Arte: Matheus de Moura

Hambúrguer, Mototáxi e Fuzil: Uma Tarde com o Comando Vermelho

Relato e reflexão sobre jornalismo nas bocas de fumo

Matheus de Moura
N.E.U.R.A. Magazine
11 min readMar 27, 2020

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Marcamos no Escadão do Himalaia, boca de uma das 17 favelas do Complexo do Chapadão, um dos grande redutos do Comando Vermelho. Era agosto, o maçarico moldava nossas expressões de vidro, e eu me deslocava dos cafundós de Niterói para o miolo da Zona Norte do Rio de Janeiro, tudo para entrevistar alguns MCs da nova leva do Funk Proibidão, o gênero musical mais injustiçado das terras fluminenses. Este texto, contudo, não é sobre os músicos — se quiser saber deles, clique aqui — , não, este texto é sobre a inspiração deles, sobre os homens dos dois lados do cano, que vivem de vender aquilo que todo mundo usa e ninguém libera.

E era justamente sobre eles que eu refletia enquanto sacava dinheiro no caixa 24 horas, a fim de pagar o mototaxista que me levaria pelas artérias do Chapadão. A curiosidade transbordava minha consciência: adentrara muitas comunidades, passara por algumas bocas, muitos radiotransmissores e poucas pistolas, mas sentia que lá seria diferente, que lá se concretizaria a mitologia do crime organizado carioca, a mitologia dos fuzis. Meus cachos de uva se morfavam em paranhos desgrenhados pelo vento enquanto zuníamos pelas vielas, sem capacete — o que no mundo do mototáxi se provou mais regra que exceção. Alheio ao risco da locomoção, me deixava imaginar o cenário por vir. Passamos uma estreita barricada de concreto, flutuando por uma pista larga, ladeada por sacos de lixo à beira da calçada, defronte casas que variavam entre alvenaria pura e aquelas finalizadas, com pintura e entrada azulejada.

A imaginação perdeu espaço para a realidade quando desci da moto e me deparei com uma pequena muvuca numa tenda de PVC, guardada por uma jovens magricelos portando fuzis maiores que eles mesmo. Eram negros, maioria parda, como eu, com menos de 25 anos de idade, como eu, de cabelo crespo, como eu, tatuados, como eu, mas com experiências dignas de veterano de guerra, diferentemente de mim. Talvez por termos tantas semelhanças meio a diferenças tão estridentes, percebi-me neutro ao cenário bélico. Não havia temor, nem tampouco admiração, era uma pintura de fundo de sala, um vaso de flores em aquarela pela sua tia que flerta com o cavalete como forma de terapia pessoal: não é que ninguém nota quando chega ao cômodo, é só que ninguém se importa; e de fato ninguém se importava. Pessoas transitavam por aquela calçada de usuários e traficantes como eu faço na Uruguaiana: escamoteando-me entre camelôs e gente que compra fiado porque conhece a família.

Mãozinha pro alto, três acenos com a cabeça.

Cumprimentei todo mundo.

“Essa maconha é a melhor da região”, me disse o MC, apontando para o estande de entorpecentes. Funks foram feitos para aquela erva, casais jovens paravam a cada cinco minutos para abastecer o sábado com erva pré-sexo. Maconha e pente. Ele não me falou do pó, pois do pó não provara, mas os tios e tias que não o conheciam provaram e provavam, ao meu lado, num orelhão desativado da OI feito de área para iniciar carreiras. Difícil imaginar tanta disposição para usar droga sob um sol tão forte: o maçarico deixava nossas peles hora-a-hora mais escuras, dava para contar o tempo pelo bronze — relógios solares vivos. Um homem ia e vinha de bicicleta, vendendo pastéis, os rapazes da boca compravam a cada fininho queimado. O suco vinha depois.

Me ofereceram um pouco de tudo. Se consumiam, me ofereciam. Maconha, pastel e suco, nada passava batido. Eram educados, acima de tudo. Embora não estivesse assustado, estava tenso, sem fome, receoso de ser indelicado em encarar demais os fuzis porcamente decorados, que de tão feios e poderosos, gritavam por atenção de inúmeros jeitos; e por isso, por esse medo de que o fuzil gritasse na minha cara que além de feio e grande ele era tímido e facilmente irritável, eu ainda não tinha uma visão panorâmica do lugar, permitia-me espiar somente para onde o dedo esguio do meu colega MC apontasse, sob pretexto de algum causo que quisesse me contar.

Assim, foi compreensível o susto com o garoto de menos de 13 anunciando:

COCAÍNA 10 REAIS, PROMOÇÃO!

Cabelo crespo preso por um arco de metal, tal como uso o meu.

Doeu.

O irmão mais velho apareceu de carro para buscá-lo do expediente. Jovem aprendiz do crime. Difícil não sentir indigestão. Ambivalente era tudo aquilo: por um lado, tratado como se fosse de lá, com permissão para fotografar meu entrevistados dentro do morro e transitar sem restrição; por outro, uma criança trabalhava como o locutor do Supermercado Guanabara, porém, no lugar de anunciar o preço da carne, fazia-o com o do pó. Senti-me num daqueles momentos em que você não deve moralizar nem naturalizar; num daqueles momentos que você se sente na obrigação moral de ter o julgamento mais coerente, mais complexo e rico em nuances, ao mesmo tempo que essa obrigação é estabelecida por você mesmo e unicamente por você, afinal, isso não vai entrar na matéria e, mesmo que fosse o caso, ninguém ligaria para suas convicções, pois jornalismo preza, teoricamente, pelo distanciamento do EU. Mas ali o EU estava conflitante, eriçado como um cão ao perceber alguém na porta. Até que a ausência do menino, àquela altura em casa, tomando Nescau, aliviou-me das fissuras. E tão rápido surgiu o choque, tão rápido se foi, num carro vermelho, buscado pelo irmão mais velho, que vinha de outro emprego, esse, aparentemente dentro da legalidade. Para aliviar minha própria tensão, fiz uma piada com o inimigo número um de qualquer um com sistema respiratório: Jair Bolsonaro.

Batata.

Caíram na gargalhada. Não lembro o que falei, não adianta perguntar, ficou lá, faz parte da memória coletiva daquela tarde cálida, é um momento meu e deles, um riso carbonizado pelo isqueiro do baseado.

Ninguém gostava do presidente, do governador, da PM, ou de qualquer figura de autoridade que demonstrasse sofrer de dedo-pesado-no-gatilho. MCs, bandidos, usuários e eu, um jovem jornalista, concordávamos com uma coisa: essas figuras representam nossas etiquetas no IML — muito mais para eles que para mim, claro. A conversa não se estendeu muito além disso. Me mantive ali, parado sob o céu azul, a fumaça cinza de capim da sorte, observando o horizonte laranja terra da massa de alvenaria. Pelos meus ouvidos passavam os comentários de bailes que foram, mulheres que não comeram e vizinhas que hão de dar bola. Papo de bar, sem cerveja, porém.

Estávamos num restaurante do Centro do Rio. Como de costume na culinário carioca, tudo cheirava a alguma variação de gordura, até o brócolis. Minha amiga, uma jornalista de certo renome, passara o dia brigando comigo por ter entrado no Chapadão, por ter me arriscado numa boca grande, dessas que tem fuzil, dessas que todo mundo acha que vai ver em qualquer esquina do Rio de Janeiro, mas que, de tão raro e escondido que é, nem o próprio carioca vê; ela brigava comigo por fazer aquilo que nenhum jornalista deveria, esquecendo-se, porém, que não fui lá para denunciá-los, e que tampouco sou do Rio — portanto, apático ao medo de quem é natural daqui. Os riscos eram calculados, não cabia ali uma comparação esdrúxula com os jornalistas que morreram ou foram arredados das favelas por usar câmera oculta com traficante. Eu estava lá com anuência do pessoal do morro, não fui lá para fazer uma capa que os levasse a mais uma troca de tiros com os fardados do Estado. E ainda assim, a bronca recaía sobre minha cabeça, cada hora mais pesada. Mas eu adoro essa amiga e seu jeito coruja de ser. Numa cidade tão calorosa e tão solitária, um pouco de carinho e preocupação me caia como um tapa de mãe: deixa avermelhado, mas te faz pensar.

Os MCs só apareceram na boca quando o maçarico foi desligado e a luz natural foi se esvaindo para algum outro hemisfério do planeta. Àquela altura, minhas pernas já clamavam por um banquinho; àquela altura eu já havia visto um rapaz da boca sair pedalando a bicicleta de um quarentão que parou para comprar pó, irritando o senhor, que só queria voltar logo para casa e descansar com seu ouro branco; àquela altura eu já havia percebido como metade da boca se dividiu entre os que riam da situação e os que recriminavam incomodar morador — eu fazia os dois. Quando todos os MCs se juntaram, surgiu o novo desafio: subir a escadaria (ou Escadão, para os locais) rumo à pracinha onde faríamos a entrevista “oficial”. Degrau íngreme, esfarelado e cheio de buraco: receita para o desastre. O dono do morro, cujo nome, como de todos aqui, será omitido, ofereceu uma carona. Entramos no carro. Ninguém queria sentar no carona. “Quem sentar aí vai levar o tiro da PM”, brincou um dos músicos. Por fora, eu ria, haha, humor; por dentro, gritos de desespero.

O caminho foi breve e direto. Sem tiro da PM, sem preocupação pro MC que sentou no carona.

A entrevista fluía e as fotos já estavam feitas, quando, no meio do trabalho, o carro dos chefões voltou. Som alto. Funk. Os manda-chuvas sentaram ao nosso lado e acompanharam a entrevista, porém, desarmados de qualquer soberba do poder. Interagiam como fãs da cena musical, como membros da entourage dos MCs, não como donos de morro.

“Fala daquela música”, dizia um deles — eram dois, um magro e um gordo, ambos brancos, entre 20 e 25 anos. “A PM confunde músico com bandido, os caras não tem nada a ver com o nosso negócio”, explicou o outro. E assim seguiam, intercalando comentários até mais pertinentes que os dos próprios MCs. Eventualmente, percebendo-se de frente a um jornalista, faziam propaganda de seus próprios feitos: “Olha esse muro”, apontou para o grafite que ia de esquina a esquina, “nós que pagamos os artistas para pintar isso e deixar a comunidade mais bonita”; “tá vendo as crianças ali?”, apontou para a meninada no campo de futebol ao lado do parque em que estávamos, “olha a segurança que damos pro lugar, lá fora, no asfalto, não tem isso: parque, a essa hora [20h], com criança brincando sem supervisão dos pais.”

E se ele me matasse?

Esse foi o grande questionamento da minha amiga, a jornalista.

Eu disse o que disse no bloco II: eu estava lá com permissão deles.

Ela insistiu que o dono do morro poderia mudar de humor do nada e PUM.

Não morri.

Comi batata frita.

Um homem negro com regata de empresa de mototáxi entra numa lanchonete do McDonald’s e pede mais de vinte lanches. O gerente, embebido em sua própria convicção moral de cidadão erigido pelos costumes cristãos, olha o rapaz de soerguido e, após uma bufada, avisa que vai entregar quinze lanches, não vinte, quinze. Ele sabe que o mototaxista está fazendo uma compra pro tráfico.

“Ninguém pede vinte lanches às duas da manhã, só traficante”, me conta o traficante. Não era duas da manhã, mas nove da noite, eu já estava ansioso para ir para casa, terminara as entrevistas tinha mais de uma hora, mas precisava do mototáxi para ir até o ponto de ônibus. O dono do morro me manteve ali, disse que era pra esperar o rapaz deles, o mototaxista de confiança. Ele demorava pois, além de passar na favela vizinha para pegar uma mochila com trinta mil reais em munição que um dos chefões esqueceu na casa de um colega, deveria passar no McDonald’s e pedir os vinte sanduíches, para receber quinze, num cálculo baseado em flerte e blefe — chuta-se alto para ganhar menos e assim receber exatamente o que se espera. Enquanto ele jogava poker de fast food, eu tremia sob o frio de agosto, num dia de temperatura inconsistente — do maçarico ao freezer. Eles fofocavam sobre o Comando Vermelho, falavam de traficante que morreu por trair, de situações em que quase foram mortos por membros do Terceiro Comando Puro do Complexo da Pedreira — que faz divisa com o Chapadão — , de quando moravam perto de uma delegacia, onde o delegado os via diariamente, sem desconfiar de que estava perante chefes do tráfico. Era como se eu não existisse mais. O gravador desligou e fiquei invisível. E o McDonalds chegou. Ameacei subir na garupa e o dono do morro disse: “come, você está há muitas horas sem comer, compramos pra você também”. Sem jeito, deixei o hambúrguer e comi as fritas, tão gordurosas quanto o brócolis do restaurante do Centro.

Minha amiga jornalista leu meu texto sobre Funk Proibidão. Honesto como sou, não poderia deixar de explicar como a dinâmica da boca de fumo influencia as letras dos funkeiros, que não são bandidos, mas amigos destes, como disse Alexandre “Babu”, num episódio do BBB20: “na favela a gente diz: fecho contigo, não fecho com a tua vacilação”. Ela, uma moça da classe média, tal como eu, insistiu que a cena da boca de fumo deveria estar no começo do começo do começo do texto, primeira coisa, urgentíssima: afinal, a maioria dos leitores nunca viu isso. Ainda assim, quando se voa pelas ruas e avenidas das zonas Norte e Oeste do Rio, vê-se apenas subúrbios e favelas, cinza, laranja e marrom. O leitor que nunca viu isso não mora no mesmo Rio que quem convive com isso diariamente; o leitor que nunca viu nem algo parecido é a minoria numérica, é os 10%, o 1%, o 0,1%. Meu texto deveria alimentar o desejo dele por cenas violentas? Deveria satisfazer a curiosidade mórbida e reforçar os estereótipos do que é favela, do que é Rio de Janeiro, do que é Funk? Achei que não. Discutimos pouco, ouvi mais que falei. Refleti sobre as ponderações dela. Refleti por muito tempo antes de publicar a reportagem original. Cheguei à conclusão de que deveria ser fiel ao que acreditava. Funkeiro não é bandido, bandido não é monstro, e só humanos cometem atos monstruosos.

Nesse meio tempo, em outubro, dois meses depois daquele dia, membros do Comando Vermelho do Complexo do Chapadão trocaram tiros madrugada adentro com membros do Terceiro Comando Puro do Complexo da Pedreira. A Faixa de Gaza carioca. Três pessoas morreram e seis ficaram feridas. A guerra se estendeu por mais batalhas. Morrem até hoje. E ainda assim, após comer fritas com os donos do morro, quando desci da moto para o ponto de ônibus, o rapaz, que foi muito educado comigo, pediu que eu mandasse mensagem quando chegasse em casa.

“É muito perigoso aqui no Rio de Janeiro”, me disse.

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Matheus de Moura
N.E.U.R.A. Magazine

Jornalista. Escritor. Neguinho. Catarinense no Rio. Co-criador de: N.E.U.R.A Magazine e Não Há Respostas Quando Morre uma Pobre