Classroom of the Elite: A meritocracia presente nas universidades

Relacionando o sistema educacional meritocrático do anime com possíveis comportamentos dos estudantes universitários

Marcos Oliveira
Na Beira do Abismo
8 min readNov 20, 2017

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Alguns personagens das turmas 1-D, 1-C, 1-B e 1-A do anime Youkoso Jitsuryoku Shijou Shugi no Kyoushitsu. Crédito: Facebook Fan Page.

Tínhamos planejado inaugurar a publicação Na Beira do Abismo falando um pouco sobre nós, idealizadores, e qual nosso objetivo, porém, por causa de forças maiores de atração animalesca, o primeiro texto é sobre um anime e sua possível semelhança com o ambiente acadêmico superior, principalmente.

Youkoso Jitsuryoku Shijou Shugi no Kyoushitsu, que daqui em diante chamarei carinhosamente de Classroom of the Elite (seu título em inglês), é um anime que retrata o melhor colégio governamental do Japão e seu sistema baseado no mérito. Esse colégio é reconhecido e requisitado porque seus estudantes graduados possuem 100% de chance de encontrarem emprego e ingressarem em Universidades. Os estudantes ingressantes são selecionados por meio de um vestibular e, após a aprovação, não podem mais manter contato com o mundo exterior ao colégio sem uma ótima justificativa.

Ao ingressarem, todos os estudantes ganham 100,000 class points (cp) e são designados para suas respectivas salas de aula, que variam de A a D. Os critérios de ingresso ou de designação não são revelados, mas o sistema permite que os estudantes da sala D consigam mudar para as salas C, B ou A. É importante dizer que o anime ressalta que os estudantes designados a sala D possuem, aparentemente, algum problema grave, que é revelado gradualmente em alguns personagens. O interessante é a semelhança desse colégio com o nosso ensino médio, que tem o período de três anos seriados, com a diferença de que o professor designado para a turma do primeiro ano continuar responsável pela turma até o último ano. Ou seja, não há troca de professor se o estudante não ter mérito ou desmérito suficiente para “subir” ou “descer” de sala.

No início do anime, é dito pela professora que todo dia 1 de cada mês os estudantes ganhariam mais class points. O colégio possui seu próprio sistema comercial e pode-se comprar praticamente tudo, tudo mesmo, com class points. Cada class points equivale a um iene (moeda japonesa), logo, os estudantes imaginaram que ganhariam 100,000 ienes mensalmente para gastarem como desejarem. Consequentemente, a maioria gastou quase ou todo seu dinheiro com roupas, jogos e outros tipos de entretenimento, não prestavam atenção e dormiam durante a aula. No mês seguinte, quando saiu o levantamento dos class points, os estudantes foram surpreendidos com um total de 0cp. O tumulto entre os estudantes foi inevitável, então a professora fez um discurso os menosprezando e dizendo que os class points não eram fixos, mas sim baseados num tipo de avaliação meritocrática (também não é revelado quais são os critérios) feita diariamente, e que os class points de cada mês seria baseado no mérito e comportamento de todos da turma.

Parte do discurso da professora Sae Chabashira sobre o 0cp, dizendo: “O que significa que todos vocês não valem nada”. Crédito: Anime Feminist.

Com base nessa introdução e para evitar spoiler, eu gostaria de relacionar algumas semelhanças desse sistema meritocrático e o comportamento de alguns personagens com o nosso sistema de ensino superior atual e traçar possíveis perfis de estudantes universitários. Devo ressaltar que o anime foca na sala 1-D (primeiro ano D) e em três personagens principais: Kiyotaka Ayanokouji, Suzune Horikita e Kikyou Kushida.

Por mais que me atraia a visão de que não somos uma (ou várias) nota(s), na prática, não é isso o que acontece. Somos uma nota para passar nas disciplinas, ingressar no ensino superior, provar proficiência, ser selecionado em um edital para bolsas ou em praticamente tudo que envolva oportunidades e benefícios na nossa sociedade. Muitas vezes somos resumidos em notas, números, rankings, habilidades, aquisições ou experiências. Não acho que isso seria essencialmente um problema se todos nós tivéssemos as mesmas oportunidades e, mais importante, as mesmas influências. Mas, novamente, não é isso o que acontece em nossa sociedade globalmente desigual.

Atualmente, as oportunidades não são dispostas em pé de equidade. Não adianta oferecer as mesmas oportunidades para pessoas extremamente diferentes. E esse é um dos problemas principais da meritocracia: ela considera apenas características superficiais atuais e ignora aspectos importantes que impactam direta ou indiretamente os objetivos e resultados dessa referida oportunidade.

Peguemos, por exemplo, dois estudantes que tiraram 5 e 9 em uma avaliação de matemática. Poderíamos afirmar que o estudante que tirou 9 é mais merecedor que o estudante que tirou 5, caso estejam em condições exatamente iguais, não pelas provas serem iguais. Mas e se o estudante que tirou 5 trabalha em período integral e tem pouco tempo de estudo e imensa dificuldade em matemática, ou se o estudante que tirou 9 fez cursinho pré-vestibular meses antes? E se o estudante que tirou 9 mora em outra cidade e precisa viajar durante 2 horas (para ir e voltar), ou se o estudante que tirou 5 for podre de rico? E se o aluno que tirou 5 aprendeu o conceito de conservação de quantidade de movimento e leu dois livros nesse meio tempo e o estudante que tirou 9 não aprendeu nada além da matemática? São muitos “e se…”.

Como é possível analisar o mérito de cada um, de forma coerente e justa, sem considerar essas outras características, aprendizagens e feitos? Não me parece correto. Que fique claro: não estou tentando justificar ou relativizar o baixo desempenho dos estudantes, mas sim defendendo que é incoerente e injusto falar em mérito quando estamos analisando apenas uma característica entre dois ou mais indivíduos resultantes de uma desencadeação de oportunidades e influências totalmente diferentes!

Como consequência, não apenas da meritocracia presente na universidade, mas também de outros aspectos que podem ser abordados posteriormente, podemos traçar vários possíveis perfis de estudantes. A personagem Airi Sakura, por exemplo, anda de cabeça baixa, tem dificuldade em conversar com os colegas de turma e tenta esconder sua real personalidade.

Talvez essas não sejam uma características específicas do ambiente universitário, e sim uma consequência da convivência em grupo, porém, é nítida a presença de estudantes assim na universidade. De forma geral, podemos afirmar que eles possuem medo. Medo de não serem aceitos, medo de dizer algo “inapropriado”, medo de serem insuficientes, medo de decepcionar a si próprio. A máscara usada por esse tipo de estudante é utilizada para viver numa realidade alternativa e minimizar os danos causados pelo possível fracasso.

Personagem Airi “Shizuku” Sakura. Crédito: MyAnimeList.

Rokusuke Kouenji, personagem da turma 1-D, provavelmente é o tipo de estudante mais presente no âmbito universitário: o inteligentinho. Kouenji se acha o mais bonito, gostoso e inteligente de todos. Se recusa a socializar com os outros estudantes, sempre está sozinho e não se importa com ninguém além de si mesmo. Suas falas são repletas de menosprezo alheio, auto-promoção e egoísmo. Geralmente, o estudante que manifesta esse tipo de perfil é aquele que tira boas notas, com ou sem muito esforço, não possui reprovações e (quase) sempre consegue ser selecionado pelas oportunidades que exigem “mérito”.

Gostaria de destacar apenas um aspecto que acredito ser o mais nocivo nesse tipo de estudante: o menosprezo alheio. O ambiente universitário, no geral, está o tempo inteiro te botando para baixo (não intencionalmente) e fazendo você se sentir insuficiente, e esses estudantes, que poderiam te ajudar a passar por isso, só pioram o processo com falas e atitudes que menosprezam e inferiorizam mais você, aos olhos do sistema. Além disso, muitas vezes são interações como essas que levam os estudantes a se inibirem como a Sakura.

Se me permite dar uma dica, afaste-se o mais rápido possível de estudantes assim. Deixe que eles subam suas escadas meritocráticas sem usar você e seu emocional como degraus. Caso precise de ajuda com as disciplinas, procure o pessoal que tem facilidade e não te chama de burro por não saber algo, assim as chances de se sentir insuficiente são menores, além de possivelmente conseguir aprender mais rápido e melhor.

Personagem Rokusuke Kouenji. Crédito: MyAnimeList.

Um dos personagens principal, Kiyotaka Ayanokouji, é do tipo “desinteressado”. Ayanokouji tem algum problema não identificado que não o deixa demonstrar quais seus objetivos, desejos, motivações e pensamentos, mas, por algum motivo também não identificado (na verdade eu sei a resposta, mas ai seria spoiler), ele esconde suas reais habilidades e se preocupa com seus colegas de turma a ponto de se auto-sabotar para ajudá-los. Focarei somente neste último.

Kikyou Kushida, outra personagem principal, também possui características altruístas. As características benevolentes desses dois personagens me fizeram pensar sobre aqueles estudantes que querem abraçar todas as oportunidades da universidade, seja para preencher o currículo Lattes, pelo puro conhecimento ou em prol dos outros, e acabam se afundando em suas próprias frustrações e fracassos.

À esquerda, a personagem Kikyou Kushida e à direita, o personagem Kiyotaka Ayanokouji. Crédito: MyAnimeList.

Para ter um “bom currículo”, além de excelente notas, é preciso participar de projetos de extensão, iniciação científica e eventos acadêmicos; apresentar projetos e artigos em simpósios, encontros e congressos; assistir (e dar) palestras e fazer dezenas de mini-cursos.

Muitas vezes, a consequência dessa necessidade absurda somada com um possível altruísmo do estudante pode sobrecarregá-lo e isso, possivelmente, irá causar diminuição em seu desempenho acadêmico, ansiedade, estresse, privação do sono e até depressão. Esse problema é sistemático, vem da necessidade do sistema, não do estudante. É o sistema que exige 300 horas de Atividades Acadêmicas-Científicas-Culturais (AACC) para o estudante se formar e ainda possui várias regras que anulam boa parte das horas que você consegue. É o sistema (e professores) que exige produção em massa em quase todas as disciplinas. É o sistema que exige experiência na área e artigo publicado em periódico internacional.

O problema, ao contrário do que muitos afirmam, é que o estudante não possui muitas opções. Se ele não ficar sobrecarregado com as horas complementares, produção em massa e em pró-atividade constante, é provável que ele não conclua sua graduação e nem arrume um bom emprego. Se ele desistir de estudar, será julgado por pessoas que nunca estudaram. Se ele quiser trocar de curso, o chamarão de sem vergonha. Se ele tirar nota baixa ou reprovar, o dirão que ele não faz nada da vida e nem para estudar ele presta. De qualquer forma, nós, estudantes, teremos que optar pelo sistema que iremos alimentar: o acadêmico falho ou o popular ignorante.

Nesse texto eu tentei apenas passar minha visão sobre um pouco da meritocracia presente no ambiente acadêmico e traçar alguns perfis que reconheço no meu cotidiano. Peço que você, leitor, dê sua opinião sobre os temas aqui tratados, para que possamos aprender juntos :D.

PS: Eu estudo Física numa Universidade Federal, então tenha isso em mente ao considerar minhas generalizações, pois obviamente são visões limitadas. E ressalto que todas as generalizações são falsas por definição e só as usei como aproximações objetivas de caráter mais geral e sólido, o que não significa uma realidade absoluta, mas sim parcial.

Classroom of the Elite, apesar de possuir erros lógicos, aspectos surreais e alguns exageros, é um bom anime para refletir o ambiente acadêmico. Ele sempre inicia cada episódio com alguma frase de grandes pensadores, como Nietzsche, Rousseau, Sartre e Rochefoucauld, que reflete algum acontecimento do episódio.

É claro que, como em quase todas as adaptações de light novel, ele também possui contradições, personagens Ex Machina, fanservice, desconexões entre os episódios, estereótipos e, talvez, sexualização e objetificação feminina. Ou seja, analisando profunda e tecnicamente, o anime não é bom (mas apreciei mais que Stranger Things xD). Mantenho minha indicação, apenas tenha em mente que, além da meritocracia, há nele vários outros problemas sociais sendo propagados o tempo todo.

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Marcos Oliveira
Na Beira do Abismo

Agora faço divulgação científica em: www.universodeparticulas.com.br. Uso esse espaço para desabafos e reflexões