Arte: Arthur Muniz

No Rio de Janeiro, a calma é para os cegos

Matheus de Moura
N.E.U.R.A. Magazine
8 min readJun 29, 2020

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Contrafilé, mignon e alcatra polinizavam sal, gordura e acidez no ar da baixo-Gávea, o último reduto da Zona Sul do Rio de Janeiro para artistas e burgueses que não querem se misturar com as caixas da JBL na areia da praia e as câmeras fotográficas oriundas de diferentes regiões do Brasil e do mundo. Lá, restaurantes que cobram o fígado que lida com as proteínas da carne e o álcool da cerveja se amontoam em duas-três ruas de fronte à praça Santos Dumont enquanto a juventude alva transita de um estabelecimento para o outro, terminando a noite numa roda de samba onde as únicas pessoas negras são os próprios sambistas.

Encontrava-me naquele lugar para acompanhar minha mãe, vinda de Florianópolis para meu apartamento em Niterói, onde ficaria entre Natal e Ano-Novo. Atravessamos os 13km da ponte Rio-Niterói porque ela precisava vivenciar um pouco daquele bairro idílico, em que artistas globais, segundo colunas sociais, bebem cerveja, calçam chinelos e dançam um sambinha — como se deuses não fossem. Então, naquela noite de verão, vesti-me decentemente, flutuando pela Grande Rio num latão climatizado.

Curioso: no Rio, se você quiser bater de ombros com um artista, deixando cadernos caírem no chão e os dedos se tocarem num conto de fadas que nunca termina bem, você tem basicamente duas opções: Barra da Tijuca e Gávea; em Floripa, de onde vim, e pra onde vou de tempos em tempos, o equivalente a isso seria Jurerê Internacional, um lugar que me causa ojeriza suficiente para nem passar perto.

Mas aqui este tipo de lugar é o que me resta.

Portando uma mochilinha preta e exalando exaustão da pesada carga horária de fim de ano, Duda, minha noiva, jornalista tal como eu, chegou na Gávea quase concomitante a nós dois. E então estávamos lá, em três, observando o vai-e-vem de gente que não se destacava muito entre si. Mesmo sob luzes amarelas, as peles eram brancas. Aproximei-me de minha mãe e brinquei: “caralho, somos os únicos negros aqui, só a Duda faz parte desse lugar”. Ela me respondeu com o clássico ain, Matheus, deixa de besteira, enquanto Duda nada dizia, absorta no cansaço.

Criado desde pequeno pelo mantra de minha mãe de que eu deveria ter consciência de que sou um rapaz negro, apesar da pele parda, nunca tive aquele momento revelação que uma criança ou adolescente tem ao compreender que, por traços fenotípicos, ascendência africana e cor de pele, receberá um tratamento muito pior do que aquele cuja cor da pele remete a uma parede hospitalar. Porque é assim, um dia você está brincando com os amiguinhos no parquinho, olhando por baixo de saia pela primeira vez, descendo escorregador no que parece ser a velocidade da luz e, de repente, alguém te distingue, joga no palco e liga o holofote unicamente em você, o diferente, e então seus pais, que sempre souberam que esse dia chegaria, têm de explicar que a meio século atrás europeus decidiram que nossos antepassados seriam mercadoria, que assim foi até a abolição, que assim é até hoje. Mas meramente ouvir “você é negro, filho” não cria consciência do que isso significa na prática. Você percebe o real sentido da palavra nas sutilezas e brutalidades cotidianas: quando as namoradas não querem te apresentar pra família, mesmo que isso não tenha sido um problema com os boy que vieram antes e viriam depois; quando os parentes de chamam de moreninho por falta de termo mais confortável; quando seu cabelo é motivo de piada e humilhações nível “parece meu pentelho, haha”; quando você está com sua mãe negra, seu irmão branco mestiçado e seu tio negro voltando da praia, num trânsito moroso e quente, quente como o bafo do diabo, e um policial, claramente sem ter o que fazer, decide parar tudo e apontar uma arma para seu tio, por alguma razão boba, por algum problema relacionado ao carro, algo que surgiu de um olhar suspeito e uma busca pela placa no sistema, e enquanto o cano cinza está ali, apontado, você, você é só uma criança, um menino que nem entendeu que existem papéis no mundo, lugares que sempre lhe serão relegados; é nesses momentos, nessas piadas de amigos, olhadas de policiais, privações de orgulho de sua própria cor, seu próprio cabelo, que você sabe sabe o que é ser negro. A infância embebida em samba, rap e Tim Maia, não basta para preparar. Hei de agradecer minha mãe pelo treino mental, pela consciência, mas o mundo ainda assim nos esmaga. É como perder um ente querido após meses na UTI: você antecipa, mas não se blinda. E com a famigerada questão racial é mais difícil ainda, pois trata-se de um contexto fluído, sempre em evolução. Se vivo, Tim Maia seria considerado ultrapassado para os tempos modernos, em que mais da metade do Brasil se entende preta, e os conceitos sobre raça se popularizam por redes sociais, programas televisivos e jornais — que ao invés de manter a tradição de ter somente dois jornalistas negros para cada cem brancos, agora têm seis para mesma proporação. Tim teria de se atualizar, minha mãe também, em algum momento, eu estava mais incomodado do que quem me educou para me incomodar. Faz parte, somos ambos serem em evolução constante. Mas o ponto não muda: àquela altura da vida, a Gávea já me era intragável.

Indiferente.

Sentamos numa mesa do tradicional Bar e Restaurante Hipódromo, perto da porta de saída. O ar estava vermelho de tanta carne mal passada viajando da cozinha pras mesas. Um homem na faixa dos quarenta, de cabelo curto e óculos redondos, dispôs-se a nos servir. De cara: impaciência com nossa análise do cardápio. Pedimos uma bela e cara porção de carne — qual tipo? já não me lembro mais — , alguns chopes, e uma porção de batata com queijo, sem bacon. Deixamos que a atmosfera nos engolisse.

Com muito esforço, eu tentava relaxar.

A batata chegou rápido. Veio bacon. Comentei com minha mãe que ele havia errado o pedido. Disse então: “Moço, a gente pediu sem bacon, teria como trocar?”.

Ele olhou sobre os óculos e redarguiu: “Come com bacon então”.

Eu não sou de me importar com essas coisas, nem mesmo de reclamar muito — ninguém ali era — , afinal, o homem estava trabalhando num restaurante lotado em fim de ano. Dá um desconto, pensei. O Rio não é conhecido por ter um atendimento afável, ou seja, faz parte, insisti pra mim mesmo. Porém, ao olhar para mesa da frente, cheia de homens brancos, jovens, brilhando ouro, vi aquele mesmo garçom ranzinza mudar para uma posa educada, um sorriso amistoso e uma fala cordial, tratando-os como iguais. Sabia do que se tratava.

Sutilezas.

Disposto a não implodir, deixei passar.

Novamente, com muito esforço, eu tentava relaxar.

Todavia, nas noites do Rio de Janeiro, o relaxamento só é permitido àqueles desprovidos de visão. Um risco cortou a noite pacata. Era um garoto, negro como o próprio céu que nos cobria, pequeno como tudo que deve ser protegido. Escondeu-se entre carros, chorando distante de amigos. Trajava roupas simples, era familiar — se me esforçasse teria lembrado de tê-lo visto vendendo panos de louça. Meu coração parou. Pensei que poderiam ter abusado sexualmente dele ou algo assim; conheço essa parte da Cidade Maravilha e sei com o que ela presenteia suas crianças mais vulneráveis. Levantei da mesa.

Arte: Matheus de Moura

“O que você tem? Mexeram contigo?”

Meneu a cabeça negativamente.

“Que que houve, fala comigo.”

“Minha mãe”, soluçava, com nariz ranhento, “ela disse que se eu não voltar pra casa com 80 reais em venda de pano, ela vai me bater”, concluiu. Disse também que tinha 8 anos e morava no Alemão.

Duda tentou ligar pro conselho tutelar.

Criança não tem que trabalhar, tampouco a quilômetros de casa às 22 horas.

Duda tentou ligar pra outro conselho tutelar, disseram que quem resolveria aquilo era o da Rocinha.

Outro garoto apareceu. Pardo e loiro. Residia ainda mais longe. Ao fundo, transitando pelo parque: uma mulher e outras três crianças, todo mundo com os mesmos panos de louça que o menino agora me oferecia. Os dois garotos conversavam comigo. Pedi que esperassem. Entrei pra falar com minha mãe. Ela mandou chamá-los. Pediríamos uma pizza, quem sabe.

Aproximaram-se da porta, que ladeava nossa mesa.

Num piscar de olhos, o mesmo garçom que com tanto desgosto me atendia agora avançava contra os garotos. Duas mãos, uma nas costas de cada um, empurrando-os para fora. Eles, reclamando, com suas vozes finas e desengonçadas. Duas mãos, uma em cada lado da moldura da porta: o garçom levanta a perna e chuta um dos garotos para a rua, garantindo que não voltem tão cedo.

Eu já estava em pé.

Olho no olho.

Nariz a nariz.

Um palmo de distância.

“Tu vai bater em criança, seu filho da puta?”, gritei.

Dois passos pra trás: ele estava assustado, mas não muito, meu porte não amedronta.

“Eles vivem fazendo isso, não são criança, são uns demônios”, respondeu.

Da janela, os meninos reclamavam: “Ele que sempre faz isso. Ele maltrata a gente, moço.”

“São crianças!”, devolvi ao garçom.

“São criminosos, ontem mesmo tacaram fogo numa menina ali atrás! Vai, fica do lado deles, fica”, mentiu, com o mais puro desprezo, afinal, não se tratava de um homem, mas sim de uma membro vivo do estabelecimento.

Ninguém, absolutamente ninguém tirou os olhos de seus pratos para nos olhar. Era como se estivessem em redomas impenetráveis, a prova de bala, som e miséria.

“Você não vai querer brigar comigo”, continuou o garçom.

Estava certo ele, eu não queria brigar. Se terminasse em polícia, iríamos eu e os garotos pro xadrez. Fiz o mais sensato e saí do restaurante.

Duda tentou ligar pra PMERJ — embora soubéssemos que polícia não ajuda ninguém.

Silêncio.

A mulher voltou com as três crianças. Olhar furioso. Os dois garotos ao meu lado.

“Ele”, apontando pro garçom, transitando pelo interior do restaurante, “chutou a gente e nos xingou”, relatou o garoto loiro.

Ela me olhou com ainda mais raiva e perguntou: “Você não fez nada?”.

O menino se posicionou entre nós dois: ela, furiosa, eu, sem palavras, ainda febrio da situação.

“Ele nos defendeu. Segurou ele pela camisa”, imitava o movimento no ar, “e disse: ‘Você não vai bater neles’.”

“É bom mesmo”, ela disse, mais calma.

Os dois garotos sorriram, desaparecendo junto ao bando, todos com seus panos de louça pendurados nos braços.

Eu fiquei na praça.

Incapaz de acionar qualquer autoridade, a única coisa que consegui dar aos meninos foi o sinal de que alguém se importava. Quando essa ficha caiu, desabei.

O que começou com um garoto negro chorando, terminou com um homem negro chorando.

Nessa noite, eu tive certeza de que cedo ou tarde eu teria de sair do Rio de Janeiro.

Certas noites começam num coquetel de odores e terminam em emoção pura e crua.

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Matheus de Moura
N.E.U.R.A. Magazine

Jornalista. Escritor. Neguinho. Catarinense no Rio. Co-criador de: N.E.U.R.A Magazine e Não Há Respostas Quando Morre uma Pobre