Arte: Matheus de Moura

O batidão que faz o catarinense rebolar

No Sul do Brasil, o Megafunk expande os limites entre o batidão e o eletrônico, disputando por espaço com o Brega e o 150 na cena nacional.

Maria Helena de Pinho
N.E.U.R.A. Magazine
10 min readMar 28, 2020

--

Pelas ruas das cidades da Grande Florianópolis, os graves sobressalentes da repetitiva batida TUM TUM TUM tunts tunts TUM TUM TUM tunts tunts TUM TUM invadem de supetão todos os cômodos das casas e apartamentos e vão se distanciando em segundos, até não serem mais ouvidos por quem está parado no mesmo lugar. Às vezes como uma súbita centelha de vida correndo junto aos faróis nas madrugadas mal iluminadas dos bairros periféricos ou logo de manhãzinha, quando os moradores se dirigem aos seus trabalhos e escolas: a mesma cena se repete em looping ao longo dos dias com os veículos que passam pelas ruas. Quem não tem um carro, mas tem uma bicicleta e uma caixa JBL com cordinha para o pescoço, basta abrir o Youtube, digitar “mega funk” e escolher entre o catálogo ilustrado por mulheres, carros rebaixados e até mesmo máquinas agrícolas para ouvir e também sair propagando a inconfundível batida litorânea nascida no Sul do Brasil.

Não se tem um registro exato de como, quando e com quem surgiu o primeiro mega funk, mas o estilo deriva de outro também da região Sul: o eletrofunk, que estourou nos início dos anos 2010 e, como o próprio nome indica, mistura elementos da música eletrônica e do funk carioca. Nacionalmente, o eletrofunk se difundiu com o artista brasiliense Edy Lemond e os MCs do Paraná Mayara e Siri, estrelas de clipes com produção de baixo custo e que frequentemente incluíam carros de paredão de som automotivo, muitos passinhos — não apenas humanos como inclusive de uma avestruz — e letras bem humoradas que caíram nas graças da internet.

O mega funk, mais popular em Santa Catarina, se diferencia do gênero irmão principalmente pela forma de mixagem: enquanto o eletro é mixado do começo ao fim, como uma única música, o mega tem suas contagiantes batidas marcadas apenas a partir do refrão. São sets que, em geral, têm entre três e vinte minutos de duração, podendo ter vários refrões vindos de samples dos estilos musicais mais variados possíveis. Assim, além da mistura de funk e eletrônico na própria batida, o mega ainda pode incorporar mais gêneros e também se desdobra em mega sertanejo, mega pagode e até mega “gaitaço”. Este último, criado pelo DJ João Vitor, de Blumenau (SC), e ilustrado no Youtube por imagens de tratores tunados e cenas pacatas do nascer e pôr do sol em propriedades rurais, recebe esse nome pois se utiliza de músicas das tradicionais bandinhas de baile do Sul, como Banda San Marino e Musical JM, e canções de ritmos gauchescos, entrecortadas pela voz de um locutor soltando bordões como “Eia, eia, eia, chicoteia as feia”. O primeiro dos sete vídeos lançados por João Vitor já bate quase 1 milhão e meio de visualizações no Youtube.

Num galpão industrial do bairro Pedra Branca, localizado em Palhoça (SC), município da região metropolitana de Florianópolis, aglutinam-se homens com cabelos cortados na régua, trajando camisetas, bonés e tênis da moda streetwear, cercados por paredes grafitadas com desenhos coloridos e abstratos. Luzes brancas e vermelhas de neon seguem o fluxo da arte urbana e dão um tom mais underground à iluminação. As mulheres, que compõem maioria, também não variam muito no visual: shorts e saias jeans de cintura alta, blusas cropped, bolsinhas laterais e tênis All Star ou Vans Old Skool; há também os saltos altos, junto a maquiagens super produzidas com olhos emoldurados por pesados cílios postiços.

Minutos antes das 22h, a casa está cheia de jovens e adultos concentrados na difícil tarefa de embrazar sem deixar cair o copo de bebida em uma das mãos e a mangueira do narguilé na outra.

No comecinho da noite, entretanto, o rapaz de olhos claros em cima da plataforma central da casa noturna, sob grandes cubos suspensos de arestas iluminadas, já exercia seu papel de DJ e se balançava, concentrado nas músicas, independentemente de quantas pessoas estavam ao redor. Com 22 anos, Mateus Heiderscheid se recorda da criança encantada com as músicas do David Guetta apresentadas pelo tio, dono de uma coleção de enormes prateleiras cujos CDs de música eletrônica saltavam aos olhos e ouvidos do pequeno. Aos 16, o palhocense resolveu seguir sua paixão e passou a assinar pelo nome artístico Heider, tocando em sociais de amigos, festas de garagem, aniversários, formaturas e onde quer que fosse chamado, passando por muitos perrengues até chegar na rotina das casas noturnas, em que traz às caixas um pouco de tudo — inclusive aquela batidinha que o catarinense adora: o mega funk.

O Social Spot Bar é uma das casas noturnas da Grande Florianópolis onde Heider e outros DJs levam o mega funk aos ouvidos aguçados e aos corpos rebolantes de seus frequentadores. Dentro do estabelecimento, em um mezanino decorado com colagens, grafites, pixos, plantas, grades e neons coloridos à la Pinterest, localiza-se também o Galo Smoke Art, um lounge de narguilé, artefato indispensável nas festas do gênero. Em março, a balada completa um ano de existência. De quinta a domingo, recebe um público estimado de 650 a 800 pessoas por noite em festas de diversos estilos musicais, sendo sertanejo e pagode os principais, mas sempre com um espaço garantido para o mega funk na playlist.

O mega funk foi introduzido na casa pelo DJ Gabardo, de 24 anos, que já tocava o gênero em festas universitárias da Grande Florianópolis. Natural de Curitiba, ele conta que toca instrumentos desde os quatro anos de idade, ensinado pela avó, e que cresceu no meio da música eletrônica por influência da mãe, baladeira assídua. Sua primeira experimentação com o mega funk foi na festa Apocalipse, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), intercalando funks e músicas eletrônicas até soltar as duas batidas juntas, para a surpresa do público e dele próprio, que ainda não era adepto ao estilo. Tanto Gabardo quanto Heider produzem sets de mega e publicam nas plataformas digitais — no Spotify, em formato de podcast, devido a restrições com direitos autorais de samples. Além do mega funk, Heider produz funk rave, outro estilo advindo da fusão do eletrônico com o funk, e também a versão mais moderna do gênero carioca, o 150 BPM, ambos surgidos nos bailes de favela da capital fluminense.

A Fiorino é um furgão muito utilizado no Brasil para o transporte e entrega de pequenas cargas. As duas portas traseiras da Fiorino de Alex Luiz Krautz, no entanto, revelavam uma bagagem bem pesada e barulhenta: alto falantes de cima a baixo, criando uma parede de círculos que traziam o mega funk para a trilha sonora de festas e competições. Dono de uma loja de equipamentos para som automotivo no bairro Aririú, em Palhoça, Alex resolveu equipar a Fiorino para começar a fazer suas próprias festas de mega funk e participar de competições de som. Com o tempo, foi deixando a loja de lado e focando na produção de eventos de mega e de música eletrônica. Hoje, aos 29 anos, com oito de experiência em festas, é sócio majoritário da Vulks Lounge, casa noturna em uma área industrial do bairro Rio Grande, também em Palhoça.

Não ter vizinhos no galpão fundo que fica de frente para um terreno baldio é uma grande vantagem em estabelecimentos como esse. Inaugurado em setembro de 2019, o local é uma construção de teto alto com uma linha de exaustores no centro, por onde entra luz natural durante o dia, e treliças de metal aparentes que servem de suporte para a iluminação. Na entrada, há um grande espelho retangular com moldura de arabescos dourados, em frente a duas cabeças salientes de Buda que ladeiam o letreiro com o nome da casa na parede por trás de um balcão preto de MDF. As paredes negras são decoradas por grafites e desenhos, dentre eles asas esfumaçadas de um anjo e as de um demônio — cenários para fotos instagramáveis — e o do personagem Homer Simpson sentado em uma poltrona enquanto faz círculos de fumaça com um narguilé. Assim como em outros lounges da Grande Florianópolis, o artefato é um dos grandes atrativos da casa, que aluga os narguilés por sessões de 1h e possui diversas mesas de madeira e barris de metal em preto e vermelho ao redor dos quais os fumantes se reúnem.

É esse o cenário que recebe em Palhoça o Bailinho da Rebeska — um dos maiores bailes de mega funk de Santa Catarina, que acontece em diversas cidades, levando o estilo também para o interior e o extremo oeste. Alex considera que as estrelas da noite não são os DJs, mas, sim, os carros que são posicionados ao lado do palco e atraem os apaixonados pelo som automotivo. Nos dias de bailinho, a Vulks recebe um público mais variado que o normal da casa, pois muitas pessoas vêm de localidades mais distantes para curtir a festa, já que os eventos de som automotivo têm sido mais escassos.

Em Santa Catarina, principalmente na região do Vale do Itajaí, é muito forte a cultura do som automotivo e dos carros rebaixados, modificados ao gosto dos motoristas. São populares itens como faróis de xenon, luzes neon, pneus de aros coloridos e, claro, módulos amplificadores e alto falantes potentes preenchendo porta malas e caçambas inteiras, por vezes seguindo expansão para os famosos paredões. Mas, em 21 de outubro de 2016, o Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN) publicou a resolução 624/2016, que proíbe “a utilização, em veículos de qualquer espécie, de equipamento que produza som audível pelo lado externo, independentemente do volume ou frequência, que perturbe o sossego público, nas vias terrestres abertas à circulação”. Os veículos de competição excetuam-se da regra apenas em locais definidos mediante autorização, o que impede a realização de fluxos nas ruas e coloca sob risco de multa carros em circulação com som alto e eventos em locais tanto públicos quanto privados.

A solução encontrada para continuar curtindo o som sem a polícia azedar o rolê virou uma tendência que está se expandindo por todo o estado: levar o mega funk (e os carros) para casas noturnas, como a Vulks Lounge e o Social Spot Bar.

Há quem acredite, como Alex Krautz, que a razão para o início do mega funk foram as próprias competições de som automotivo, responsáveis pela difusão inicial do estilo, pois os graves das bases eletrônicas destacam mais a potência dos alto falantes do que o funk carioca tradicional. No entanto, apenas as batidas isoladas de subgêneros da música eletrônica não eram tão envolventes quanto o funk que arrastava os bailes, festas e paradas de sucesso brasileiras nos anos 2010. Foi nessa época que MCs, DJs e produtores de fora do Rio de Janeiro, o berço do funk no Brasil, começaram a atingir projeção nacional e outros subgêneros foram surgindo fora da região Sudeste, como o brega funk de Recife (PE) — o qual só explodiu país afora a partir de 2018 e hoje é o que mais estrala por aí nas caixinhas de som e nas ruas, não só no Carnaval como em qualquer outra época do ano.

No Sul, juntar os decibéis colossais com as letras provocativas e empolgantes do funk não teve erro ao garantir a diversão e o êxtase da galera. Além das ruas e dos bailes, as redes sociais abrem espaço para a popularização do mega funk, que ainda carece de presença midiática. Aos 19 anos, o jovem Matheus Vieira, de Navegantes, município litorâneo vizinho de Itajaí, é responsável pelo principal canal de divulgação de eventos e lançamentos de mega funk e de produção de memes e vídeos relacionados à cultura que envolve o estilo. O Mega Funk SC teve início em maio de 2019 e, até o fechamento desta reportagem, contava com 45,9 mil seguidores no Facebook, 8,2 mil no Twitter e 21,6 mil no Instagram, além de um site próprio. O humor é também uma peça importante de engajamento no mega, da qual muitos DJs se utilizam para compor seus sons, passando por memes da internet, frases debochadas e áudios com o sotaque característico do litoral catarinense.

Entretanto, mesmo com a crescente popularidade e expansão, o mega funk ainda é muito regional. Tanto Matheus quanto os DJs e donos de casas de shows apontam que a discriminação ao estilo é muito grande. Em parte, pelo estranhamento de quem ainda não está familiarizado com a mistura e também ainda pesa o preconceito com as origens no som automotivo e com os participantes dessa cultura. Apesar disso, quem está inserido nesse meio enxerga com otimismo o futuro do mega funk, que tem conquistado mais espaço com a ida para os bailes e festas e a profissionalização dos DJs e produtores. A versatilidade das batidas para a mescla com múltiplos gêneros musicais também é capaz de agregar uma diversidade maior de público. Com a hegemonia sudestina quebrada pelo brega funk, o primo nordestino do mega, aumentam as chances do gênero catarinense cair no gosto popular e se propagar Brasil afora. É mais uma das promessas entre as novas experimentações periféricas na música brasileira. O mega funk, como diz uma expressão popular entre seus ouvintes litorâneos, ainda “vai dar o demonho”.

--

--

Maria Helena de Pinho
N.E.U.R.A. Magazine

Jornalista graduada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).