Arte: Arthur Muniz

Precisamos de Mártires Negros

Matheus de Moura
N.E.U.R.A. Magazine
10 min readJul 11, 2020

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O ensaio que você está prestes a ler é provocativo do título à última linha. Uma proposta tão negra quanto radical, capaz de chocar mesmo hoje em dia — o que te faz pensar em como deve ter sido a recepção quando lançada originalmente, em 1944. Estamos falando de uma proposição de comunismo preto exposta décadas antes do sucesso das ideias de Angela Davis e da perpetuação da mitologia e iconografia dos Panteras Negras.

Este texto é de difícil acesso na internet, da mesma forma que o autor, Chester Himes, passa despercebido pelo público brasileiro. Por isso, trago-o como inédito, fruto de uma tradução feita por mim, um homem negro, ilustrada por uma arte direto da mente criativa de Arthur Muniz, outro irmão de cor. Vale dizer que trabalhamos carinhosamente neste ensaio não por acharmos que tudo que nele está escrito é perfeito e atualíssimo, longe disso — é uma obra de quase 80 anos, afinal. Aqui nos dedicamos simplesmente por crer que muito há de se absorver dessa mente brilhante; por entender que tal ideia pode e deve ressoar com o período que passamos: fatal para nós, negros, e instável para todos que vivem sob a bandeira de uma nação em ascensão fascista.

Sintam-se livres para discordar das ideias de Himes. O mais importante é que elas cheguem aos olhos dos pretinhos brasileiros, que elas suscitem novos debates ou mesmo reacendam antigos.

Boa leitura.

PRECISAMOS DE MÁRTIRES NEGROS

Por Chester Himes

Tradução: Matheus de Moura

Mártires são necessários para criar incidentes. Incidentes são necessários para criar revoluções. Revoluções são necessárias para gerar progresso.

Essas são as estratégias inventadas pelas pessoas deste mundo que desejam liberdade. Ninguém nega que estas são as melhores estratégias para alcançar esse fim; já está provado que essa é a única forma de se atingir esse objetivo.

Os colonos americanos não foram os primeiros a reconhecer a singularidade dessas estratégias, mas foram os primeiros a utilizarem delas eficientemente para o bem de um grande número de pessoas. Desde a Revolução Americana, esse é o ABC do avanço político mundo afora. As primeiras e fundamentais convicções que um estrategista político lutando pelos direitos humanos do povo deve ter são: (1) Progresso só pode ser erigido pela revolução; (2) Revoluções só são possíveis a partir de incidentes; (3) Incidentes só poderão ser criados por meio de mártires.

De todos os grupos de povos do mundo que são hoje oprimidos racialmente, religiosamente e politicamente, os 13 milhões de Negros americanos formam o único grupo que, de uma forma ou de outra, ainda não empregou essas estratégias em busca de igualdade democrática. E isso é uma das situações mais estranhas na história. Nenhum acadêmico sério e imparcial negará que o Negro americano tem sido o grupo minoritário mais oprimido no mundo pelos últimos 323 anos. Mais ainda, nenhum político inteligente irá negar que não há outra forma pela qual o Negro americano pode libertar-se da opressão.

Deixe-nos desenhar o que a Revolução Negra será e o que ela fará.

Primeiro, eu devo pontuar as formas pelas quais todos os povos podem existir. Só há três:

  1. Aquela em que todo mundo é livre. Atualmente, cidadãos do estado socialista da URSS, de ordem comunista, foram os que chegaram mais perto deste objetivo. Entretanto, não importa se a estrutura é comunista, socialista ou democrática; essa é a mais preferível forma de existência para a maioria dos povos do mundo.
  2. Aquela em que uma classe ou raça dominante é livre. Este é o ponto até onde os cidadãos estadunidenses e britânicos avançaram. Na superfície, isso pode soar preferível para a classe ou raça dominante. Mas é uma falácia, pois não se trata de um estágio fixo de existência, mas um pivô de mudança. A classe ou raça dominante deverá dividir a liberdade com todo mundo, para que possa preservá-la; ou deverá desistir desta.
  3. Aquela em que ninguém é livre. Podemos dizer que isso compreende ditaduras e nações imperialistas, especialmente se essas forem as nossas inimigas do momento. É de compreensão geral que menos de um por cento da população mundial preferiria essa forma de existência; então nós podemos defender o ponto de que ninguém preferiria isso realmente.

OBJETIVO DA REVOLUÇÃO

Só há como existir apenas um (repito: apenas um) objetivo da revolução dos Negros americanos. Isto é, a execução da Constituição dos Estados Unidos. Até o momento desta escrita, não há nenhuma forma de existência superior àquela descrita na Constituição. Portanto, Negros Americanos não poderão se revoltar por nenhuma outra razão. Isso é o que uma Revolução dos Negros Americanos será: Uma revolução por uma minoria racial que luta pela aplicação das leis democráticas já existentes.

O que a revolução por Negros Americanos fará:

I. Destronar o governo atual e criar um estado comunista. Uma organização comunista de imensas proporções já existe nesta nação.

‘Eu, portanto, defino’, escreveu Engels, ‘os objetivos dos comunistas da seguinte forma:

  1. Alcançar os interesses do proletariado, em oposição aos dos burgueses;
  2. Fazê-lo por meio da abolição da propriedade privada, substituindo-a pelos bens comuns;
  3. Reconhecer que não há outras formas de alcançar estes objetivos que não seja por uma revolução democrática por força.’

É óbvio que o Partido Comunista da América tentará dirigir qualquer revolução, seja pelos Negros Americanos ou qualquer outro grupo a alcançar esses objetivos. É igualmente óbvio que em qualquer nação onde um grande número de pessoas são oprimidas, os Comunistas tem boas chances de sucesso.

II. Destronar o governo atual e criar uma ditadura.

A primeira reação das pessoas que se esforçam para sustentar a existência da supremacia branca em toda sua vicissitude destrutiva será supressão desta revolução com o máximo de violência e o mínimo de misericórdia. Muitos negros serão baleados. Tantos outros serão presos. Os restantes serão literalmente escravizados. Isso, se essa gente for bem sucedida.

Mas o que há de ser mais temido no histórico progresso da raça humano é: No pivô da mudança em que nos encontramos agora, nós deixaremos de avançar para ir pra trás. Lei, ordem e decência, todos princípios democráticos que até agora desenvolvemos nesta nação serão destruídos. A raça branca se tornará barbárica. As raças escuras, escravizadas.

Quando povos se tornam bárbaros, eles não podem mais governar a si mesmos. Eles apenas respeitam. O mais forte, mais mortífero, mais vicioso, mais astuto, mais assassino se tornará o líder. E ele governará enquanto for temido.

III. Talvez, se bem, sucedido e force a execução da Constituição, da igualdade democrática e a aceitação de uma existência democrática para todos os cidadãos desta nação.

Para isso acontecer, será necessário que a maioria das pessoas dos Estados Unidos acredite na democracia e se junte a nós na instauração desta. Neste caso, a Revolução Negra deixará de ser uma revolução para se tornar um movimento dos povos, que eliminará injustiças, desigualdades e violações de nossas leis. As pessoas que poderiam impedir o povo de assim agir se tornariam rebeldes, traidores, secessionistas, e com elas lidaríamos de acordo.

Se a maior parte das pessoas dos Estados Unidos não acreditar na democracia como sendo a melhor forma de existência, nós nunca alcançaremos qualquer forma de igualdade democrática. Então somos forçados a começar nossa reflexão por aqui; não há nenhum outro ponto pelo qual começar.

MÁRTIRES SÃO NECESSÁRIOS

A esta altura, Negros martirizados se fazem necessários. O mártir criará incidentes que mobilizarão forças de justiça e carregarão-nos adiante, do pivô da mudança para um meio de existência em que todos são livres.

É óbvio que não podemos ficar aqui; temos de ir a algum lugar. Se não pudermos concordar em seguir a frente, retrocederemos contra nossa própria vontade.

O primeiro passo para trás são as revoltas. Revoltas não são revoluções. No sentido mais apropriado, revoluções são a renúncia do mal existente nos governos por seus governados. Revoluções não necessariamente são feitas pela força de armas. Elas podem ser bem sucedidas pela manifestação da vontade do povo. No acontecimento de uma Revolução do Negro americano, espera-se que não ocorra nenhuma troca de tiros.

Revoltas são distúrbios tumultuosos da paz pública por reuniões ilícitas de três ou mais pessoas na execução de objetos privados — tais como ódio racial. Não importa quem desferiu o primeiro golpe ou deu o primeiro tiro, revoltas entre brancos e negros ocorrem por apenas uma razão: Negros americanos estão plenamente convencidos de que não têm acesso a proteção física que não venha deles mesmos. E é um fato bem conhecido e estabelecido que essa certeza está enraizada na história: Negros de fato não têm proteção contra violência física infligida por brancos se não for por aquela que eles provêm para si mesmos.

Tornou-se uma piada mortífera entre os Negros (especialmente depois das revoltas de Detroit), que a primeira coisa a se fazer no caso de uma revolta motivada por raça é chamar a polícia para atirar neles … ‘Mano, que que cê quer dizer com ligar pra polícia; o povo vai te matar…’

Cidadãos brancos que creem na democracia (e cidadãos brancos que não creem em democracia mas são contra revoltas raciais) podem parar revoltas raciais a qualquer momento, basta aparecerem na cena e demonstrarem desaprovação aos brancos engajados na revolta. A razão para isso é óbvia: brancos que engajam e incitam revoltas raciais podem até ser uma minoria, mas eles estão convencidos de que a maioria dos brancos os apoia moralmente. Como consequência, a maior parte dos Negros Americanos têm clareza de que os cidadãos brancos que ficam em casa e se mantêm quietos durante as revoltas são tão moralmente culpados quanto os que pestanejam e atiram com suas armas.

Mártires negros são necessários para atrair esses cidadãos brancos que creem na democracia mas ficam em casa e inspirá-los a lutar pelo que acreditam.

Arte: Matheus de Moura

MÁRTIRES SÃO RAROS

É necessário que tal Negro martirizado seja uma pessoa íntegra, que ame a liberdade a ponto de fazer qualquer sacrifício para atingi-la. Preferencialmente, ele deveria ser uma liderança Negra, uma pessoa razoavelmente inteligente para os padrões aceitáveis, uma que seja bem conhecido por americanos Negros e brancos, que não possa ser ignorado pela mídia Negra ou branca detentora da disseminação de notícias. Ele deve ser um negro que não irá se render, nem temerá envergonhar seus amigos progressistas brancos que acreditem piamente na ‘adaptação’ ou na ‘evolução’ como sendo a melhor política para os Negros seguirem. E, claro, ele deve ser um Negro que não irá se vender. Sendo assim, devemos ficar de olhos abertos.

Ele deve receber um firme apoio da classe média Negra, pois não há liderança Negra sólida que seja apoiada pela classe baixa Negra. Não somente ele deve ser apoiado por esse grupo, como deve também ser identificado com eles, para que se torne impossível abandonarem-no.

É evidente que a classe média Negra deve estar a frente de qualquer revolução do Negro americano, então isto deve estar claro em nossas mentes e futuras reflexões devem ir além disso. A classe média Negra deve aceitar a responsabilidade de uma bem sucedida tentativa Negra por igualdade democrática.

Assim sendo, é especialmente importante que membros desse grupo saibam reconhecer igualdade democrática quanto essa for alcançada, não confundindo-a com aceitação social por membros de outros grupos ou raças. Nós não atingimos igualdade curtindo finais de semana com nossos amigos brancos e nos embriagando com a bebida deles ou flertando com suas esposas. Na verdade, muitos de nós, Negros americanos, desejamos manter o direito de escolher nossas amantes e quem frequenta nossas casas tanto quanto o branco americano.

O incidente, claro, deve ser uma negação dos direitos garantidos a todos os cidadãos estadunidenses pela Constituição, tais como o direito de qualquer pessoa decente e honesta de viver onde escolher ou o direito de um cidadão votar ou participar de um júri popular. Incidentes como uma acusação injusta de estupro não servem a nenhum propósito senão agitar ou inflamar, além de não fixar nenhum precedente construtivo para o progresso.

O mártir deve se posicionar e se recusar a se render. O Negro da classe média deve surgir para prestar assistência, também se recusando a se render, e deve influenciar o Negro das classes baixas a segui-los.

O que é de maior importância é o posicionamento. Todos nós, Negros americanos, devemos nos posicionar. E depois de feito isso, nós não poderemos nos render em momento algum. Não devemos ceder nem um respiro. Afinal, não temos o que perder, exceto nossas vidas, e uma mudança preferível a conquistar: igualdade democrática.

‘Precisamos de Mártires Negros’ foi publicado originalmente na revista The Crises (Maio de 1944), 159–174.

Esta tradução, tal como a reprodução do texto, não têm fim lucrativo, visando somente amplificar o alcance do texto de Himes.

Sobre o Autor

Pai da literatura de crime negra dos Estados Unidos, Chester Himes nunca deslanchou nas livrarias brasileiras. Na verdade, pode-se dizer que ele foi relegado ao oblívio em sua própria cultura, a qual ajudou a formatar ao dar cara e voz ao famoso bairro do Harlem, ou, como visto aqui, ao desenhar caminhos revolucionários para os negros da América.

Nascido em 1909, Himes começou a escrever ficção entre 1929 e 1936, durante sua estadia na Penitenciária Estadual de Ohio — assalto a mão armada. Começou com contos que não falharam em encontrar aclamação crítica, sendo publicados em revistas de renome, como Esquire, para então, em 1945, iniciar no mundo dos romances com o cáustico e indigesto If He Hollers, Let Him Go!, e de lá seguir com a série literária que lhe consagrou como um dos Grandes do gênero: Detetives do Harlem, que conta a história de Coffin Ed Johnsson e Gravedigger Jones, policiais negros no caótico gueto do Harlem.

Himes mudou-se para Europa ainda na década de 1950. Morou por anos em Paris, onde casou-se com a jornalista Lesley Packard, fez amizade com intelectuais negros contemporâneos, dentre eles James Baldwin, e foi devidamente valorizado por sua obra, ganhando alguns dos principais prêmios de literatura do continente europeu. Ao fim da década de 1960, mudou-se para Espanha, onde faleceu em 1984, por decorrência do Mal de Parkinson.

Além de escritor prolífico, Himes, que chegou a ser roteirista na Warner, mas foi demitido por Jack L. Warner — um racista inveterado — era também um intelectual de ideias incendiárias, um marxista convicto, um revolucionário negro, mais ainda, um revolucionário negro em plena Segunda Guerra Mundial, quando a imagem de um EUA unificado e apaziguado era imposta sob a indústria cultural em prol da luta contra a ascensão fascista do Velho Mundo. Seus textos influenciaram autores de sua geração e além direta e indiretamente.

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Matheus de Moura
N.E.U.R.A. Magazine

Jornalista. Escritor. Neguinho. Catarinense no Rio. Co-criador de: N.E.U.R.A Magazine e Não Há Respostas Quando Morre uma Pobre