou pra casa com uma ferida profunda, com imagens que não conseguia descrever e o atormentaram por anos.

Sua escrita, entretanto, não é meramente um memorial de suas experiências traumáticas, como numa confissão que justificariam uma vida resignada e pessimista. Não é um tremor diante da incapacidade de assimilar o Absurdo — como no horror cósmico de H. P. Lovecraft, onde a pequenez humana diante do desvelar da realidade sempre termina na loucura em si.

Vonnegut vai justamente pela via oposta: aceita.

“Havia uma mensagem escrita à lápis nos azulejos ao lado da toalha de rolo. Era a seguinte:

Qual o sentido da vida?

Trout revirou os bolsos à procura de uma caneta ou um lápis. Ele tinha uma resposta para aquela pergunta. Mas não tinha nada com o que pudesse escrevê-la, sequer um fósforo queimado. Então, ele deixou a pergunta sem resposta, mas eis o que ele teria escrito, se tivesse encontrado alguma coisa com a qual escrever:

Ser

os olhos

e os ouvidos

e a consciência

do Criador do Universo,

seu idiota.” Café da Manhã dos Campeões, páginas 108 a 109.

A aceitação é a terceira solução ao conflito do Absurdo. É consonante com a ideia de Albert Camus, que propõe um olhar honesto e de reconhecimento de que a ordem dos acontecimentos é irracional. E ainda assim, devemos persistir no sentido que encontramos para nossas vidas, por menores que sejam. As outras soluções são o salto de fé numa crença transcendental — religiosa ou não –, ou o suicídio.

Ao que me parece, Vonnegut nos presenteou com a melhor delas: aceitação. É como ele nos diz, “não faz o menor sentido, mas é assim mesmo. Que loucura, hein?”.

Arte: Gabriel D. Lourenço

Confusão esclarecida

A não-linearidade costuma ser utilizada por escritores e roteiristas como ferramenta para aumentar o mistério de uma história ou discutir sobre nossas percepções de determinados temas: Tarantino, por exemplo, utiliza desse artifício em Pulp Fiction para, dentre outras coisas, refletir sobre a banalização e a leviandade da violência e a propagação do ciclo violento no meio urbano/gangster; já Nolan, em Memento, usa da não-linearidade para questionar a memória e o quanto podemos confiar nela e na nossa própria interpretação da realidade, afinal, a ordem dos fatos altera o sentido tanto quanto a adição ou omissão deles. Em ambos os casos, para além da intenção dos autores, a não-linearidade tem também um papel central em prender quem está assistindo e fazê-los trabalhar para compreender a narrativa em sua completude. A confusão gerada pelo autor leva o espectador a sentir-se satisfeito consigo mesmo ao decifrar as verdades complexas de uma obra ficcional de alto nível.

Kurt Vonnegut é a exceção a essa regra.

Diferentemente do explicado acima, a não-linearidade em Vonnegut não serve para confundir, inclusive, ao terminar um livro dele, é provável que você se perceba tendo compreendido perfeitamente tudo o que aconteceu, conseguindo visualizar a timeline com certa clareza. Isso porque a não-linearidade nos livros dele não serve para prender o leitor ou apresentar um ponto; ela é o ponto. O segredo para sustentar clareza num texto tão difuso está em interpor cenas pelo valor cômico/moral/emocional delas. Essencialmente, os livros de Vonnegut são montados com precisão cirúrgica, mas guiados pela emoção terapêutica. Você não os lê pensando em como vão se encaixar logicamente, mas sim em qual o sentimento que virá na próxima página, e isso faz toda diferença, pois, ao não se preocupar com a ordem dos fatos, o texto ganha um sentido psicológico forte o suficiente para te envolver pela familiaridade dos sentidos, não importando o quão absurda seja a situação.

Estrutura é conteúdo

Nós, tralfamadorianos, lemos todos os blocos de uma só vez, em vez de um após o outro. Não existe qualquer relação específica entre todas as mensagens, exceto o fato de terem sido escolhidas com cuidado pelo autor, de modo que, ao serem vistas ao mesmo tempo, produzem uma imagem da vida que é bela, surpreendente e profunda. Não existe início, nem meio, nem fim, nenhuma moral, nenhuma causa, nenhum efeito.” Matadouro Cinco, página 125.

Vonnegut é um niilista. Digo isso no melhor dos sentido, longe da conotação negativa e grosseira dessa palavra, que cada vez mais se confunde com “pessimista” — coisa que o escritor não é. Ele transparece essa visão que renega um sentido cósmico à existência através da própria estrutura das obras. Seus livros — Matadouro Cinco em especial — são montados como mosaicos de cenas da vida dos protagonistas, cenas estas que intercruzam com memórias do próprio autor, tudo sempre alheio a uma lógica de começo-meio-fim, pois ao negar a linearidade, ao negar as noções de um mundo tridimensional, abraçando a noção de quarta dimensão — bem apresentada pelos desentupidores com olhos que são os alienígenas Tralfamadorianos — , Vonnegut assume que as narrativas progressivas são invenções humanas para ajudar-nos a compreender o incompreensível, para lidar com a aleatoriedade do mundo e das coisas que nos ocorrem.

Todos os momentos são igualmente relevantes para o escritor. Por isso, Billy, protagonista de Matadouro Cinco, pode sair de uma cena em um hospital de guerra, onde se recupera de seu tempo de soldado na Segunda Guerra Mundial, para uma de abdução e confinamento num zoológico alienígena, preso junto a uma atriz conhecida em uma jaula que mimetiza a experiência terráquea.

Ao tratar o tempo como irrelevante para a progressão da história, Vonnegut ignora também aquilo que nos move: o medo da morte. Pode-se dizer que a percepção de mortalidade e a valorização da vida pelo escritor foram profundamente afetadas e deturpadas pelo trauma de vivenciar o Bombardeamento de Dresden — quatro ataques estadunidenses a uma cidadela alemã, entre 13 e 15 de fevereiro de 1945, quando a guerra já se esmorecia ao fim, o que, somado ao fato de que morreram 25 mil pessoas, quase todas civis, tornou a ação uma das mais condenáveis da Segunda Guerra Mundial. O primeiro capítulo de Matadouro Cinco aborda justamente o quanto ele sofreu para pôr no papel os sentimentos evocados por aquela experiência sombria, o quanto soava sem sentido atribuir razão e lógica a um massacre, mais ainda um tão gratuito e injustificado quanto Hiroshima e Nagasaki.

O livro é tão curto, tão confuso, tão desarmônico, Sam, porque nada de inteligente pode ser dito sobre um massacre. Todos devem estar mortos, sem nunca mais dizer ou querer nada. Tudo deve ser muito quieto depois de um massacre, e sempre é, exceto pelos passarinhos.” Matadouro Cinco, página 37.

A morte faz tanto sentido quanto a vida. Ou seja: não faz. E as guerras são inevitáveis. Essa é uma das conclusões possíveis da obra de Vonnegut, uma das conclusões que sua estrutura narrativa ausente de ponto de chegada e partida traz ao renegar qualquer pretensão filosófica maior que a aceitação do desastre. Entretanto, essa aceitação determinística de que o mundo é como é e continuará sendo assim independente da nossa vontade, não anula o companheirismo e o humanismo. Afinal, Matadouro Cinco é acima de tudo um livro anti-guerra, uma obra de repulsa à capacidade humana de provocar dor em terceiros. A resposta para a dor é focar nos momentos bons, na cumplicidade humana, na humanidade do outro. Mais uma vez, essa filosofia do autor é explicitada por seus porta-vozes intergaláticos:

— Em outros tempos, tivemos guerras tão horríveis quanto qualquer outra que você já tenha visto ou sobre a qual tenha lido. Não há nada que possamos fazer a respeito, então não olhamos para elas. Ignoramos essas guerras. Passamos a eternidade olhando para momentos encantadores, como o dia de hoje no zoológico. Não é um momento agradável? (…) Isso é uma das coisas que os terráqueos poderiam se esforçar para aprender: ignorar os momentos horríveis e se concentrar nos bons.” Matadouro Cinco, página 163

Vonnegut cursou Antropologia na universidade de Chicago, onde aprendeu que não há moral universal e estudou como sociedades contam histórias, culminando numa dissertação de mestrado sobre as formas das narrativas; segundo ele, toda história tem um formato desenhável, e, portanto, isso falaria muito sobre um autor e a sociedade em que está inserido; o que molda esse formato é o equilíbrio de fatos bons e ruins que compõem a vida do protagonista, as facticidades. Seguindo sua própria filosofia, o formato de seus livros explicitam a aleatoriedade dos fatos bons e ruins, que de tão sem um porquê de ser, geram um equilíbrio imperceptível a quem os vive, pois nossa percepção sobre eles muda a depender de nossa posição no tempo-espaço.

O desafio de explicar o Absurdo

Histórias não são imutáveis. Ainda que os fatos sejam os mesmos, a distância e o tempo podem muito bem mudar nossa maneira de enxergar as coisas. Basta rememorar um único fato, ou somar um elemento diferente, e nossa compreensão já não é a mesma.

É por isso, inclusive, que traumas são capazes de evocar dores tão intensas, mesmo aparentemente tão distantes. Fatos acrescidos ou rememorados podem potencializar uma dor. Muita gente prefere nem olhar pra eles por conta disso. O que não muda o fato de que enquanto a história é vista e contada assim, o sofrimento permanece o mesmo.

Vonnegut tinha uma boa noção de quanto olhar para as dores do passado traziam as dores de volta ao presente.

Contar um trauma é tentar reproduzir um pedaço do Absurdo, e essa estética é encontrada em seu trabalho através da metalinguagem. O autor vai além da ideia de que o escritor não pode existir dentro de sua própria ficção, ou que ela não pode tergiversar para a vida real, e se insere e sai de cena quando bem o interessa. Em Café da Manhã dos Campeões, situações assim se entrelaçam, por exemplo quando um personagem rememora os acontecimentos que são muito similares ao passado do próprio Vonnegut.

Seu maior segredo, é claro, era aquele que Bunny não foi capaz de detectar até que ela tirasse a própria vida ingerindo Drãno: Celia Hoover era doida de pedra.

Minha mãe também era.” Café da Manhã dos Campeões, página 243.

Esse tipo de intromissão, junto à não-linearidade narrativa, ajudam a reproduzir os efeitos de um discurso traumático, que é, muitas vezes, confuso.

Outro elemento comum entre os trabalhos de Vonnegut e os relatos de trauma é que nem sempre são articulados pelo começo, e suas linhas de raciocínio são constantemente interrompidas pelo que é mais evocativo. As perspectivas saltam, para antes ou depois, circundando os acontecimentos. Ora porque um detalhe esquecido parece importante de contar. Ora porque algo no agora lembra do passado.

É essa experiência, a de um autor revendo a estória no decorrer de como ela é contada, que faz Vonnegut transformar suas ficções em meta-narrativas absurdistas:

E agora chegamos ao clímax espiritual deste livro, pois é neste ponto que eu, o autor, sou subitamente arrebatado pelo que fiz até agora. Foi por isso que vim até a cidade de Midland: para nascer de novo. E o Caos anunciou que estava prestes a dar à luz a um novo eu ao colocar as seguintes palavras na boca de Rabo Karabekian: “Que tipo de homem iria querer transformar sua filha num motor de popa?”” Café da Manhã dos Campeões, páginas 293 e 294.

Quando Kurt Vonnegut conta uma história em que o próprio final é revelado antes mesmo da sequência dos fatos, ele acaba emulando os saltos temporais do trauma. Entretanto, isso não é o mesmo que um spoiler da própria narrativa. Há um espaço a ser preenchido até os acontecimentos, sejam eles as razões que fazem acontecer, ou como se dá, ou consequências. E toda vez que esse espaço de preenche, o sentido se amplia.

Curiosamente, é ressignificando acontecimentos traumáticos que eles podem ser superados — quem sabe até fortalecerem o indivíduo. O trauma ganha outra chance de ser revisitado.

Talvez agora o Absurdo também tenha um pouco de graça.

Mesmos sentidos, diferentes significados

Acho mais fácil enxergar uma narrativa de Vonnegut como um buraco na areia da praia: quanto mais você enche de água, mais largo ele fica. Talvez o autor não achasse essa descrição tão precisa. Ele próprio descreveu que suas histórias são um mosaico de piadas; cada uma com sua própria graça e gancho.

Esse mosaico, entretanto, depende muito de um sentido que se expande à medida em que é usado. Vamos analisar como isso acontece.

Tomamos como exemplo a expressão mais marcante de Matadouro Cinco, “so it goes” ou, na tradução que utilizamos, “é assim mesmo”.

A frase é pontuada imediatamente após algum comentário sobre a morte. Fato que o próprio Vonnegut, inclusive, chama a atenção no livro. O fato e a circunstância são apresentados, e o comentário procede, sem emoção. Por exemplo: um homem morre esmagado por um elevador ao tentar retirar a aliança da fenda. É assim mesmo.

O sentido se amplia quando, numa cena seguinte, o comentário aparece depois da ira de Deus castigando um povo, destruindo eles e toda a planície, inclusive com todos seus habitantes e vegetação. É assim mesmo.

O mesmo efeito é mencionado quando um corpo está exposto em meio aos destroços. Um sentido é apreendido disso. E a frase está lá, depois de cada morte, tecendo uma memória da sua gravidade. A medida que o livro se expande, É assim mesmo é uma frase cada vez mais pesada de se ler.

Até que Vonnegut utiliza em momentos completamente inesperados. Ao mencionar, por exemplo, que animais são mortos para servir de alimento àqueles homens que um dia morrerão. O É assim mesmo aparece outra vez. A frase então carrega o mesmo peso para a nossa sociedade de consumo. O sentido se amplia. E porque é inesperado, você ri.

A repetição é vista, muitas vezes, como um erro de autores novatos. Os manuais de estilo falam para que os autores novatos encontrem sinônimos, para não tornarem seus textos maçantes. Vonnegut aqui vai na contramão dessa regra: seu texto explora como a repetição pode situar e expandir efeitos no leitor, criando uma mensagem que se transforma e complexifica no decorrer da estória.

Simples não é simplório

A famosa prosa simples e direta de Vonnegut serve a alguns propósitos: comicidade, dar ênfase e reforçar suas visões filosóficas. No primeiro caso, ao evitar descrições excessivas, prosa floreada e cenas extensas, Vonnegut permite que o texto siga o fluxo de uma piada de stand-up; melhor ainda, ele permite que cada seção dos capítulos — que chegam a ter mais de uma seção por página — ganhe potencial cômico, que pode tanto encerrar-se em si mesmo, como uma piada breve, quanto acumular com mais e mais cenas, fortalecendo ainda mais o efeito. Quanto mais fundo na literatura de Vonnegut você está, mais sentido faz toda a loucura jocosa, que, separada em excertos,enfraquece.

No caso de dar ênfase, Vonnegut escolhe fazê-lo quando sua descrição sai de cenários amplos, com poucos detalhes, descritos por um vocabulário limitado, para uma escrita rica em metáforas e planos-detalhes que captam algo relevante para o andamento da narrativa e para psique do protagonista. E mesmo a descrição rica não é tão rica assim, tá mais para classe média-alta, ou talvez média-média. A analogia em Vonnegut suprime necessidade de mais detalhes, como é o caso de quando ele descreve Billy pela primeira vez:

Era uma criança de aparência curiosa que virou um rapaz de aparência curiosa — alto e fraco [traços concretos], com a silhueta de uma garrafa de Coca-Cola [comparação lírica, reforça os traços anteriores e traz comicidade para a imagem evocada, agarrando o leitor pelo sentimento].” Matadouro Cinco, página 43, colchetes nossos.

Por fim, a escrita simples passa sua filosofia adiante ao suprimir a maioria dos conectivos do texto, substituindo-os por repetição de palavras chaves, como forma de levar o parágrafo adiante. Assim, mesmo os fatos que constroem uma cena se esvaziam de linearidade e cada frase, cada parágrafo, trabalha com uma perpetuação da ideia, fazendo-nos sentir o círculo. O círculo do tempo, o círculo do eterno retorno de Nietzsche, da inevitabilidade dos fatos — ruins, bons ou amorais.

Aqui, um exemplo da repetitividade de Vonnegut:

Seu nome era Valencia Merble. Valencia era filha do dono da Escola de Optometria de Ilium. Era rica. Era grande como uma casa, pois [único conectivo do parágrafo] não conseguia parar de comer. Estava comendo uma barra de Three Musketeers. (…) O brilho do strass conversava com o brilho do diamante na aliança de noiva. O diamante estava segurado em 1.800 dólares.” Matadouro Cinco, página 148–149, grifos nossos.

Escrever dessa forma é uma tarefa hercúlea, pois a linha entre uma repetitividade intencional e fluída e uma que soe como amadorismo entediante é tão tênue quanto de mostrar a guerra como absurda e, portanto, passível de risos desconfortáveis, sem soar insensível. A técnica é empregada por inúmeros escritores, mas raramente servem de alicerce para um livro inteiro, como é o caso de Vonnegut.

O pai do tralfamadorianos tentava equilibrar muitas coisas num texto só. Ao mesmo tempo que ria tanto do absurdo da vida prosaica quanto dos da guerra, queria contar histórias envolventes sem abrir mão de estruturas frasais e narrativas arriscadas, passíveis de expulsar leitores, caso não fossem escritas com maestria. Todavia, com maestria ele as escrevia. Não há linhas fora de lugar em Vonnegut. Ele abraça o vazio, o caos e os ordena num sentido emocional irremediável, tal qual um trauma ou uma crise de depressão, doença da qual padecia.

Por isso, leitor, para escrever como Vonnegut, além de estudar atentamente como histórias são contadas e até onde podem ser desconstruídas sem perder sentido, deve-se olhar para o mundo ao seu redor e depois para si mesmo, a fim de extrair dessa fusão o absurdo que o faz rir e chorar ao mesmo tempo. Escrever como Vonnegut é, acima de tudo, manter-se ambivalente, pronto para dar as mãos a paradoxos que nem você e nem seus leitores saberão responder.

Para esta análise, utilizamos as edições de Matadouro Cinco e Café da Manhã dos Campeões pela Intrínseca, publicadas em 2019

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Matheus de Moura
N.E.U.R.A. Magazine

Jornalista. Escritor. Neguinho. Catarinense no Rio. Co-criador de: N.E.U.R.A Magazine e Não Há Respostas Quando Morre uma Pobre