Arte: Gabriel Daros

Acho que Bolsonaro tem medo da morte

A incapacidade de enfrentar o Covid-19 com a seriedade necessária abre espaço para a pergunta: e se o desprezidente se enxerga maior do que a própria vida?

Gabriel D. Lourenço
N.E.U.R.A. Magazine
11 min readMar 27, 2020

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Em 2017, eu entrevistei o até então apenas desprezível Jair Bolsonaro. A ocasião era uma palestra em que ele dizia não ser candidato à governança maior de nossa nação, mas também tudo o que faria, se candidato fosse. E foi. Numa impressionante campanha política, conseguiu se eleger o mais desprezível de todos os nossos presidentes democráticos.

Desculpe. Presidente é um termo forte. Desprezidente talvez seja melhor.

Entrevistar também é um termo forte, na verdade. Tudo o que fiz foi uma única pergunta. Estava lá pelo Intercept Brasil, num esforço freelance de observar a estranha multidão que cometia o grosseiro erro de se agarrar às promessas de um Messias. Eventualmente fui parar na coletiva de imprensa. Suas últimas palavras oficiais foram “hoje em dia eu nem saio mais com minha família pra ir num churrasco, numa pizzaria, por medo de assalto”.

Medo? O militarista, ex-oficial do Agulhas Negras, soldado de alma, com medo?

Corri até seu elevador. Tinha um andar de distância até o líder do antipetismo se dirigir à palestra. Me apresentei e repeti o contexto de sua última pergunta.

“Bolsonaro, o senhor tem medo da morte?”

Ele piscou duas vezes. A pergunta talvez tivesse até soado ameaçadora, últimas palavras antes de morrer num atentado terrorista. Não era.

“Não”, ele me respondeu. “A morte é a única coisa que não temo.”

Nosso desprezidente fez 65 anos em 21 de março deste ano, e de fato não comemorou saindo com sua família para churrasco ou pizzaria. Fez uma festinha em casa mesmo. Não por medo, na verdade, mas por causa de um contratempo.

Uma gripezinha, diz ele.

Uma gripezinha, suspeita-se, que seja a mesma que tenha colocado meio mundo em quarentena, infectando em doze dias, só no Brasil, 2554 pessoas, matando outras 77, de acordo com números checados em 26 de março. E que aumentarão muito mais. Números não têm rosto e, talvez por isso, Bolsonaro os ignore, junto com as orientações da Organização Mundial de Saúde, que também não tem rosto.

Esse contratempo, o desprezidente jura, não é Coronavírus.

Não vou me estender quanto ao fato de que Bolsonaro faz questão de ir na contramão do bom senso e ignorar todas as medidas de preservação coletiva. É notado que ele subestima a gravidade do risco para o Brasil — e também para si mesmo. Quando questionado sobre a gravidade do COVID-19, Jair permaneceu firme na sua opinião de especialista: “Olha, quem está são, o risco é quase zero. O problema é acima dos 60 anos ou quem tem algum problema de saúde.”

Nosso desprezidente, repito, fez 65 anos em 21 de março deste ano. E não parece nem um pouco são. A gripezinha persiste, e ele também, em dizer que não é coronavírus. Seu histórico de atleta o imunizaria, ele acredita.

Erroneamente, mas acredita.

Reparou que esse bloco anterior foi todinho só de falas do nosso animal-em-comando? Isso quase me lembra que a editoria de política não é, hoje, tão diferente quanto a de fofocas — mas isso é assunto para outro dia.

Desculpe. Acho que estou pegando pesado demais. Sabe, eu confesso: não estou muito bem. Meu carnaval foi uma série de reveses, é, meu corpo dói. A quarentena é um inferno. Meu cachorro não para de latir. Tem dias, eu juro, que consigo ouvir as conversas das paredes. Elas falam que tudo era muito melhor quando estavam sozinhas.

Deixo então minhas mais honestas desculpas. Tenho certeza que qualquer um dos animais do Brasil e do mundo é muito mais capaz do que o governante desta nação.

Enfim. Bolsonaro persiste em dizer que não está com coronavírus.

Dois de seus motoristas estão. O Ministro de Segurança Institucional e o de Minas e Energia estão. A comitiva que viajou com ele para um evento nos Estados Unidos está. O prefeito de Miami, que estava no mesmo evento, está. Um total de 24 pessoas que estiveram em contato com o desprezidente foram diagnosticadas com teste positivo.

Mas Bolsonaro insiste que não está com o coronavírus.

Dos dezessete examinados no Hospital das Forças Brasileiras, afinal, o resultado de duas pessoas, integrantes do Planalto, permanece em sigilo, mesmo quando a Justiça determinou a nomeação dos testes positivos. Planalto que, aliás, continua como um dos maiores focos de proliferação da doença.

E ele continua lá. Insistindo que não está com o coronavírus.

Fez até dois exames para provar. Mostrar o resultado deles, que é bom, nada. Me pergunto por quê. Ele não está com o coronavírus — ele mesmo persiste em dizer.

O desprezidente perguntou a alguém, afinal, se achava que ele estava “escondendo alguma coisa”. Eu acho. E o porquê tem tudo a ver com a pergunta que lhe fiz no elevador, três anos atrás.

Acho que Bolsonaro esconde porque tem medo da Morte. Mais do que isso: tem medo de morrer duas vezes.

A Morte de Bolsonaro como Líder

O ponto da reportagem em 2017 era apresentar o fenômeno populista de Bolsonaro para além do Anti-Lula. Fui testemunhar um apanhado de escolhas e reações que o futuro desprezidente causava no povo e como grupos tão distintos convergiam tão apaixonadamente na onda avassaladora que, eventualmente, deixaria o país na UTI.

Em suma: as pessoas o apoiavam para, fundamentalmente, negar a própria Morte.

Não uma morte imediata, como se a violência, o comunismo, ou outro inimigo público comum da direita representasse a chance de morrer. Mas sim a noção de que a vida, bem, não tem nenhum sentido explícito e de que certas pessoas — aqueles seus seguidores — construíram um propósito existencial apoiando uma causa, ou um líder.

Isso tudo é explicado no livro A Negação da Morte, do antropólogo e escritor vencedor do Pulitzer, Ernest Becker. Ele nomeia estes estratagemas (que todos temos, aliás) de neuroses. Tais neuroses podem ser quaisquer coisas: amor correspondido, fama, carreira de sucesso, uma conta no Instagram com um milhão de seguidores — você que escolhe, acredite.

Viver e defender um político até a morte, por mais imbecil que soe, também é uma maneira de proteger-se da sua própria noção de mortalidade. Para estas pessoas, ele é mais do que um humano há muito tempo. Ele é o pilar de sua própria sanidade.

Pena que algumas pessoas escolhem pilares mais insustentáveis do que outros.

Entra num bar um anarcocapitalista, um liberal, um intervencionista militar, um olavista, um integralista e um fundamentalista religioso. Sentam na mesma mesa, de comanda B17 e com exceção do último, todos bebem.

Você sabe o motivo que os une. Mas sabe como Bolsonaro conseguiu falar com todos eles ao mesmo tempo?

Dog-whistling.

Os discursos de Bolsonaro naquela ocasião tinham um apelo específico a cada uma dessas categorias tão diferentes de eleitores. Não é tão difícil de fazer, muito menos de reconhecer: você utiliza expressões de significado abrangente na sua fala, e cada um entende de uma maneira.

Família. Cidadão de bem. Esquerdista. Deus. Ameaça comunista — enfim, você entendeu onde eu quero chegar.

A questão é que nem todo mundo entende a mesma coisa. Então uma fala extremista não é levada a sério se ele falar “é brincadeira” logo depois. Quem quer ouvir aquilo vai continuar ouvindo a mesma mensagem.

É assim que tantos de seus defensores continuam enxergando lógica até onde as pessoas cansaram de ver. É por isso que eu e você, claro, somos burros, não conseguimos ver o que ele realmente queria dizer.

Dog-whistling é uma expressão criada pelo colunista William Safire, inspirada no efeito das apitos de cachorro, com frequências que só esses animais conseguiam captar.

Aqui no Brasil podemos muito bem chamar de Política do Berrante.

Ernest Becker conceitua o engajamento com estas neuroses como Heroísmo. Heroísmo porque tais esforços, em teoria, transcendem a morte e consolidam aquele que o alcançou pelo seu legado. Não, ele não será esquecido — sua individualidade será eternizada na memória dos outros através daquilo que é importante.

Ela viveu um grande amor. Ele esfaqueou o Presidente. Essas coisas.

Apoiar Bolsonaro e o que ele significa é, nos termos de Becker, fazer parte de uma “engrenagem heróica”. Atingir o objetivo que ele quer. Ao mesmo tempo, o líder dessa causa, elevado ao status de herói, assume o manto e ergue a bandeira da causa, fazendo dela um sinal de ser maior do que a própria vida. E de repente, temos uma pessoa capaz de mover multidões com uma breve articulação de palavras.

Imagina o estrago que isso faz na identidade de um homem.

Era assim três anos atrás. Hoje, o herói com histórico de atleta mal faz dez flexões sem mergulhar a cabeça no chão. E se suas mãos se embabacam para colocar uma máscara, o que dirá manter uma bandeira içada diante do tufão que vem ao longe.

Se olhasse para trás, talvez enxergasse: não há mais tantos assim para segurá-lo no lugar. Todos correm com medo do que o vento traz.

O que Bolsonaro tem a perder assumindo que tem coronavírus?

Ao contrário do jornalismo médio, eu posso estar errado na leitura que farei. Não importa. Farei mesmo assim.

Só de admitir que sua gripezinha na verdade é SARS-COVID19, Bolsonaro já está morrendo como líder.

Neuroses envolvendo heroísmos populistas não costumam contemplar o fato de que um representante democrático não possui a obrigação de cumprir o que prometeu. Faz parte da ideia de seu cargo acreditar que, por representar o povo, entende suas necessidades mais do que eles mesmos — mesmo que isso os desagrade.

Normalmente um presidente resolve essa insatisfação com uma administração decente. Mas política é um jogo de administrar conflitos. E nosso desprezidente joga isso muito mal.

Imagine você: seu herói desmonta sistematicamente os investimentos em Saúde Pública e em Ciência, negar a ameaça de pandemia, contraria orientações da OMS e coloca a economia acima do seu bem-estar. Você tenta defender, mas seus pais, por exemplo, não estão bem. E porque é tarde demais, não há como atendê-los. Com que fôlego você defende a engrenagem heróica quando lhe sobra assisti-los ficarem cada vez mais sem ar?

Arte: Matheus de Moura

E como se cavasse a própria cova, quem diria: o veneno está no copo do seu líder. Bolsonaro, que nunca pagou por dizer o que pensa, agora morde a língua. E quanto mais afetado é o desprezidente, mais sangue vaza. É tarde: está sufocado demais para alcançar o berrante.

Numa situação assim, ele que morra afogado. Nem você nem ninguém sentirão mais pena.

Você pode me dizer que, até agora, eu não apresentei nenhuma prova. Concordo. E fico feliz que você não se contenta só com convicções.

Bom garoto. Continue assim nos próximos mandatos. E nada de esquecer dos apitos, hein?

A Morte do Homem Bolsonaro

O ponto final da reportagem de 2017 ainda é o mesmo deste texto. Não existem Heróis. Apenas a raça humana, com suas virtudes e seus vícios. Ernest Becker explica isso ao apontar que, embora elevado pela causa que representa, o Líder ainda é, sobretudo, um homem tão mortal quanto qualquer outro.

Tão logo o texto saiu, um amigo, ex-integrante dos Agulhas Negras, comentou.

“Ele respondeu como um soldado, aliás.”

Eu não sabia, mas a coragem diante da morte é, inclusive, uma de suas citações mais amadas pelo público militarista. “O soldado que vai a guerra e tem medo de morrer é um covarde.” Até a época da reportagem, provavelmente, o pensamento se mantinha. Vinha de longa data, afinal.

Alguém mudou a ideia de Bolsonaro num piscar de olhos. Foi persuadido por uma facada no abdômen de que a Morte é um negócio assustador pra cacete, e ainda que a gente esqueça, ela pode encontrar a gente em qualquer lugar.

Mas foi o desprezível candidato à presidência se eleger e virar desprezidente que ele parece ter esquecido que não é mais imortal do que as ideias que representa.

Você há de concordar comigo que é melhor assim.

A Morte não tem rosto. Ainda assim, vez em quando o enxergamos no Outro.

Na Primeira Guerra Mundial, os soldados viam a face dela, investindo contra o inimigo do outro lado da trincheira. Os sobreviventes do conflito contavam que a morte nunca passava pela cabeça. Os tiros acertariam mil ao teu lado, dez mil à tua direita, mas tu, por algum milagre, não foi atingido.

Ernest Becker diz que, para além da catarse, ver o fim dos outros e viver para contar a história é um triunfo heróico sobre o maior e mais íntimo horror humano.

O berrante de Bolsonaro não soprou à toa. Foi olhando para o medo do cidadão comum que fez sua campanha. Prometeu reforço na Segurança Pública, cresceu-se na ideia de que faria de tudo para que o cidadão tivesse sua própria arma. Assim, quando diante da face da Morte vista no Outro, encontraria uma chance de sobreviver. Uma chance de um triunfo heróico pessoal.

Agora estamos aí, com um governo armado até os dentes, pronto para enfrentar uma pandemia que não se mata na base do tiro.

Nosso desprezidente parece ter esquecido do que é o medo de morrer. Se lembrasse, talvez entendesse melhor o que, nesse momento, coloca tantas pessoas em debandada para suas casas, à enfrentar, cada vez mais sozinho, os ventos que o derrubarão.

Cairá, patético, nas páginas da história do Brasil como o maior incompetente a vestir uma faixa presidencial.

Para Bolsonaro, admitir que está infectado com o coronavírus é ter que aceitar que uma Morte sem rosto esteja ao seu redor. E que ela não se ajoelhará ante seus deboches ou ameaças, ou irá segurar sua foice porque está diante de um homem elevado a importância de líder de uma nação, que seu fim está mais longe.

Pior ainda, estando no grupo de risco, talvez esteja mais próximo do que ele pensa.

Todos os cuidados necessários para preservar sua vida serão um choque de realidade. Porque se não o fizer, a Morte pode chegar ainda mais perto.

Temos aqui um homenzinho, tão cego pelas mentiras que conta a si mesmo, tendo que se dobrar ante o risco de algo maior do que qualquer um.

No lugar dele, você faria tão diferente assim?

Viver é uma corrida contra o tempo. Nós estamos lá, passo após passo, resfolegando, correndo contra nosso próprio fim. E a Morte no nosso encalço. Uns tropeçam. Outros aumentam o ritmo.

Mais ou menos distante, todos sabemos — um dia, irá nos alcançar.

Deixar a quarentena, como Bolsonaro tanto quer, para muitos será diminuir o passo da corrida da vida. E enquanto para uns é perceber que ela ainda está longe, também é a possibilidade de dar a outros a face da Morte. A nossa.

Outros que podem ser ninguém menos do que pessoas que amamos.

A Morte é certa e chegará para todos. Entretanto, não precisamos correr ao seu encontro. Muito menos vencê-la. Nos basta ampliarmos nossa distância outra vez. Neste momento, a humanidade trabalha para desenvolver uma vacina para o coronavírus em tempo recorde. Uma que, apesar de tudo, pode demorar muito.

E no mais irônico momento da vida, nunca corremos tanto estando parados, trancados no nosso próprio lar.

Eu posso estar errado. O desprezidente pode não estar infectado e, por alguma razão realmente justificável, não quer apresentar seus laudos. O ponto não é esse.

A questão é a transparência.

Estar infectado e ignorar completamente é colocar os outros em risco. É pelo exemplo como líder — péssimo, sim, imbecil, também, mas não menos responsabilizável –, dar o exemplo de que a vida do outro não importa mais do que sua própria imagem. Outros que não são números nem instituições. Outros que, nessa situação, tem rosto e dividem o mesmo espaço que ele.

A irresponsabilidade do micro refletindo a incompetência do macro.

E tudo isso a troco de quê? De um imbecil não ser capaz de aceitar que não é tão importante que não vá encontrar seu fim um dia?

Quanto mais egoísta a possibilidade da resposta, maior é o meu ódio. Melhor parar por aqui, antes que eu me arrependa de ter lhe feito uma pergunta, ao invés de um olho roxo, três anos atrás.

Melhor assim. Quem sabe eu estaria morto. E o desprezidente, pior — ainda mais Herói.

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Gabriel D. Lourenço
N.E.U.R.A. Magazine

Jornalista. Escritor. Co-fundador do NEURA Magazine e Não Há Respostas Quando Morre Uma Pobre. Encrenqueiro profissional.